quinta-feira, novembro 24, 2005

O lugar a quem o ocupa

Crítica a Absence - finalmente as montanhas da realidade
7ª MostraTE
23 Novembro 2005
21h30


O palco é habitado por uma instalação cénica que divide o chão numa grelha de quadrados, dominada por três módulos que correspondem a cada actor, (duas actrizes e um actor), povoada por elementos cénicos usados no espectáculo, como as bilhas, os novelos e os sapatos, e ainda uma cadeira e uma cabide de pé. Os três paralepípedos são caracterizados pelo desdobramento e pela diferente funcionalidade de cada face, ora como casas na mesma margem da rua, ora como móveis no interior das casas, ou apenas com um pano esticado onde as personagens denunciam a sua presença com o rosto, os dedos, a barriga. As soluções cénicas já se tornaram estratégias mais ou menos comuns mas ainda guardam o seu valor funcional.

O texto cresce em torno de um conto de Trás-os-Montes que narra o costume de levar a pessoa mais velha para o topo da montanha para morrer. A partir daí, ou para aí chegar, conta-se a história de uma criança chamada Perdida, que é adoptada pela aldeia, torna-se mulher, mãe, avó, e toda a sua vida é dominada pela presença da montanha encarnada, «uma montanha fria sem ter neve e alta por não ter sido medida». Esta presença do imaginário popular é reforçada pelos (fortes) cantares populares interpretados por mulheres.

Quando começamos a ouvir o texto a primeira sensação é a de que Absence é um espectáculo infantil onde nos contam uma história popular. As possibilidades lúdicas de um espaço cénico dominado pela ideia de jogo informal, onde os adereços possuem uma presença utilitária, onde a grelha definida no chão do palco define territórios, como um tabuleiro de jogo, ou os módulos habitados pelos actores, como um segundo corpo, parecem brinquedos, ou espaços para brincar. Por outro lado, a concentração da história da figura da criança Perdida, apresentada como criança, (interpretação segura de Ana Cloe), reforçando uma possível identificação de um público infantil com a personagem.

Por fim, a criação das cenas para os fragmentos de texto segue uma lógica lúdica, quando a criança lê pedaços de papel, ou quando Ana Cloe e Inês Rosado vão atribuindo sucessivo (con)texto aos gestos coreografados; e metafórica quando a capa em cima do cabide se torna a figuração de uma montanha, ou quando os pares de sapatos se tornam a figuração de personagens. Assim, pelas estratégias formais em torno do espaço cénico e da encenação, o espectáculo parece ter sido pensado para um público infantil, ideia reforçada por um texto que parte do imaginário popular para uma enunciação que privilegia a sua imagética, protagonizado pela personagem de uma criança, uma menina.

Mas o título em inglês faz desconfiar. Depois, toda a imagem cénica recorda espectáculos caracterizados pelo carácter demonstrativo, onde o jogo se torna condição performática, ou os momentos de simultaneidade de vozes e movimentos que multiplicavam possibilidades de leitura e, sobretudo, o final do espectáculo, onde parece tornar-se um espectáculo para o público em geral. O tom muda. Ouvimos um texto marcado pelo ritmo urbano, por linguagens técnicas que colocam toda a memória do espectáculo na direcção de outro sentido. A criança Perdida, ou o avô Perdido, de quem também se fala, têm uma coisa em comum. Eram perdidos porque eram estrangeiros na terra onde chegaram. Mas foram ficando. E, com o tempo, o que era estrangeiro passou a ser familiar.

Quando ouvimos o texto final, crescendo em torno da ideia de País, absorvendo aspectos de um lugar que envolve a voz que enuncia o texto e que assimila tudo o que vê como coisa própria, familiar. Nesse momento, o imaginário infantil e o imaginário popular aparecem como “contraprovas” da conclusão. Ou seja, o tom infantil num espectáculo para adultos e o tom popular num espectáculo marcado por uma estética urbana fazem com que o espectáculo se mantenha numa zona limítrofe até ao fim, quando a intenção se manifesta.

Em resumo, Absence é um bom espectáculo, dominado por uma linguagem lúdica que desenvolve um olhar sobre as relações sociais, recorrendo ao imaginário popular e infantil para uma reflexão sobre o tema do lugar, o lugar de cada um, através de lugares, hábitos e habitações. Pergunto-me se não se poderia enunciar o pressuposto final logo de início – o que impelia o espectáculo para uma leitura adulta, ao longo do espectáculo - e, em qualquer dos casos, se um espectáculo como este, manifestando preocupações éticas, talvez políticas, através de um discurso poético e uma encenação lúdica, não poderia ser um bom espectáculo para crianças?


Pedro Manuel

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