Por uma lógica ética e critérios de justeza, não se pode chamar a esta lista "os melhores", uma vez que não vi todos os espectáculos estreados este ano. Assim na lista de espectáculos genericamente intitulada as minhas escolhas centrei-me em espectáculos que procurassem estabelecer linhas interpretativas para duas das questões que me são mais caras: a relação criação-recepção e a desconstrução das classificações. Numa tentativa de percepcionar as transferências e contaminações das práticas artísticas, procurou-se equilibrar as diversas classificações performativas, sem que, e como é óbvio, isso correspondesse a uma quota. As escolhas são apresentadas conforme data de estreia ou assistência. Da lista excluíram-se, naturalmente, as reposições, leituras encenadas, work-in-progress ou ensaios gerais, bem como os espectáculos vistos no estrangeiro. Todos os espectáculos vistos este ano, à excepção daqueles a que assisti fora do país, estão indicados no fim do post, tendo hiperligações aqueles que foram analisados neste blog.
No Caminho
de Rogério Nuno Costa
No Caminho
de Rogério Nuno Costa
A segunda parte do tríptico Vou a tua casa, desenvolvia-se a partir de uma relação de dependência/expectativa comum ao espectador e ao performer. Num espaço público e a uma hora escolhida por quem via, Rogério Nuno Costa construía um espectáculo que se inseria no quotidiano, não por cedência mas por consciência das dimensões performáticas desse quotidiano. Uma proposta íntima e atenta à base de qualquer espectáculo: a relação um para um que justifica qualquer acto teatral. Mesmo o mais imperceptível. Ler crítica
A Missão ou porque é que as raparigas continuam a querer ir para Moscovo
de Mónica Calle (Casa Conveniente)
O espectáculo, que estreou nos últimos dias de 2004, servia de plataforma inaugural do novo espaço dirigido por Mónica Calle, reconstruído e reformulado diariamente, com a cumplicidade do espectador. Entre o cimento e os tijolos, Ana Ribeiro, Mónica Garnel e Mónica Calle convocavam autores e memórias de outros espectáculos, numa estrutura que potenciava o site-specificity da proposta. A nova Casa Conveniente erguia-se em frente aos espectadores através de uma comovente metáfora sobre as marcas que o teatro deixa de espectáculo para espectáculo. Ler crítica.
Publique
de Mathilde Monnier, França (Culturgest)
O universo criativo da cantora e compositora P. J. Harvey era manipulado pela (e manipulava a) coreografia da francesa Mathilde Monnier, num exercício dramatúrgico em que o gesto mais banal tomava dimensões performáticas, não tanto por serem feitos em cima de um palco mas por forçar ao exercício de observação externo movimentos que são sobretudo interiores e inconscientes. Uma coreografia do quotidiano que baralhava música e dança através de uma fisicalidade e um rigor, que parecia levar o corpo a algo que respondesse de forma primária, honesta, emotiva e hiper-sensível ao prazer/energia que a música dá/transmite. E as reacções faziam-se sentir logo no momento imediato da recepção. Ler crítica.
Trio
de Tiago Guedes (Culturgest)
O coreógrafo, agora criador residente no Thèâtre Le Vivat, em Armentiéres (França), desenvolve em Trio uma das linhas mais subterrâneas no seu percurso: o lugar do indivíduo no processo criativo. A partir de três imagens fixas, cria uma obra coral, em que os corpos (do próprio, de Inês Jacques e Martim Pedroso) se organizam em sequências metamorfoseantes que criam uma paisagem coreográfica na qual a individualidade surge como opção justificada e fundamentada. A eficácia de Trio reside na capacidade de descobrir as mínimas mutações a que cada uma das figuras se sujeita, num espectáculo que continua a crescer no espectador depois de visto. Ler crítica
Flatland II
de Patrícia Portela (Galeria Zé dos Bois)
Apesar de menos consistente dramaturgicamente que Flatland, Prémio Maria Madalena Azeredo de Perdigão 2004, Patrícia Portela construía uma sequela sobre a vida do Homem Plano, que desta vez “raptava” os espectadores, para um mostruário de situações limite, onde os códigos cénicos e as estruturas convencionais eram postos em causa. Flatland II, servia-se do virtuosismo de Anton Skrzypiciel para levar os espectadores numa viagem pelo território surreal e pessoal, onde não faltou um impressionante momento de ilusionismo, pleno de ironia, no qual a personagem serrava a criadora ao meio. Organizado como um livro de viagens disfarçado de informalidade e improvisação, o espectáculo desafiava não só as convenções como a própria fundamentação da proposta. Mesmo que excessivamente longo e por vezes confuso, Portela provou, uma vez mais, a razão pela qual é uma das mas inventivas criadoras nacionais.
