Análise ao espectáculo POUR HOMME
André Murraças
6ª Mostra de Teatro Jovem de Lisboa
Teatro Taborda
19 Novembro
22h00
Estreado em Setembro no programa BOX Nova (1), e classificado como espectáculo de dança, a nova proposta de André Murraças (AM), Pour Homme, recusa assumidamente um texto escrito para apostar numa maior concentração no trabalho físico e a utilização primordial do corpo como elemento dramatúrgico. Há, portanto um pretexto corporal. Insere-se, assim, num contexto estético e cultural que cumpre a definição de hibridez utilizada por Cláudia Madeira (2): "[estes espectáculos] destroem a estrutura, o autor, o actor, o texto, a ficção e instituem o processo artístisco como único resultado possível, deixando-o em estado "impuro", muitas vezes à sorte do momento em que é apresentado, intensificando com isso o risco desse mesmo resultado".
Esta espécie de "espectáculo(s)-tese" - que pode(m) ser interpretado(s) à luz de uma resposta contemporânea do "teatro-documento", tão comum nos anos 30 e 70 do século XX -, obriga a uma clarificação do papel do criador face ao espectador. Pode um criador propor-se a uma discussão quando o espectador não procura respostas? E que importância pode assumir essa discussão, quando se utiliza um palco para a realizar? A tendência do espectador será a de aceitar como dado adquirido o que quer que venha a passar-se em palco. Um espectador espera de um criador uma apresentação, um desenvolvimento e uma conclusão. AM dá só os tópicos em discussão. O resto segue depois.
A intenção é discutir/observar o homem a partir de referências históricas, sociais, iconográficas, culturais e sexuais. Contudo, não só o homem que se apresenta existe sem um modelo feminino como ainda assume a posição machista sobre o Criador - o homem feito à imagem de Deus, ele mesmo um homem. Logo, homem e Homem. Pour Homme é um espectáculo de homens para homens, não no sentido gay do termo (é, surpreendentemente heterossexual), mas entre duas frases tipo: "boys will be boys" e "a man's got to do what a man's got to do".
É ainda um espectáculo claramente narcísista, não no sentido pejorativo do termo, mas antes no que isso possa permitir o posicionamento do criador (um homem) no problema que ele mesmo levanta: representação devenu alteridade. Estas são as suas referências, os seus modelos, as suas dúvidas. Confrontando-as com a do espectador, uma nova teoria/um novo espectáculo surgirá. Pour Homme é, assim, uma obra em aberto, em que a vantagem está, curiosamente, do lado do espectador. Este já sabe quais são os alicerces do criador e pode rebatê-los. Ao criador resta-lhe esperar. Para depois se questionar.
Ao falar em referências pessoais, refiro-me ao trabalho de pesquisa que AM desenvolve e exemplifica. As sequências que vai apresentando resultam de um processo de observação/confrontação de modelos, esterótipos, conceitos e definições que mais não são que pré-conceitos em relação ao que se espera/o que é um homem. E é esta posição que atira Pour Homme para um trabalho antropológico mais do que um anedoctário de situações-tipo. Mesmo que seja a partir destas que o espectáculo se desenvolva.
Tomemos como exemplo o momento em que AM se apresenta em diversas poses/instantâneos/perfis masculinos e aposta num intercalar aparentemente descoordenado. No centro do palco, dividido por uma esquadria branca, o autor vai de Jesus Cristo ao Homem-Aranha e deste a Hitler, São Sebastião, Adão, faraó ou cowboy. Estas apresentações, precisamente por serem aparentemente aleatórias, desafiam o espectador a identificar os traços comuns e as diferenças nestes modelos masculinos. Todos são presença e ausência, já que, tendo-se tornado "maiores que a vida" dificilmente poderão ser encontrados na plateia do teatro. Será talvez por isso que os mais conseguidos são os de dificil identificação. Serão nesses que se esconde a razão de ser homem.
