À volta de TRIO
uma conversa com Tiago Guedes em exclusivo para O Melhor Anjo
[3ª parte]
Termina hoje a publicação da conversa com o coreógrafo Tiago Guedes, no âmbito da estreia em Portugal da sua nova criação, TRIO. O espectáculo apresenta-se hoje na Culturgest, em Lisboa, às 21h30. Mais informações aqui. Em Portugal TRIO será apresentado no Porto, no Teatro Carlos Alberto a 30 de Junho e 01 de Julho e em Faro, em Setembro, durante a Capital Nacional da Cultura.
[a relação com o público e os espaços de apresentação]
Tem alguma importância estrear na Culturgest, atendendo a que se trata de um público especial (especialista até) e exigente? Há expectativas ou receios? Implicou isso na utilização de uma plateia no palco e a não utilização da plateia da sala.
Não, isso foi decidido antes da peça estar feita, por eu não gostar da relação público-palco na Culturgest. É distante, sobretudo. E também achar que não há 700 pessoas para três dias de espectáculos. E como o Trio tem a ver com a relação com o público, é muito importante ver a peça de cima, para se perceber a geografia do espaço, uma vez que há muita escrita naquele quadrado: linhas, diagonais, coisa que afunilam que se juntam... E para tu te aperceberes bem disso tens que ter um olhar não bi, mas tridimensional.
Mas é preciso não nos enganarmos e ter consciência que o público da Culturgest é o público da dança, do teatro, das artes plásticas. Isto para dizer que, de alguma forma, é um público que já conhece o meu trabalho. Houve uma pessoa em França que me disse estar com muita curiosidade em saber o que é que pessoas que não conhecem o meu trabalho acham da peça. Aqui é mais difícil porque as pessoas conhecem bem o meu trabalho. Na Culturgest a questão é outra: "como é que as pessoas aguentam esta peça". Ou como é que enfrentam este combate. Não digo que seja uma coisa muito diferente, vai é para outro lado e põe outras questões.
Mas o peso institucional da Culturgest não me assusta, porque eu sei que o público é um que está habituado a ver-me. Eventualmente há um público "só" da Culturgest, mas que eu não conheço.
E tu fazes os espectáculos para que público?
Mau era se eu pensasse que estava a fazer um espectáculo para o público da Culturgest . Eu faço espectáculos porque acho que tenho que fazer para o meu percurso artístico para as minhas preocupações. Depois, para o público que se interessar por isso. E a não ser que seja um convite, eu não penso que faço os espectáculos para este ou aquele público.
Mas não é de descurar uma leitura que permita pensar o Trio como uma resposta a um espaço cujo peso institucional se faz sentir.
Pois, o problema é que a Cultugest é um espaço de referência, seja pelos espectáculos que apresenta, a sua qualidade e currículo... e isso ao início assustava-me. Mas se eu ficasse a pensar nisso, apavorava-me e não fazia nada. Eu fiz o trabalho que queria fazer e se tivesse ficado apavorado tinha feito um espectáculo na linha de Materiais Diversos. Eu também sei que o cunho de qualidade, dentro da investigação, está lá. Há uma base, a da construção e apuro coreográfico, que existe. E se as pessoas aderem ou não, é completamente diferente. Há peças que não adiro mas subscrevo.
Na Cullturgest há, obviamente, uma expectativa grande. Mas que posso eu fazer? Nada. Porque assim teria condicionantes que se tornavam condicionantes artísticas. E para mim é estranho existirem coisas de fora que condicionem o que quero fazer, porque a dada altura já não sabes se estás a fazer o queres ou achas dever fazer, mas para preencher expectativas. E é aí que eu acho muito perigoso agarrares-te a fórmulas e expectativas do público, programadores, subsídios, co-produções.
Interessam-te opiniões mais humanas e menos técnicas?
Interessa-me que as pessoas saibam que isto é um trabalho de investigação, independentemente de serem especialistas. As que não são especialistas, têm mais dificuldade em perceber essa dimensão. Interessam-me as duas partes. Mas não faço espectáculos para os pares ou para o público em geral. Faço o que acho que tenho que fazer. E depois há coisas que cada um vê, conforme o lado de onde vier. Depois posso pensar nisso e é curioso que, por exemplo o Materiais Diversos era um espectáculo para os dois públicos. Mesmo não o tendo feito nem para um nem para outro.