Organillo
de Stephen Mottram's Animata, Reino Unido (5º Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas/Teatro da Trindade)
Organillo é um nítido exemplo de promoção da ideia de recusa de um espectáculo de marionetas como uma proposta infanto-juvenil. Num espectáculo onde a magia impera, também por causa dos exercícios de prestidigitação feitos pelo manipulador, os estranhos seres cruzam-se numa profusão coreográfica na qual o espectador se deixa envolver. Sobretudo por saber tratar-se apenas de um manipulador para o conjunto imenso de marionetas, esquecendo até a fragilidade de alguns dos autómatos. Nesse sentido, é uma muito eficaz combinação de elementos cenográficos e banda sonora, imersos numa imensa escuridão onde se dá margem de manobra ao espectador para completar o vazio. Radica na minimal ocupação de espaço e inerente concentração de meios uma leitura deste espectáculo como um objecto feito de disponibilidades e hipnoses. Ler crítica.
Corpo de Baile
de Miguel Pereira (Culturgest)
A leitura mais imediata da peça de Miguel Pereira seria homoerótica, mas Corpo de Baile é coerente pelo modo como os corpos masculinos se movem e organizam em modelos interpretativos distintos que partem das diversas formações de cada um deles. O coreógrafo, mesmo que no final perca a mão no espectáculo, cria um trabalho pertinente sobre a sexualidade, ao mesmo tempo não fazendo depender desta um exercício que é sobretudo um curioso olhar sobre o ser masculino, a partir de uma ideia de homogeneidade. Como a que é indicada pelo título, que remete para os códigos clássicos do bailado.
Agatha Christie
pelo Teatro Praga (Culturgest)
Ao fim de dez anos, o Teatro Praga constrói o seu espectáculo mais adulto e comprometido, cumprindo à risca um programa de recusa enquanto questionamento acerca da prática teatral. Agatha Christie funciona como jogo de enganos, tal como os livros da autora, num processo de metamorfose onde são questionados valores aparentemente retóricos, como seja o lugar de cada uma das partes e o seu (real) contributo para a construção de um todo artístico. Através de uma estrutura mise-en-abime, discute-se o papel do teatro e da contextualização, em sequências que obrigam a uma escolha “no momento” e, por isso, potenciam a ideia de um espectáculo diferente para cada espectador (e diferente todos os dias). Neste policial retórico, os culpados são vários e o final sempre surpreendente. Tudo depende de um processo de ilusão, no fundo, a base do teatro.
Accidents – matar para comer
de Rodrigo Garcia, Espanha (27º Citemor)
A lagosta pendurada num arame e o homem que a "tortura" remetem para o surrealismo (Dalí como a referência mais óbvia) e a distância brechtiana, mas Accidents é uma proposta que raia as fronteiras do pecado capital (gula e luxúria, claro), no que isso possa denunciar de projecção de um futuro que, muito possivelmente, não está assim tão distante. A performance não é mais ou menos impressionista pelo facto de se utilizar um animal que, sempre que é cozinhado, é-o vivo. O que causa alguma espécie de angústia, mais até do que o audível palpitar do coração da lagosta, é o modo como se constrói uma narrativa que mais do que afirmar, obriga a especulações internas sobre o que de facto fazemos para alterar comportamentos que podem resultar em graves alheamentos sociais, culturais, políticos, religiosos, comportamentais. Ler crítica.
