quinta-feira, agosto 04, 2005

Telhados de vidro



Teatro
Encenação: Ana Luísa Guimarães e Diogo Infante
19 Junho 2005
17h30
Meia sala

Dança
Coreografia: Benvindo Fonseca/Lisboa Ballet Contemporâneo
25 Junho 2005
21h30
Sala cheia


Para marcar uma espécie de território na produção de objectos performáticos, a direcção artística do Teatro Municipal S. Luiz, em Lisboa, decidiu reunir dois projectos (um de dança e um de teatro) que haviam coincidido na adaptação de A Casa de Bernarda Alba, de Federico Garcia Lorca (escrito meses antes da sua morte, em 1936, e estreado mundialmente em Buenos Aires em 1945). Jorge Salavisa tinha assim oportunidade para recuperar a base formal e teórica de um outro projecto seu, da altura em que era director do Ballet Gulbenkian, Quatro Árias de Ópera (estreia a 20 de Março 1996, Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, com coreografias de João Fiadeiro, Vera Mantero, Clara Andermatt e Paulo Ribeiro, árias de Francesco Cilea, Mozart, Haendel e Verdi, cenários de Siza Vieira e figurinos de Nuno Carinhas).

A Casa de Bernarda Alba um cenário, dois projectos, sustentava-se numa base criativa comum, através da presença nos dois projectos de João Mendes Ribeiro (cenografia), Vera Castro (figurinos) e Nuno Meira (desenho de luz), estabelecendo-se, assim, um equilíbrio para linguagens cénicas (teatro e dança) que, mais do que opostas, caminham, de modos cada vez mais assumidos, para um quebrar de fronteiras, códigos e regras. Para além disso, o confronto entre linguagens certamente potenciaria novas relações de entendimento, compreensão e ligações, num texto suficientemente complexo para atravessar não só gerações e fronteiras geográficas, mas sobretudo códigos morais.

O cenário branco de Mendes Ribeiro apresentava uma longa e suspensa estrutura, onde se evidenciava uma clarabóia. Esta relacionava-se com um palco dentro do palco, árido, limpo de adereços e feito de linhas exactas. Ou seja, no seguimento daquilo que têm sido as suas propostas modulares, os adereços e outros objectos cénicos são trazidos e colocados conforme a acção, deixando o espaço para o confronto dramatúrgico. Já os figurinos de Vera Castro eram compostos de um negro intenso, onde só a cor do vestido verde de Adela e o pano do pó vermelho da criada (os únicos elementos que se repetiam para os dois espectáculos), rasgavam o tom pesado das propostas. Já a luz de Nuno Meira, acompanhava as leituras programáticas de cada uma das propostas. Sóbria e quase ausente na versão para teatro, explosiva e opressiva na versão para dança.

Mas a escolha do texto também não é ausente de possibilidades de leitura, uma vez que obriga a um pensar do corpo como matéria sexual, espaço para conflitos e oposições e, sobretudo, última fronteira (material e espiritual) para a liberdade. Lorca escreveu sobre a liberdade sexual, certamente incluindo a sua. Mas não se correrá hoje o risco de, desenhando as filhas somente como pontos de conflito entre o desejo, o sexo e a morte, assumir-se uma dimensão não só frágil como limitativa? De que forma pode ser representada a metáfora da libertação sexual, tendo em contao perigo de se fazer do texto uma leitura feminista? E como abordar um texto pleno de ambiências e contextos nacionais de um modo que não no sentido superficial e de espelho, proponha leituras sobre como nos equilibramos familiar, social e sexualmente?

Foto: José Frade

A versão (para teatro) de Diogo Infante e Ana Luísa Guimarães assume o texto como lugar de confronto para as personagens, dando às actrizes indicações claras e rigorosas sobre como se desenvolvem ao longo da narrativa. Optando por um trabalho dramatúrgico de contenção, este é um espectáculo que reconhece a pressão que Garcia Lorca queria denunciar.