Eu sou defensor de que um público que recusa uma proposta e vai embora pode ser mais interessante que um que se aborrece até ao fim do espectáculo. Porque isso significa que o espectáculo lhes diz alguma coisa.
Repara, em França houve pessoas que saíram, algumas que vieram falar comigo no final, outras que me disseram ser a grande desilusão do ano... e ouve outras que adoraram a peça. Eu percebo perfeitamente que existam pessoas que se aborrecem de morte com esta peça. Se tu não entras nesta peça, e ela te fica como algo muito distante, aborreces-te. Mesmo dizendo que esta peça não é para pares nem público em geral, esta peça requer uma disponibilidade. Tens que estar disponível para ver aquilo e poderes entrar. Houve uma outra programadora francesa que, comentou que depois de perceber que o espectáculo era "só aquilo", relaxou e entrou completamente na peça. Usufruiu daquilo que estava a ver. E isso agrada-me. A partir desta coisa da repetição, poderes encontrar um lugar enquanto espectador.
É uma proposta para perceber quem é que são os verdadeiros espectadores?
É, claramente. Quem se consegue envolver é alguém que está com uma disponibilidade muito grande. Portanto não é ver quem é que fica ou sai, mas quem se envolve. Esta peça não tem picos e nesta horizontalidade vai-se abrindo um bocadinho. Mas é muito horizontal. Não tem tchans ou momentos em que diga "é aqui que agarro o público". Esses momentos existem, mas se o público já lá estiver. E se o público estiver a olhar e a pensar noutra coisa, esses picos nunca existirão. Porque estes picos têm a ver com pequenas mudanças de ritmo, de velocidade ou alterações subtis, das quais só dás conta se estiveres a acompanhar a peça. Eu tenho a consciência de que Trio é um espectáculo que exige bastante do público. Mas também sei que não posso exigir tanto do público. Ou de todo o público.
E esse pedido de "partilha de responsabilização" é para quê?
Para mim serve para ser cada vez mais exigente. Sou completamente contra trabalhos levianos e ao trabalhares numa área tão específica como é a dança contemporânea e a investigação sobre isso, o grau de exigência é algo muito importante. O que não quer dizer que isso tenha que ser feito com trabalhos áridos ou tão áridos como este. Há espectáculos hilariantes com um grau de exigência enorme.
Acho, por exemplo, que o Materiais Diversos tinha um grau de exigência forte porque implicava uma construção também ela muito forte. Este é mais árido e bruto porque o próprio conceito da peça é mais em bruto. Porque o sistema que eu construí é, ao mesmo tempo, uma prisão. O que me agrada nesta ideia é pensar como é que podes encontrar liberdade numa prisão. Ou seja, ao teres esta coisa tão definida e fechada, perceber como é que a partir daí encontras uma liberdade. E então começas a saborear as pequenas variações, os ritmos, velocidades, níveis e subtilezas que a peça pode ter.
Por isso eu gosto da ideia de afunilar, afunilar, afunilar até encontramos uma coisa (esta imagem construída a partir de três pessoas), para a partir dela poderes voltar a abrir.
Pode então dizer-se que Trio é uma peça de ilusão (ou oásis) em que as pessoas podem estabelecer as suas próprias relações e ligações pessoais ou coreográficas. Seja para outros objectos, não só teus ou dos outros intérpretes, mas também para as reacções dos outros espectadores.
Ou podes ver também a coisa de uma forma meramente técnica. Ver a geografia do espaço e as linhas que o definem; analisar a coisa de uma forma técnica é algo que só as pessoas especializadas e da área conseguem. O público normal não o faz. Mas se quiseres podes ver esta peça como uma escrita coreográfica. O que no fundo, é. Claro que depois é mais do que isso. Mas há um trabalho de escrita coreográfica muito grande.
Com três notas...
Com três notas e dois jokers: a observação e o andar.
[condições de produção]
Fala-me um pouco de Armentières, e dessa relação especial com o espaço, enquanto criador-residente para os próximos três anos. Que importância tem para ti, enquanto criador?
Este convite foi uma coisa que eu não estava à espera, até porque não é usual acontecer, pelo menos a coreógrafos portugeses. A franceses sim. A maior parte são residentes de algum teatro e têm acordos com os teatros. O que faz é com que eu tenha que programar a minha vida artística até 2008 e cria uma âncora em França, que já tinha a nível do circuito. Há quatro ou cinco espaços que acompanham e programa os meus espectáculos. Mas agora esta âncora é maior.
