Análise a Marcações para um crime
encenação de Martim Pedroso
Espaço Teatro da Garagem 22 de Abril a 08 de Maio
Marcações para um crime presta-se a uma instalação performática em que os elementos convocados são dispostos à frente do espectador. Todo o espectáculo assenta num texto composto por didascálias ouvidas em voz-off e desenhado no papel-cenário que serve de palco. Martim Pedroso vai marcando no chão determinadas linhas e regras que nos indicam uma história de crime e mistério, em que o jogo teatral se força a uma luta com os níveis de suspense. Alfred Hitchcock falava de três níveis diferentes de suspense: quando só os espectadores sabiam, quando uma das personagens sabia e quando ninguém sabia. O espectáculo introduz um novo nível: quando todos sabem. O lado mais pertinente da proposta reside então num esforço de manipulação dessa ausência de suspense, em nome de uma ilusão teatral que se quer evoluída e ultrapassada.
Durante a primeira parte do espectáculo, um Martim Pedroso ausente de expressão, atravessa o papel-cenário armado de marcadores de cor forte (azul para o homem, verde para a mulher, um outro vermelho-sangue e um preto que só é usado nas marcações finais) e, seguindo as indicações do off dá-nos conta de uma história tão simples como qualquer outra que tenha servido de base para anos de mistério: um homem e uma mulher, um problema e um mordomo. No fim, uma morte. A terceira figura (é esse o nome da personagem de Martim Pedroso) chega a chamar à cena os outros intérpretes, pedindo-lhes que se coloquem nas marcas correctas. E como esta será, depois, uma proposta ausente de palavras, no chão aparecem desenhadas algumas onomatopeias.
E começa o espectáculo, se assim quisermos. Rita Calçada (ela), Luís Godinho (ele) e Luís Nascimento (o mordomo) entram no espaço delimitado pelas luzes expostas e pouco mutáveis do coreógrafo Tiago Guedes, para darem corpo a uma história já conhecida por todos. A história é, como se disse, simples. O homem tem um cigarro, a mulher tem um isqueiro. Das várias tentativas de resgate do objecto (obscuro objecto de desejo), fica uma história que é um relato de desprezo, humilhação e sequestro emocional. Ou seja, como em qualquer história de crime, as razões para o acto já não são plausíveis, mas antes tão mesquinhas e pequenas quanto pode ser a aniquilação do outro só pelo prazer imediato.
Contudo, nem sempre as marcações deste crime são cumpridas com rigor. E é nesta ambiguidade que reside o interesse do espectáculo. Portanto, a proposta do Poppi Grup trabalha uma ideia de manipulação, ciente de que nem todos os dados foram, afinal, revelados. E os novos dados não se prestam a um olhar diferente sobre a história, mas antes a uma forma de interpretação. Ou seja, aqui os actores dispõem-se a um jogo de prazer e disputa, em que importa mais a capacidade de ultrapassar as regras impostas. Se quisermos, a tornaram este crime seu.
Sendo que a proposta se desenvolve a partir de uma dramaturgia de intenções e movimentos que procuram preencher o texto ouvido ao início, de Marcações para um crime esperamos algo mais complexo, sobretudo porque a forma como é trabalhada não só é pertinente como pode ser lida como um dispositivo preparatório para o pós-acção. Ou seja, ao invés de dar a solução no fim, dá conta do fim no início, procurando na crença do espectador uma razão para continuar.
E o que é a sua mais-valia é, ao mesmo tempo a sua maior fragilidade, uma vez que parece haver uma certa resistência em ultrapassar a estrutura em que se desenvolve. Nomeadamente numa constante apresentação cartoonesca das figuras, retirando-lhes a dose certa de realismo necessária a todas as histórias de crime. Assim, acaba por serincapaz de dar ao espectador uma espécie de justificação que o mantenha agarrado à história. No limite, a história do isqueiro pode ser resumida a uma anedota. O que é, em si mesmo, uma limitação para a forma como este espectáculo foi pensado e defendido: um trabalho sobre a surpresa teatral e, ao mesmo tempo, a destruição do conforto da ilusão teatral.
Podemos considerar que as fragilidades de Marcações para um crime advêm de uma estrutura que sustentando-se num regime de tensões e enganos, ao qual não é alheia a inevitável cumplicidade do mordomo (aliás, plena de ambiguidade sexual em relação ao patrão), se torna maior que a própria proposta. No final, de pouco serve se os actores (porque nunca deixam de o ser), cumprem ou não as marcações. Quase desejamos que as cumpram. Afinal, uma boa história é aquela que sabe sempre quando terminar. E, Marcações para um crime, tinha-se suicidado ao fim da primeira parte.
