sábado, dezembro 10, 2005

O espaço vazio

Análise aos espectáculos:

Metal
de André e. Teodósio e Martim Pedroso
7ª MostraTE, Teatro Taborda
17 Novembro 2005, 21h30
meia-sala

Um Marido Ideal
de André Murraças
7ª MostraTE, teatro Taborda
26 Novembro, 21h30
sala cheia


Metal, de André e. Teodósio e Martim Pedroso

Metal, de André e. Teodósio e Martim Pedroso e Um Marido Ideal, de André Murraças, foram dois dos espectáculos apresentados na 7ª MostraTE – Mostra de Teatro Jovem de Lisboa, que decorreu no Teatro Taborda, entre 16 e 27 de Novembro, numa organização da EGEAC e do Pelouro da Juventude da CML, que parecem dar conta de um certo vazio na criação contemporânea nacional. Vazio ao nível do tipo de propostas a apresentar e dos modos de execução, sobretudo quando está em causa a criação de discursos autónomos em percursos feitos (aparentemente) à margem das classificações artísticas e assentes na desconstrução. Ambos partiam de pressupostos simples e coincidentes com estratégias pessoais de construção de um espectáculo, traçando linhas comuns acerca da relação fazer-observar. Mas parecem esquecer que a apropriação de modelos de terceiros é sempre um elogio para o autor original, a não ser que exista uma integração no novo discurso de tal forma que se torne novamente matéria original.

Metal (17 Novembro) é uma orgíaca celebração (do) superficial, cuja organização e leitura deve mais ao acaso que ao programa. É um espectáculo profundamente frágil, onde os dois actores/encenadores se prestam a um exercício retórico feito de descrições, analogias, acumulação de referências, combinação de 'biografia' e análise crítica, desconstrução narrativa e teoria do caos, protegidos pela ideia de que “palavras de vários autores, criam verdadeiros manifestos”.

Ao perguntarem “o que é que já foi feito” e agindo “apenas [com] a pretensão de questionar e agitar”, André e. Teodósio e Martim Pedroso erguem uma farsa algo irrelevante, que pouco adianta ao percurso individual que construíram, chegando mesmo a entrar em contradição com este. O assumir de que “tudo já foi feito” serve de desculpa para a não criação de uma nova ordem discursiva. Na verdade, no fim de tantas referências, Metal é uma proposta feita de um vazio de ideias, muito por causa da incapacidade de as/se organizarem.

O problema não está exactamente no modo de apresentação, mas antes no modelo escolhido para o fazer. O cruzamento de textos políticos e eróticos com sequências de filmes como Carrie, de Brian de Palma, ou músicas colocadas para ilustrar e sublinhar intenções, poderia funcionar como uma alegórica narrativa sobre o superficial, o vazio, a retórica, a pesquisa ou o processo criativo. Mas não passa, afinal, de veículo para a afirmação de um discurso pouco claro, limitado e auto-destrutivo, uma vez que, acreditando numa espécie de virtude subsconciente de que o caos se organizará, as acções que realizam (de modo genérico, alternam leituras de textos com 'mergulhos' nos objectos que se encontram no palco), se tornam irrelevantes, dada a incapacidade quer de processamento da informação, quer de instalação dessa mesma informação na estrutura do espectáculo. No fundo, em Metal, a pergunta mais relevante que se pode fazer não é como viver entre as referências, mas antes para que servem as referências se não as conseguimos apreender.

Um Marido Ideal, de André Murraças

Em Um Marido Ideal (26 Novembro), André Murraças oferece três hipóteses para a busca de um homem ideal, num espectáculo que quer “repensar o teatro como um formato”. O que se passa é simples: o actor entra, senta-se, lê três textos (uma biografia de Charles Manson, a descrição de um programa de Oprah Winfrey com Tom Cruise, e as deixas de Lord Goring, uma das personagens da peça homónima de Oscar Wilde escrita em 1895) e sai. Em cada uma das leituras é acompanhado por um determinado objecto: uma luva de médico na mão esquerda para Manson, uma luva de boxe na mão direita para Cruise, umas luvas de pelica e uma chávena de chá para Goring.

O ponto de partida é assumidamente um plágio a uma intervenção do dramaturgo irlandês, na Londres de 1890, onde, “para uma sala de espectadores adeptos de leituras públicas”. “um homem gordo e irlandês, vestido de fato de veludo e com um cravo verde na lapela, lia” um texto, em que “a palavra bastava para criar imagens”. Mas ficamos sem perceber o que terá levado o performer a apropriar-se de um modelo, sem que nele tenha aplicado qualquer uma das suas habituais reflexões sobre o estereótipo masculino, resultando antes num exercício plasticamente desinteressante, dramaturgicamente inócuo e conceptualmente irrelevante.

