domingo, abril 03, 2005

Fim e princípio*

Análise ao espectáculo Daddy Daddy de Miguel Bonneville
Espaço Eira
23 e 24 de Março 2005

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No início de Daddy Daddy, Miguel Bonneville observa a plateia no espaço branco e quase asséptico da Eira 33 (1). Neste espectáculo, o recém-inaugurado espaço promove um confronto entre criador e espectadores, apostando numa expectativa inerente à condição biográfica a que a proposta se refere. Aposta a que não é alheia a tinta branca que enche cadeiras, paredes, chão e palco. Uma grande tela branca que se permite a ser usada conforme os discursos dos criadores. Ou, se quisermos, de uma partilha entre quem faz e quem vê com o objectivo de "pensar e reflectir sobre o lugar da criação na contemporaneidade" (2).

Esta recusa do espaço privado volta a ser prática corrente nos criadores, mas mais do que para eles é algo que funciona para o espectador. Sobretudo porque força a crença e o jogo de verdade a que se dá o nome de espectáculo. Porque, afinal, quem entra no jogo é quem vê. Quem faz já está no jogo há muito tempo.

Atrás de Miguel Bonneville encontramos uma parede feita de caixotes, fatos, adereços, arrumos e restos de espectáculos. Uma bela metáfora para o que se quer falar: memórias, recordações, 'entulho emocional'...

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O performer apresenta-se ora sentado no chão ou em contacto com os assistentes do espectáculo, estando ainda atento às mudanças de música (onde se inclui um Julio Iglésias em registo nostálico-opressivo). Miguel Bonneville não procura cruzar o olhar do espectador nem defende uma ideia de que o espectáculo já começou. Mas assume que a criação deve falar da vida. E no caso, deve contrariar uma distanciação entre realidade e ficção. Da parte do espectador existirá a tentação de fazer da proposta uma exposição emocional da vida pessoal do performer, tout court. E é nesta aparente contradição que se joga Daddy Daddy. Por um lado uma proposta performática generalizada sobre as relações filiais e do outro um exercício de reflexão pessoal sobre os efeitos e consequências dessas relações no modo de pensar e fazer objectos artísticos.

Qual é, portanto, a importância e pertinência da biografia de Miguel Bonneville na compreensão do espectáculo?

Nem todos os solos têm que ser auto-biográficos, mas a tendência é que falem a partir do performer. Por isso, é importante salientar o que Miguel Bonneville escreve na folha de sala de Daddy Daddy: "sou um entre muitos outros". Portanto, não estamos só a assistir a um 'espectáculo-confessionário' ou mesmo a um 'exorcismo', mas antes a uma apropriação/manipulação das referências do performer (no caso referências familiares). Consideremos, por isso, que Miguel Bonneville é, ao mesmo tempo, realidade e ficção.

E é nesse sentido que Daddy Daddy é tão honesto quanto honestas são as visões unilaterais sobre determinados factos. O performer fá-lo através de um dispositivo cénico. Há quem as guarde para sempre e apodreça em rancores. São maneiras diferentes de trabalhar a matéria de que somos compostos. A de Miguel Bonneville é, efectivamente, só mais uma entre outras.

Neste exercício de legítima defesa, Miguel Bonneville oferece-se a um trabalho de revisitação e projecções como se desfolhasse um albúm de fotografias. O performer constrói um espectáculo com dois ritmos, entrecruzando-os em nome de um sentimento que oscila entre o conformismo e a mágoa. Daddy Daddy é um conjunto de cenas impregnadas de uma carga emocional fortíssima que são interrompidas por uma preparação e um 'arranjar do espaço' em que o corpo (e mente) de Miguel Bonneville se escusam a qualquer demonstração de sentimento. Chega a ser impressionante a forma como o performer executa cortes radicais em momentos que identificam uma memória de dor, mágoa e espaço vazio onde deveria haver algo mais que o laço imposto pela vida. Esta forma de caminhar para as sequências como se nada fosse explorando-as depois até ao limite (incluindo violência física que conduz a uma abstracção dramatúrgica e corporal - a cena em que esmaga ratos de plástico, por exemplo) é, também, a forma como Miguel Bonneville quer reflectir sobre a relação com o pai (a sua e a dos outros).