Implica, por exemplo e entre várias coisas, que as estreias sejam feitas ali, vou fazer um grande workshop por ano com pessoas locais, residências de artistas que eu proponho para pensarem comigo, reposições de trabalhos antigos (um por cada ano de residência), uma criação para amadores (2006), infantil (2007) e nova criação (2008), uma espécie de carta branca na programação, podendo eu propor espectáculos...
Ou seja, é um projecto muito mais alargado que tem também muitas vantagens financeiras. O que faz com que tudo tome outro sentido. Porque mesmo o pouco em França é muito cá. E quando estás habituado a ver os teus colegas coreógrafos belgas ou franceses com o mesmo trabalho que tu a terem uma situação muito mais priveligiada (estatuto social, por exemplo), para mim é uma ajuda bastante grande. Faz com que eu me consiga organizar e não tenha que contar os tostões todos as semanas. Mas sobretudo que me organize artísticamente.
Esse convite surgiu como?
Parte de uma cumplicidade grande com a directora artística do teatro, que me conhece e acompanhava já o meu trabalho. O convite, em si, é recente. Ela viu o Um Solo [2000], depois viu o Espectáculo com estreia marcada [2002] no Teatro da Bastilha, em Paris, co-produziu o Materiais Diversos, com estreia lá e agora o Trio, também com estreia lá. A residência começa em Setembro, no início da época 2005/2006.
Como é que pensas, vês ou sentes a cena portuguesa?
Eu sou muito radical acerca de uma coisa sobre a qual me vão cair em cima quando lerem isto, mas que eu assumo cada vez mais: eu acho que há sempre o problema dos subsídios. Uma gritaria e discussão que para mim não dizem o que são os subsídios: cosmética. Os subsídios dão-te dinheiro para trabalhar, mas trabalhas sempre com muito poucas condições. Condições momentâneas.
No limite eu acho que se deveriam deixar de dar subsídios durante um ano e investir o dinheiro para criar o estatuto social para os artistas. Não só para os coreógrafos, mas para todos: actores, bailarinos, técnicos, produtores... cinema, dança, teatro... Porque a médio prázio o estatuto social permite-te teres condições para trabalhar. Sabes que se não tiveres trabalho (espectáculos) podes ter um rendimento mínimo mensal que te faça continuar a trabalhar, até porque o trabalho do coreógrafo, por exemplo, não é estar sempre a fazer peças ou a ensaiar. São tempos de pesquisa, são viagens que tens que fazer para te informares sobre este ou aquele tema.
Eu acho que a grande falha e o grande trabalho a fazer não é na política de subsídios, mas no estatuto sócio-profissional do artista. Porque quando eu falo da situação em Portugal, lá fora as pessoas ficam parvas. Dizem que têm isto regulado há 20 ou 30 anos. E é aí que tu vês a forma como a cultura, os artistas e os apoios culturais são tratados em Portugal: como uma coisa muito fraca. Quando tu dizes que és artista, as pessoas perguntam logo o que é tu fazes mais.
Eu não me posso queixar muito, mas imagina que de um momento para o outro as peças deixam de circular... eu fico sem dinheiro. Eu comparo a situação com França, porque é onde trabalho mais e vejo a situação dos meus colegas franceses e mesmo que eu trabalhe mais do que eles, as condições que eles têm são imensas. Eles apresentam o número de horas que trabalham, 512 mínimo, através dos teatros por onde passam e depois disso tens um ano onde recebes 80% sobre a média do dinheiro que recebeste. No limite podes estar oito meses sem trabalhar. E para voltares a ter o estatuto, tens que apresentar outra vez esse número de horas. Mas tens sempre uma base assegurada com relação ao trabalho que fizeste. Claro que isto é um sistema ideal, mas controverso. Houve há dois anos as greves dos intermitentes, mas ainda assim é um modelo de excepção.
Eu não digo a importação deste modelo, porque para isso era necessário teres dinheiro para a área da cultura que o país não tem. Mas isto precisa ser pensado de alguma forma. Há uma precariedade muito grande no nosso trabalho. E nós para fazermos um bom trabalho e de qualidade, só podemos fazer isto.