Nesse sentido, podemos afirmar, que a leitura que os encenadores propõem é uma feita do lado da mãe, fazendo desta um profundo conflito entre agregação e indiferença. Pela figura austera e impassível de Maria do Céu Guerra passa todo um trabalho de observação atenta, em que o mínimo gesto permite múltiplas interpretações. A actriz é assim sujeita a um controlo do corpo, voz e movimento, em nome de uma composição que mais do que castradorase quer subconscientemente manipuladora. Torna-se, assim, o seu próprio fantasma, até pelo modo como se desloca pelo palco, quase elevada, muito em virtude de um figurino negro, rigoroso, pesado, austero e sem adornos.

Esta opção pela mãe é, curiosamente, uma forma bastante atenta de ler a peça de Garcia Lorca, uma vez que se escusa à habitual leitura da libertação feminina, descoberta da sexualidade e confronto geracional. Aqui, as éguas por amansar são mulheres sem homem e isso basta. Os encenadores limpam o espectáculo de qualquer emoção, alimentando uma ideia de enclausuramento através de um desenho de luz muito sóbrio e quase negro, uma disposição espacial concentrada, e um trabalho sonoro feito de uma combinação entre a breve música de Bernardo Sassetti e uma sonoplastia distante e envolvente.

Contudo, esta proposta não é ausente de uma formalidade, acentuada por uma certa reverência ao texto (é disso exemplo a manutenção da divisão do texto em actos) e uma elocução que dá mais relevância à percepção dos diálogos que à modulação emocional. Para além disso, as quebras de ritmo verificam-se, sobretudo nas personagens de Ana Bustorff (Angústias), Sara Gonçalves (Madalena), Adriana Moniz (Amélia) e Laura Soveral (Maria Josefa), que evidenciam uma fragilidade no domínio do espaço e na análise das cambiantes evolutivas das mulheres que representam. Por outro lado, é em Flávia Gusmão que se concentram todas as atenções, uma vez que transforma Martírio numa figura esquiva e negra, plena de ambiguidades e surpresas (quase a fazer lembrar um Shylock em gestação). A irmã que faz da inveja uma arma, encontra em Flávia Gusmão um corpo que cresce ao longo do espectáculo. E, sobretudo, a actriz parece perceber que a melhor forma de não condenar Martírio a um degredo dramatúrgico da parte do espectador, éconcentrando nas expressões faciais todo uma composição que denuncie o equilíbrio lógico, cerebral, manipulativo e amargurado que a sustenta.

O trabalho de conjunto proposto por Diogo Infante e Ana Luísa Guimarães acentua a tragicidade do texto lorquiano, fazendo deste mais do que um panfleto e um ícone feminista. Transforma o espectáculo num amargo desenho emocional, que assenta numa dengosidade corporal e uma enebriamento cénico para à aparente falta de salero responder com a natural universalização de sentimentos.

foto: José Frade

Benvindo Fonseca, por seu lado, parte do texto para chegar ao corpo. O coreógrafo fragmenta o texto de Federico Garcia Lorca para, através de imagens que se querem plasticamente complexas, desenvolver um espectáculo que tem na exposição da tensão sexual a sua mais valia. Se é por demais evidente que a obra do poeta espanhol se constrói em torno de uma ideia de tensão que derivará em tragédia, na versão de Benvindo Fonseca essa tragédia é marcada desde o início, naquilo que, se houvesse dimensão na proposta, se poderia considerar uma curiosa leitura bacantiana do texto.

Através da apresentação inicial de todos os elementos em palco, assiste-se à construção de uma noção de inevitável ligação entre todos. Logo, do modo como cada acto provoca consequências nas acções dos outros. Se na versão para teatro assistíamos à construção de um todo que, mesmo envolvendo, não se coibia de manter as devidas distâncias, na versão para dança o texto serve como base para um trabalhoque recusa a subtileza, a cambiante dramatúrgica ou um todo que não seja só forma.