É certo que não estamos longe de uma inevitável leitura edipiana. O performer chega até a apontar uma arma carregada de água para uns papéis colados à parede onde escreveu "I am your daddy", ao mesmo tempo que se ouve "Who the fuck (you think you are)?" de P. J. Harvey. E também destrói a imagem de um Santo António, colocando a cabeça do bébé no lugar do santo. Mas resumir Daddy Daddy a um ajuste de contas ou, no limite, ao mito grego é recusar a ideia de que a arte é um resultado da vida.

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E o que é interessante nesta proposta é a percepção de que há uma vontade de pensar artisticamente sobre a vida. E que esse pensamento só pode ser feito através de referências pessoais. Ideia que é acentuada pelo facto de sabermos que Miguel Bonneville tem 20 anos, logo, uma tendência natural para falar mais de si que do mundo. Que o performer consiga organizar as suas referências (sociais, culturais, estéticas, pessoais) sob a forma de uma proposta não-conformista e ausente de cedências ao 'diário adolescente' diz mais sobre a necessidade de se pensar o que deve ser o ensino das práticas artísticas do que a busca de uma formatação que tente resumir uma relação arte-vida.

Mas Daddy Daddy é, por isso, uma proposta que procura trabalhar o interior para pensar o exterior, sem cair num narcisismo barroco. O performer tem consciência de que está a apresentar-se para uma plateia, logo, a fazer um objecto ficcional. Qualquer insistência num discurso demasiado centrado em si impediria a ideia de "um entre muitos outros".

Daddy Daddy só pode ser entendido como uma proposta 'pós-esforço'. Ou seja, como o resultado de um percurso individual e amargo de procura de um lugar junto de alguém que nunca o desejou. Toda a atitude de Miguel Bonneville revela um pensamento cansado de pedir que olhem para ele. Daddy Daddy é, por isso, um espectáculo-limite e de resistência. Veja-se a cena em que o performer enfia repetidamente a cabeça numa tina de água e depois se seca junto à ventoinha como um constante voltar a nascer, e percebe-se que mais do que matar o pai, se procede a uma arrumação de sentimentos. Em nome da criação artística, obviamente. É o próprio a afirmar: "eu sou um performer, não um cirurgião plástico". Ou seja, é assumido ser impossível não ver nas suas obras uma certa componente de realidade.

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Por isso, Daddy Daddy é uma proposta que reflecte sobre o valor da verdade num objecto que se quer artístico. De que serve (e que peso tem) essa verdade? Ou afirmar isto e aquilo? Que nos diz isso da biografia do performer? E, em última instância, dos espectáculos em geral? Repare-se no momento em que Miguel Bonneville lê uma longa carta ao pai, procurando fazê-lo como se de um momento cinematográfico se tratasse. Ao fundo ouvimos o som das ondas e das gaivotas na praia. De cada vez que chega ao fim a gravação, o performer pára de ler e recomeça quando o ambiente se volta a instalar. A carta de despedida e o som definem a relação das 'duas personagens' como uma feita de detritos. As gaivotas que se alimentam do lixo passam por uma metáfora da relação que lhe ficou nas mãos: "colecciono-te por aí, para não te perder e não me sentir sozinho". No limite, qualquer semelhança com a realidade é pura ficção.

Neste exercício de consciente ausência de glamour não é dispiciente pensar-se numa realidade de destruição continuada e escondida, o que justifica a ambiguidade final que confunde o espectador ao ponto de não saber se a proposta chegou ao fim. Miguel Bonneville volta a assumir uma posição e imagem ausentes de emoção e Daddy Daddy suspende-se na necessidade de perceber o que fazer com a memória, o sentimento e a imperiosa vontade de evoluir.

(1) Espaço da Eira 33, Rua Camilo Castelo Branco, 33 - 1º, Lisboa
(2) texto programático apresentado na folha de sala do espectáculo

*Fim e princípio é o título de um poema de Wislawa Szymborska que termina assim: "Na relva onde nasceram/ causas e efeitos,/ terá de estender-se alguém/ com um palito nos dentes/ e olhar perdido nas nuvens."


fotografias de Sofia Arriscado fornecidas por Miguel Bonneville

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