Mas achas que há uma classe artística que tenha a capacidade de reinvindicar mais do que o subsídio momentâneo, continuando a batalhar mais do que as atribuições regulares?
Não há. Ainda que na REDE [Associação de Estruturas para a Dança] se fale muito disso, mas parece que de cada vez que se abrem os concursos se esquece isso. E os concursos são um mal menor, não resolve e são cosmética total. Precisas de um estatuto sócio-profissional.
É horrível. Qualquer coreógrafo da minha geração, lá fora, não faz mais nada. E aqui quantos é que não sabes que fazem outras coisas, que não são a criação? E é triste ver isso porque sabes de talentos desperdiçados por causa disso, porque não têm a disponibilidade e a capacidade de trabalharem só para a criação. Isso é alarmante e faz-me pensar se eu não deveria equacionar continuar o meu trabalho lá fora. Ainda por cima quando agora tenho condições para o fazer.
Porque com este projecto em França, basta querer e eu abro uma associação minha em França e torno-me intermitente. Nem é preciso estar lá a viver.
O que é que te faz continuar aqui?
O que me prende é este compromisso com a Re.Al . E o facto de criares aqui e as pessoas reconhecerem o teu trabalho, mas o que me prende aqui em termos de trabalho é muito a relação com a Re.Al . Que me produzem e permitem que me dedique só à criação. Mas eu não me posso queixar. Quantos é que podem dizer o mesmo?
Quinta: [percurso] + [o objecto]
Sexta: [o corpo e a solidão] + [trabalhar com outros intérpretes]
Conversa realizada a 07 de Abril, em Lisboa. Agradece-se a disponibilidade de Tiago Guedes e a colaboração da Re.Al e Bazar do Vídeo na cedência de material.
Sobre Tiago Guedes neste blog:
Materiais Diversos, 2003
Proposta para os LAB 11 (onde se deu a ver uma ideia de TRIO)
uma conversa com Tiago Guedes em exclusivo para O Melhor Anjo
[3ª parte]
Termina hoje a publicação da conversa com o coreógrafo Tiago Guedes, no âmbito da estreia em Portugal da sua nova criação, TRIO. O espectáculo apresenta-se hoje na Culturgest, em Lisboa, às 21h30. Mais informações aqui. Em Portugal TRIO será apresentado no Porto, no Teatro Carlos Alberto a 30 de Junho e 01 de Julho e em Faro, em Setembro, durante a Capital Nacional da Cultura.
[a relação com o público e os espaços de apresentação]
Tem alguma importância estrear na Culturgest, atendendo a que se trata de um público especial (especialista até) e exigente? Há expectativas ou receios? Implicou isso na utilização de uma plateia no palco e a não utilização da plateia da sala.
Não, isso foi decidido antes da peça estar feita, por eu não gostar da relação público-palco na Culturgest. É distante, sobretudo. E também achar que não há 700 pessoas para três dias de espectáculos. E como o Trio tem a ver com a relação com o público, é muito importante ver a peça de cima, para se perceber a geografia do espaço, uma vez que há muita escrita naquele quadrado: linhas, diagonais, coisa que afunilam que se juntam... E para tu te aperceberes bem disso tens que ter um olhar não bi, mas tridimensional.
Mas é preciso não nos enganarmos e ter consciência que o público da Culturgest é o público da dança, do teatro, das artes plásticas. Isto para dizer que, de alguma forma, é um público que já conhece o meu trabalho. Houve uma pessoa em França que me disse estar com muita curiosidade em saber o que é que pessoas que não conhecem o meu trabalho acham da peça. Aqui é mais difícil porque as pessoas conhecem bem o meu trabalho. Na Culturgest a questão é outra: "como é que as pessoas aguentam esta peça". Ou como é que enfrentam este combate. Não digo que seja uma coisa muito diferente, vai é para outro lado e põe outras questões.
Mas o peso institucional da Culturgest não me assusta, porque eu sei que o público é um que está habituado a ver-me. Eventualmente há um público "só" da Culturgest, mas que eu não conheço.
E tu fazes os espectáculos para que público?
Mau era se eu pensasse que estava a fazer um espectáculo para o público da Culturgest . Eu faço espectáculos porque acho que tenho que fazer para o meu percurso artístico para as minhas preocupações. Depois, para o público que se interessar por isso. E a não ser que seja um convite, eu não penso que faço os espectáculos para este ou aquele público.