A leitura do coreógrafo sustenta-se numa explosão de cor, música e movimento que mais do que acentuar o barril de pólvora metafórico que era a casa de Bernarda Alba, denuncia uma visão grotesca, desconexa, superficial e ostensivamente ilustrativa do texto de Garcia Lorca. E mesmo considerando que esta abordagem faria algum sentido, enquanto proposta de entendimento da peça (ou abordagens menos formais ao texto), o que se assiste em palco não é mais que um revolver kitsch, espasmódico, anacrónico e fragmentado, que radica a versão para dança num exercício de estilo puramente gratuito. Não há lugar para a construção de um todo performático e menos ainda para a apresentação de outras leituras, que só a dança pode, pelo seu lado mais abstracto e poético, desenvolver.

A introdução de novos elementos cenográficos (o quarto e varanda onde Adela [Isadora Ribeiro] e Pepe [Hugo Martins] se encontram), espaciais (a utilização de um camarote para fazer de varanda), dramatúrgicos (homens a fazer o coro feminino, a personagem de Angústias (Elisa Ferreira] a aliciar Pepe com dinheiro) ou personagens (como Pepe), alguns até ausentes da versão para teatro, não contribuem, contudo, para um conjunto mais abrangente de interpretações. Feita de sequências por demais arrastadas (o encontro de Pepe e Adela, por exemplo, tem a inacreditável duração de 5 músicas completas de Chavela Vargas), outras descontextualizadas, porque ausentes de organicidade dramatúrgica (as entradas da avó Maria Josefa [Alessandra Cito]) e algumas figurativas (o enforcamento de Adela), esta é uma proposta que procura uma estilização do texto, mas força a ilustração coreográfica.

Através de sequências pouco coerentes, porque monótonas, repetitivas e assentes numa banda sonora caótica e esquizofrénica (músicas populares portuguesas, êxitos em espanhol, orquestra de cordas, clássica gravada, world music), A Casa de Bernarda Alba denuncia uma confusão entre ritmo, estrutura, orgânica e dramaturgia. Razão pela qual a reacção do público foi uma feita de comentários em surdina, risos abafados e suspiros profundos, em momentos que deveriam conter em si toda uma carga erótica, etérea e metafórica.

Se quisermos encontrar um ponto de interesse nesta versão de Benvindo Fonseca, este reside mais no modo como, teoricamente, faz por integrar os sentimentos maiores de Lorca no corpo dos intérpretes, num jogo sexual e tenso, em que a morte é o único fim. No entanto, esta parece ser uma proposta de compromisso entre modelos performáticos da velha escola clássica (de onde aliás saiu grande parte do elenco) e uma ideia de contemporaneidade que tem na abstracção uma linha de pesquisa. Mas, ao não se assumir uma de duas vias, esta sua leitura transforma-se num amplo poço cénico, onde tendem a afundar-se grande parte das propostas mais recentes da dança nacional.

Em resumo, o natural e pretendido confronto entre as duas propostas, resulta num desequilibrado conjunto performático, diminuídas que estão as hipóteses de espelho, muito em virtude de um espectáculo de dança que se hermetiza em códigos estanques. Incluindo até uma leitura sobre o corpo que não seja somente sexual. A aposta, nesse sentido perdida, não só fragiliza a ideia inicial, como levanta sérias e pertinentes questões sobre jogos programáticos. Podem duas propostas conviver, quando as valias são anuladas face a uma cedência a regras de programação. E que lugar para a performatividade, quando se enclausuram objectos cénicos em categoriasque, atendendo aos pressupostos, se escusam a uma reflexão sobre as fronteiras das práticas convocadas?

Esta é, assim, matéria para abordagens estruturais (e estruturantes), para as quais urge a definição de modelos de programação, critérios de selecção e um qualquer rigor, sobretudo quando estão em causa exemplos clássicos e por demais refeitos.

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