Sand Table
de Meg Stuart, Bélgica (Festival Temps d’Images/Centro Cultural de Belém)
Inserido num festival que queria reflectir sobre a relação entre o corpo e a imagem, o Temps d’Images, esta foi uma proposta que surpreendeu pela eficácia e honestidade com que combinou vídeo, intérpretes e dramaturgia. A efemeridade do movimento era aqui potenciada pelo modo como Meg Stuart desenhava sequências simples e voláteis como as formas da areia nas mãos dos dois executantes. A imagem servia o corpo, e nela o corpo crescia, determinado por um sentido de materialização, também lírico e poético. Um exercício feito de quase-nadas, surpreendente na forma e no conteúdo, que não procurava exercer qualquer tipo de metaforização complexa.
O amor ao canto do bar vestido de negro
de Olga Roriz (Teatro Municipal de Faro)
Num ano de triplo aniversário (nascimento, carreira e companhia), Olga Roriz apresenta uma obra coral (bacantiana e feminina certamente) onde há corpos que se cruzam em pares desencontrados e uma estrutura que obriga à recusa da linearidade. Propõe-se uma leitura do amor como ritual a celebrar, onde o binómio tragicidade/comicidade permite a criação de uma estrutura, sem a necessidade da afirmação programática para além do universo criativo e referencial da coreógrafa. E o barroco característico de Roriz é aqui substituído por uma respiração, um tempo e um sentido como há muito não se via, mesmo que nem tudo o que se passa em palco seja relevante ou equilibrado. Mas a mais-valia desta celebração pagã é não querer correr o risco de firmar, de modo peremptório, um discurso sobre os afectos ou a falta deles. É, sobretudo, um espectáculo sem conclusão e consciente disso.
A sagração da primavera
pela Shen Wei Dance Arts, EUA (Centro Cultural de Belém)
Num ano em que foram apresentadas várias versões deste bailado clássico, o trabalho da companhia de Shen Wei surpreendeu pelo modo como música e bailarinos se confundiam numa estrutura simplificada mas nada limitativa para a apreensão das lógicas impostas pelo cânone. A versão para piano a quatro mãos de Fazil Say, era utilizada pelos intérpretes que, criando uma uniformidade no movimento, não perdiam a noção de indivíduo. E, consciente de um peso e uma história, Shen Wei apresentava uma versão de A Sagração da Primavera que dava novo significado aos símbolos que cada um dos bailarinos carregava.
Espectáculos vistos em 2005 :
11 M - No quiero ser salvado (Dante Producciones) 5***** (Teatro Praga) A casa de Bernarda Alba (Benvindo Fonseca/Teatro Municipal S. Luiz) A casa de Bernarda Alba (Diogo Infante/Teatro Municipal S. Luiz) A minha tia e eu (Filipe la Féria/Teatro Politeama) A Missão ou porque é que as raparigas continuam a querer ir para Moscovo (Mónica Calle/Casa Conveniente) A ópera dos três vinténs (Teatro Aberto) A Partilha (Teresa Guilherme Produções) A rainha das Cores (Erfreuliches Theater Erfurt/5º FIMFA) A sagração da primavera/Folding (Shen Wei Dance) A última chamada (Rafael Alvarez) A voz humana (Fernando Marques/Teatro Baiuca) Accidents – Matar para comer (Rodrigo Garcia) Agatha Christie (Teatro Praga) Alguns Lugares (Álvaro Correia/Casa Conveniente) BB 2 (Carlota Lagido) Berenice (Carlos Pimenta/Teatro Nacional D. Maria II) Bernard’s Puppet Bonanza (Pickled Image/5º FIMFA) Camões, príncipe dos poetas (Teatro Infantil de Lisboa) Corpo de Baile (Miguel Pereira/O Rumo do Fumo) Cosmos (Cristina Carvalhal) D. Quixote (Companhia Nacional de Bailado) D. Quixote (Teatro Infantil de Lisboa) Da mão para a boca (Truta/Teatro Praga) Da pele à pedra (Vo’arte) Daddy Daddy (Miguel Bonneville) Dançar Hans van Manen (Companhia Nacional de Bailado) Dance on Glasses (Amir Reza Koohestani/Meth Theatrical Group)Deep News (Cie. Pseudonymo/5º FIMFA) Doze mulheres e uma cadela (São José Lapa/Teatro da Trindade) El caso del espectador (Maria Jerez) Endgame Revisitado (Teatro Meridional/Primeiros Sintomas) Evil/Live-Live/Evil (Francisco Camacho/Eira) Execução Pública (Pedro Gil) Explodir em silêncio nunca chega a ser perturbador (Tânia Carvalho/Bomba Suicida) Farsa Quixotesca (Pia Fraus) Fausto Morreu (Carlos Afonso Pereira/Metamorfose Total) Flatland II (Patrícia Portela) Fragmentos de meias verdades (Mónica Coteriano/Bomba Suicida) Fui esboço #1 (Rogério Nuno Costa) Fui esboço #7 (Rogério Nuno Costa) Garrett no coração (Fernando Gomes/Klassikus) Gay Solo (Luís Assis) Hachioji Kuruma Ningyo Oshu Koen (Hachioji Kuruma Puppet Theater/5º FIMFA) Hand Made (Carlos Martinez) Julieta – cartas a um amor fragmentário (Mónica Calle/Culturgest) Katafalk (Nicole Bossoux, Patrick Bonté) La Rose et la Hache (Odeon – Thèâtre de l’Europe) Las tribulaciones de Virgínia (Hermanos Oligor/5º FIMFA) Manifesto/Homeless (Útero) Manucure (João Grosso) Marcações para um crime (Martim Pedroso/Poppi Group) Memórias de um tempo com rumores de azul (Paulo Ribeiro/Companhia Paulo Ribeiro) Metal (André Teodósio, Martim Pedroso) Metamorphis (Alberto Lopes /Festival Temps d’Image) Minnie Mouse/Concepto House (Miguel Bonneville) Mostra (Maria Gil/teatromosca) Mute (Rui Horta/Scottish Dance Theatre) No body Never mind 002 (Ana Borralho, João Galante) No Caminho (Rogério Nuno Costa) Nous etions assis sur la rivage du monde (Dennis Marleau/UBU – Compagnie de Creation) O amor ao canto do bar vestido de negro (Olga Roriz) Organillo (Stephen Mottram/Animata) Palavras não ditas (Nélia Pinheiro) Perdoar Helena (.lilástico) Philatelie (Mala Voadora) Publique (Mathilde Monnier) Punchwork (Maria João Garcia/Ninho de Víboras) Quem sou #2 (Miguel Bonneville) Riders to the sea (André Teodósio) Saia Daqui (Maria João Machado, Ana Lacerda/Múrmuriu) Sand Table (Meg Stuart/Dammaged Goods) Senso (Luciana Fina, Mónica Calle, Carlos Pimenta/Festival Temps d’Image) Serviço d’Amores (Maria Emília Correia/Teatro Nacional D. Maria II) Set Up (Rui Horta) Sete contos de Natal para um autógrafo (Teatro da Garagem) Sobre a mesa a faca (Cão Solteiro/Teatro Praga) Ten Chi (Pina Bausch/Wuppertal Tanztheater) The End of Love (Lúcia Sigalho/Sensurround) Transsiberiano (Projecto Teatral) Trio (Tiago Guedes/Re.Al) Um Marido Ideal (André Murraças/Metamorfose Total) Visita Guiada (Cláudia Dias/Re.Al) Vistas da cidade (Cão Solteiro) Why can i be me (John Romão, Maria João Machado/Múrmuriu)
1 comentário:
Não conhecia este blog, onde entrei a propósito de procurar referências ao Romeu e Julieta que se namoram lá para o São Luiz.
Fiquei surpreendido: pelo cuidado com que é feito e por não o ter ainda descoberto antes.
Em jeitos de tributo deixo também as minhas escolhas de 2005. A «Berenice», por tão bem ter trazido para o palco a magia do verso rimado; e a «Missão...», por me terem convencido a acarretar com saco de areia, Cais do Sodré fora, após um dia de trabalho que começou às 8 da manhã.
Votos de um excelente 2006!
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