Sobretudo quando na obra de André Murraças encontramos abordagens a esta busca ideológica, seja em peças (veja-se o exemplo de Pour Homme, o seu anterior espectáculo, onde o homem ideal se construía por recusa dos estereótipos), seja em textos dramáticos, como O Espelho do Narciso Gordo: “O Homem Ideal deve falar connosco como se fôssemos deusas, e tratar-nos como crianças. Deve recusar todos os nossos pedidos sérios, e satisfazer cada uma das nossas fantasias. Deve encorajar-nos a ter caprichos, e proibir-nos de termos missões. Deve sempre dizer mais do que aquilo que queria dizer. E querer mais do que disse. (…) Como recompensa, o Homem Ideal terá infinitas expectativas.” (Edições 101 noites, p.21-22, 2003).

O que Murraças faz neste espectáculo é reduzir ao máximo a intervenção sobre os homens e os textos dos quais parte, não se percebendo se procura construir uma narrativa entre os três modelos, assumindo uma personagem transversal que é mais receosa com Mason, jocosa com Cruise e ausente com Goring - como afirmou em entrevista: “a partir do momento em que tens alguém a ver é sempre o espectáculo: há uma personagem.” (Sinais de cena 3, Junho 2005, pp.35-44) -, se simplesmente apresentá-los sem outro fio de condutor aparente que não o de autor, uma vez que é o próprio a afirmar que “faz todo o sentido que seja eu [a representar], não por uma qualquer megalomania de repetir one man shows, mas como consequência natural de tornar mais transparente o objecto e o que quero transmitir.” (idem).

Pode considerar-se que este desejo de ver em Um Marido Ideal outra coisa que não o que lá está, parte da criação de expectativas em relação a determinados espectáculos, que se podem justificar pelo conhecimento do percurso dos seus autores, mas também pelo contexto em que se inserem. Até porque se este espectáculo fosse um monólogo com a mesma estrutura dramatúrgica (homem sentado a ler), as leituras poderiam ser outras e certamente aptas a uma reflexão sobre os limites da representação. Mas, seja como for, e acreditando que não há uma inconsciência criativa, o vazio em que resulta este espectáculo diz pouco, muito pouco, sobre aquilo que é a força do seu trabalho anterior, e que o próprio reconhece como algo “muito pessoal, [que] parte de um labor muito caseiro, de uma reflexão muito própria, é muito ligado às minhas vivências.” (idem).

Não é verdade que se criem imagens a partir dos relatos, ou pelo menos imagens que justifiquem a leitura dos textos, e também não é verdade que se possam “repensar as relações amorosas”, como diz o programa. Não parece haver neste espectáculo uma particular vontade de construir um discurso autónomo, dedicado e reflexivo, mas antes uma manta de retalhos referenciais pouco eficaz. Não se pedia a solução final para esse homem perfeito, mas, pelo menos, uma luz. E essa apaga-se no fim do espectáculo com a saída de Murraças, tão sereno quanto entrou.

Em resumo, se em Metal, é notória a estrutura criada a partir da manipulação de referências (filmes, músicas, vídeos, livros, imagens) em nome de um todo que se procura erguer no meio de um caos de símbolos e sentidos, em Um Marido Ideal assiste-se à perseguição de um estilo de criação assente no conflito intérprete/personagem, no qual as questões do género servem de ponto de partida para uma análise a desenvolver pelo espectador. Mas nenhuma das propostas se apresenta como alternativa ao que pesquisa, criando um espectáculo que se anula em si mesmo, por não conseguir estabelecer nem uma autonomia em relação às referências nem a criação de novas interpretações.


Ver críticas a outros espectáculos apresentados na 7ª MostraTE e publicadas neste blog:
Absense, pela companhia Proto, por Pedro Manuel
O Aniversário da Infanta, pelo Teatro Focus, por Pedro Manuel

A crítica a Fausto Morreu, de Carlos Afonso Pereira, apresentada em ante-estreia a 27 Novembro, na Casa dos Dias da Água, será publicada em Janeiro, aquando da reposição do espectáculo.

Ver críticas a outros espectáculos destes encenadores já publicadas neste blog:
Pour Homme, de André Murraças
Marcações para um crime, de Martim Pedroso
Riders to the sea, de André e. Teodósio