Mas não é de descurar uma leitura que permita pensar o Trio como uma resposta a um espaço cujo peso institucional se faz sentir.
Pois, o problema é que a Cultugest é um espaço de referência, seja pelos espectáculos que apresenta, a sua qualidade e currículo... e isso ao início assustava-me. Mas se eu ficasse a pensar nisso, apavorava-me e não fazia nada. Eu fiz o trabalho que queria fazer e se tivesse ficado apavorado tinha feito um espectáculo na linha de Materiais Diversos. Eu também sei que o cunho de qualidade, dentro da investigação, está lá. Há uma base, a da construção e apuro coreográfico, que existe. E se as pessoas aderem ou não, é completamente diferente. Há peças que não adiro mas subscrevo.
Na Cullturgest há, obviamente, uma expectativa grande. Mas que posso eu fazer? Nada. Porque assim teria condicionantes que se tornavam condicionantes artísticas. E para mim é estranho existirem coisas de fora que condicionem o que quero fazer, porque a dada altura já não sabes se estás a fazer o queres ou achas dever fazer, mas para preencher expectativas. E é aí que eu acho muito perigoso agarrares-te a fórmulas e expectativas do público, programadores, subsídios, co-produções.
Interessam-te opiniões mais humanas e menos técnicas?
Interessa-me que as pessoas saibam que isto é um trabalho de investigação, independentemente de serem especialistas. As que não são especialistas, têm mais dificuldade em perceber essa dimensão. Interessam-me as duas partes. Mas não faço espectáculos para os pares ou para o público em geral. Faço o que acho que tenho que fazer. E depois há coisas que cada um vê, conforme o lado de onde vier. Depois posso pensar nisso e é curioso que, por exemplo o Materiais Diversos era um espectáculo para os dois públicos. Mesmo não o tendo feito nem para um nem para outro.
Eu sou defensor de que um público que recusa uma proposta e vai embora pode ser mais interessante que um que se aborrece até ao fim do espectáculo. Porque isso significa que o espectáculo lhes diz alguma coisa.
Repara, em França houve pessoas que saíram, algumas que vieram falar comigo no final, outras que me disseram ser a grande desilusão do ano... e ouve outras que adoraram a peça. Eu percebo perfeitamente que existam pessoas que se aborrecem de morte com esta peça. Se tu não entras nesta peça, e ela te fica como algo muito distante, aborreces-te. Mesmo dizendo que esta peça não é para pares nem público em geral, esta peça requer uma disponibilidade. Tens que estar disponível para ver aquilo e poderes entrar. Houve uma outra programadora francesa que, comentou que depois de perceber que o espectáculo era "só aquilo", relaxou e entrou completamente na peça. Usufruiu daquilo que estava a ver. E isso agrada-me. A partir desta coisa da repetição, poderes encontrar um lugar enquanto espectador.
É uma proposta para perceber quem é que são os verdadeiros espectadores?
É, claramente. Quem se consegue envolver é alguém que está com uma disponibilidade muito grande. Portanto não é ver quem é que fica ou sai, mas quem se envolve. Esta peça não tem picos e nesta horizontalidade vai-se abrindo um bocadinho. Mas é muito horizontal. Não tem tchans ou momentos em que diga "é aqui que agarro o público". Esses momentos existem, mas se o público já lá estiver. E se o público estiver a olhar e a pensar noutra coisa, esses picos nunca existirão. Porque estes picos têm a ver com pequenas mudanças de ritmo, de velocidade ou alterações subtis, das quais só dás conta se estiveres a acompanhar a peça. Eu tenho a consciência de que Trio é um espectáculo que exige bastante do público. Mas também sei que não posso exigir tanto do público. Ou de todo o público.
E esse pedido de "partilha de responsabilização" é para quê?
Para mim serve para ser cada vez mais exigente. Sou completamente contra trabalhos levianos e ao trabalhares numa área tão específica como é a dança contemporânea e a investigação sobre isso, o grau de exigência é algo muito importante. O que não quer dizer que isso tenha que ser feito com trabalhos áridos ou tão áridos como este. Há espectáculos hilariantes com um grau de exigência enorme.