Marcações para um crime
Encenação: Martim Pedroso; Desenho de Luz: Tiago Guedes; Fotografia: João Silveira Ramos; Direcção de Produção: José Wallenstein; Interpretação: Rita Calçada, Luís Godinho, Luís Nascimento, Martim Pedroso; Produção: Poppi Grup;
Espaço Teatro da Garagem 22 de Abril a 08 de Maio
encenação de Martim Pedroso
Espaço Teatro da Garagem 22 de Abril a 08 de Maio
Marcações para um crime presta-se a uma instalação performática em que os elementos convocados são dispostos à frente do espectador. Todo o espectáculo assenta num texto composto por didascálias ouvidas em voz-off e desenhado no papel-cenário que serve de palco. Martim Pedroso vai marcando no chão determinadas linhas e regras que nos indicam uma história de crime e mistério, em que o jogo teatral se força a uma luta com os níveis de suspense. Alfred Hitchcock falava de três níveis diferentes de suspense: quando só os espectadores sabiam, quando uma das personagens sabia e quando ninguém sabia. O espectáculo introduz um novo nível: quando todos sabem. O lado mais pertinente da proposta reside então num esforço de manipulação dessa ausência de suspense, em nome de uma ilusão teatral que se quer evoluída e ultrapassada.
Durante a primeira parte do espectáculo, um Martim Pedroso ausente de expressão, atravessa o papel-cenário armado de marcadores de cor forte (azul para o homem, verde para a mulher, um outro vermelho-sangue e um preto que só é usado nas marcações finais) e, seguindo as indicações do off dá-nos conta de uma história tão simples como qualquer outra que tenha servido de base para anos de mistério: um homem e uma mulher, um problema e um mordomo. No fim, uma morte. A terceira figura (é esse o nome da personagem de Martim Pedroso) chega a chamar à cena os outros intérpretes, pedindo-lhes que se coloquem nas marcas correctas. E como esta será, depois, uma proposta ausente de palavras, no chão aparecem desenhadas algumas onomatopeias.
E começa o espectáculo, se assim quisermos. Rita Calçada (ela), Luís Godinho (ele) e Luís Nascimento (o mordomo) entram no espaço delimitado pelas luzes expostas e pouco mutáveis do coreógrafo Tiago Guedes, para darem corpo a uma história já conhecida por todos. A história é, como se disse, simples. O homem tem um cigarro, a mulher tem um isqueiro. Das várias tentativas de resgate do objecto (obscuro objecto de desejo), fica uma história que é um relato de desprezo, humilhação e sequestro emocional. Ou seja, como em qualquer história de crime, as razões para o acto já não são plausíveis, mas antes tão mesquinhas e pequenas quanto pode ser a aniquilação do outro só pelo prazer imediato.
Contudo, nem sempre as marcações deste crime são cumpridas com rigor. E é nesta ambiguidade que reside o interesse do espectáculo. Portanto, a proposta do Poppi Grup trabalha uma ideia de manipulação, ciente de que nem todos os dados foram, afinal, revelados. E os novos dados não se prestam a um olhar diferente sobre a história, mas antes a uma forma de interpretação. Ou seja, aqui os actores dispõem-se a um jogo de prazer e disputa, em que importa mais a capacidade de ultrapassar as regras impostas. Se quisermos, a tornaram este crime seu.
Sendo que a proposta se desenvolve a partir de uma dramaturgia de intenções e movimentos que procuram preencher o texto ouvido ao início, de Marcações para um crime esperamos algo mais complexo, sobretudo porque a forma como é trabalhada não só é pertinente como pode ser lida como um dispositivo preparatório para o pós-acção. Ou seja, ao invés de dar a solução no fim, dá conta do fim no início, procurando na crença do espectador uma razão para continuar.
E o que é a sua mais-valia é, ao mesmo tempo a sua maior fragilidade, uma vez que parece haver uma certa resistência em ultrapassar a estrutura em que se desenvolve. Nomeadamente numa constante apresentação cartoonesca das figuras, retirando-lhes a dose certa de realismo necessária a todas as histórias de crime. Assim, acaba por serincapaz de dar ao espectador uma espécie de justificação que o mantenha agarrado à história. No limite, a história do isqueiro pode ser resumida a uma anedota. O que é, em si mesmo, uma limitação para a forma como este espectáculo foi pensado e defendido: um trabalho sobre a surpresa teatral e, ao mesmo tempo, a destruição do conforto da ilusão teatral.
Podemos considerar que as fragilidades de Marcações para um crime advêm de uma estrutura que sustentando-se num regime de tensões e enganos, ao qual não é alheia a inevitável cumplicidade do mordomo (aliás, plena de ambiguidade sexual em relação ao patrão), se torna maior que a própria proposta. No final, de pouco serve se os actores (porque nunca deixam de o ser), cumprem ou não as marcações. Quase desejamos que as cumpram. Afinal, uma boa história é aquela que sabe sempre quando terminar. E, Marcações para um crime, tinha-se suicidado ao fim da primeira parte.
Marcações para um crime
Encenação: Martim Pedroso; Desenho de Luz: Tiago Guedes; Fotografia: João Silveira Ramos; Direcção de Produção: José Wallenstein; Interpretação: Rita Calçada, Luís Godinho, Luís Nascimento, Martim Pedroso; Produção: Poppi Grup;
Espaço Teatro da Garagem 22 de Abril a 08 de Maio
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