No extremo oposto desta "metamorfose" ("todos somos um só") temos o sr. "X" que usa palitos, boceja sem colocar a mão à frente da boca, coça o sexo, dança sem estilo e gaba-se das conquistas. A este, "perfeito nobody", todos reagem com graça, gargalhada fácil e até um certo desdém. Escondendo-se/esquivando-se, muito provavelmente, de uma imediata identificação. É por isso que quando AM entra em cena e, de costas para o público, urina para o chão do palco, o espectador é confrontado com os limites do papel que o homem representa no quotidiano. Que AM apresente este "boneco" logo nos momentos iniciais do espectáculo, é revelador da necessidade de perceber que àquele limite é melhor não voltar.
Joga-se por isso num equilíbrio entre o movimento coreografado e a representação do quotidiano. Ou, se quisermos, numa consciência do acto versus acto irreflectido. Nesta espécie de sombra chinesa em que o espectáculo se desenvolve sente-se, naturalmente, uma forte influência da coreografia e do movimento (ou daquilo que se entende por movimento), o que acaba por criar uma anulação do gesto quotidiano. Tudo se torna performático. É notória a contaminação pelo último espectáculo de Tiago Guedes, Materiais Diversos (2003), numa tentativa de compromisso entre o controlo dos gestos (para permitir a especulação) e a naturalidade dos mesmos (afinal trata-se de trabalhar o estereótipo). O que AM faz não é mais que colocar um espelho à boca de cena, de modo a forçar um duplo processo de identificação que se pode resumir como "Olha-me para que eu te veja". E tal posição pretende recusar a empatia fácil de um espectador que esteja ganho à partida. Vejam-se as reacções à canção desafinada cantada no final do espectáculo. É como se o espectador respirasse de alívio. E daí talvez não.
À pergunta "Como funciona o homem quando posto em palco?", AM propõe um eterno questionar, não porque não tenha já algumas respostas, mas porque seria tipicamente masculino querer impor a sua. E talvez seja essa a ponte para o que se segue (3).
(1) Da responsabilidade do departamento de dança do Centro Cultural de Belém;
(2) Cláudia Madeira, E no céu, de hoje, que nuvens há? in Artinsite n.º1, pp. 102-107, Transforma A.C., Torres Vedras, 2004;
(3) Pour Homme é o primeiro espectáculo de uma trilogia dedicada aos comportamentos masculino e feminino.
Esta espécie de "espectáculo(s)-tese" - que pode(m) ser interpretado(s) à luz de uma resposta contemporânea do "teatro-documento", tão comum nos anos 30 e 70 do século XX -, obriga a uma clarificação do papel do criador face ao espectador. Pode um criador propor-se a uma discussão quando o espectador não procura respostas? E que importância pode assumir essa discussão, quando se utiliza um palco para a realizar? A tendência do espectador será a de aceitar como dado adquirido o que quer que venha a passar-se em palco. Um espectador espera de um criador uma apresentação, um desenvolvimento e uma conclusão. AM dá só os tópicos em discussão. O resto segue depois.
A intenção é discutir/observar o homem a partir de referências históricas, sociais, iconográficas, culturais e sexuais. Contudo, não só o homem que se apresenta existe sem um modelo feminino como ainda assume a posição machista sobre o Criador - o homem feito à imagem de Deus, ele mesmo um homem. Logo, homem e Homem. Pour Homme é um espectáculo de homens para homens, não no sentido gay do termo (é, surpreendentemente heterossexual), mas entre duas frases tipo: "boys will be boys" e "a man's got to do what a man's got to do".
É ainda um espectáculo claramente narcísista, não no sentido pejorativo do termo, mas antes no que isso possa permitir o posicionamento do criador (um homem) no problema que ele mesmo levanta: representação devenu alteridade. Estas são as suas referências, os seus modelos, as suas dúvidas. Confrontando-as com a do espectador, uma nova teoria/um novo espectáculo surgirá. Pour Homme é, assim, uma obra em aberto, em que a vantagem está, curiosamente, do lado do espectador. Este já sabe quais são os alicerces do criador e pode rebatê-los. Ao criador resta-lhe esperar. Para depois se questionar.
Ao falar em referências pessoais, refiro-me ao trabalho de pesquisa que AM desenvolve e exemplifica. As sequências que vai apresentando resultam de um processo de observação/confrontação de modelos, esterótipos, conceitos e definições que mais não são que pré-conceitos em relação ao que se espera/o que é um homem. E é esta posição que atira Pour Homme para um trabalho antropológico mais do que um anedoctário de situações-tipo. Mesmo que seja a partir destas que o espectáculo se desenvolva.
Tomemos como exemplo o momento em que AM se apresenta em diversas poses/instantâneos/perfis masculinos e aposta num intercalar aparentemente descoordenado. No centro do palco, dividido por uma esquadria branca, o autor vai de Jesus Cristo ao Homem-Aranha e deste a Hitler, São Sebastião, Adão, faraó ou cowboy. Estas apresentações, precisamente por serem aparentemente aleatórias, desafiam o espectador a identificar os traços comuns e as diferenças nestes modelos masculinos. Todos são presença e ausência, já que, tendo-se tornado "maiores que a vida" dificilmente poderão ser encontrados na plateia do teatro. Será talvez por isso que os mais conseguidos são os de dificil identificação. Serão nesses que se esconde a razão de ser homem.
No extremo oposto desta "metamorfose" ("todos somos um só") temos o sr. "X" que usa palitos, boceja sem colocar a mão à frente da boca, coça o sexo, dança sem estilo e gaba-se das conquistas. A este, "perfeito nobody", todos reagem com graça, gargalhada fácil e até um certo desdém. Escondendo-se/esquivando-se, muito provavelmente, de uma imediata identificação. É por isso que quando AM entra em cena e, de costas para o público, urina para o chão do palco, o espectador é confrontado com os limites do papel que o homem representa no quotidiano. Que AM apresente este "boneco" logo nos momentos iniciais do espectáculo, é revelador da necessidade de perceber que àquele limite é melhor não voltar.
Joga-se por isso num equilíbrio entre o movimento coreografado e a representação do quotidiano. Ou, se quisermos, numa consciência do acto versus acto irreflectido. Nesta espécie de sombra chinesa em que o espectáculo se desenvolve sente-se, naturalmente, uma forte influência da coreografia e do movimento (ou daquilo que se entende por movimento), o que acaba por criar uma anulação do gesto quotidiano. Tudo se torna performático. É notória a contaminação pelo último espectáculo de Tiago Guedes, Materiais Diversos (2003), numa tentativa de compromisso entre o controlo dos gestos (para permitir a especulação) e a naturalidade dos mesmos (afinal trata-se de trabalhar o estereótipo). O que AM faz não é mais que colocar um espelho à boca de cena, de modo a forçar um duplo processo de identificação que se pode resumir como "Olha-me para que eu te veja". E tal posição pretende recusar a empatia fácil de um espectador que esteja ganho à partida. Vejam-se as reacções à canção desafinada cantada no final do espectáculo. É como se o espectador respirasse de alívio. E daí talvez não.
À pergunta "Como funciona o homem quando posto em palco?", AM propõe um eterno questionar, não porque não tenha já algumas respostas, mas porque seria tipicamente masculino querer impor a sua. E talvez seja essa a ponte para o que se segue (3).
(1) Da responsabilidade do departamento de dança do Centro Cultural de Belém;
(2) Cláudia Madeira, E no céu, de hoje, que nuvens há? in Artinsite n.º1, pp. 102-107, Transforma A.C., Torres Vedras, 2004;
(3) Pour Homme é o primeiro espectáculo de uma trilogia dedicada aos comportamentos masculino e feminino.
1 comentário:
:), merci
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