Acho, por exemplo, que o Materiais Diversos tinha um grau de exigência forte porque implicava uma construção também ela muito forte. Este é mais árido e bruto porque o próprio conceito da peça é mais em bruto. Porque o sistema que eu construí é, ao mesmo tempo, uma prisão. O que me agrada nesta ideia é pensar como é que podes encontrar liberdade numa prisão. Ou seja, ao teres esta coisa tão definida e fechada, perceber como é que a partir daí encontras uma liberdade. E então começas a saborear as pequenas variações, os ritmos, velocidades, níveis e subtilezas que a peça pode ter.
Por isso eu gosto da ideia de afunilar, afunilar, afunilar até encontramos uma coisa (esta imagem construída a partir de três pessoas), para a partir dela poderes voltar a abrir.
Pode então dizer-se que Trio é uma peça de ilusão (ou oásis) em que as pessoas podem estabelecer as suas próprias relações e ligações pessoais ou coreográficas. Seja para outros objectos, não só teus ou dos outros intérpretes, mas também para as reacções dos outros espectadores.
Ou podes ver também a coisa de uma forma meramente técnica. Ver a geografia do espaço e as linhas que o definem; analisar a coisa de uma forma técnica é algo que só as pessoas especializadas e da área conseguem. O público normal não o faz. Mas se quiseres podes ver esta peça como uma escrita coreográfica. O que no fundo, é. Claro que depois é mais do que isso. Mas há um trabalho de escrita coreográfica muito grande.
Com três notas...
Com três notas e dois jokers: a observação e o andar.
[condições de produção]
Fala-me um pouco de Armentières, e dessa relação especial com o espaço, enquanto criador-residente para os próximos três anos. Que importância tem para ti, enquanto criador?
Este convite foi uma coisa que eu não estava à espera, até porque não é usual acontecer, pelo menos a coreógrafos portugeses. A franceses sim. A maior parte são residentes de algum teatro e têm acordos com os teatros. O que faz é com que eu tenha que programar a minha vida artística até 2008 e cria uma âncora em França, que já tinha a nível do circuito. Há quatro ou cinco espaços que acompanham e programa os meus espectáculos. Mas agora esta âncora é maior.
Implica, por exemplo e entre várias coisas, que as estreias sejam feitas ali, vou fazer um grande workshop por ano com pessoas locais, residências de artistas que eu proponho para pensarem comigo, reposições de trabalhos antigos (um por cada ano de residência), uma criação para amadores (2006), infantil (2007) e nova criação (2008), uma espécie de carta branca na programação, podendo eu propor espectáculos...
Ou seja, é um projecto muito mais alargado que tem também muitas vantagens financeiras. O que faz com que tudo tome outro sentido. Porque mesmo o pouco em França é muito cá. E quando estás habituado a ver os teus colegas coreógrafos belgas ou franceses com o mesmo trabalho que tu a terem uma situação muito mais priveligiada (estatuto social, por exemplo), para mim é uma ajuda bastante grande. Faz com que eu me consiga organizar e não tenha que contar os tostões todos as semanas. Mas sobretudo que me organize artísticamente.
Esse convite surgiu como?
Parte de uma cumplicidade grande com a directora artística do teatro, que me conhece e acompanhava já o meu trabalho. O convite, em si, é recente. Ela viu o Um Solo [2000], depois viu o Espectáculo com estreia marcada [2002] no Teatro da Bastilha, em Paris, co-produziu o Materiais Diversos, com estreia lá e agora o Trio, também com estreia lá. A residência começa em Setembro, no início da época 2005/2006.
Como é que pensas, vês ou sentes a cena portuguesa?
Eu sou muito radical acerca de uma coisa sobre a qual me vão cair em cima quando lerem isto, mas que eu assumo cada vez mais: eu acho que há sempre o problema dos subsídios. Uma gritaria e discussão que para mim não dizem o que são os subsídios: cosmética. Os subsídios dão-te dinheiro para trabalhar, mas trabalhas sempre com muito poucas condições. Condições momentâneas.
No limite eu acho que se deveriam deixar de dar subsídios durante um ano e investir o dinheiro para criar o estatuto social para os artistas. Não só para os coreógrafos, mas para todos: actores, bailarinos, técnicos, produtores... cinema, dança, teatro... Porque a médio prázio o estatuto social permite-te teres condições para trabalhar. Sabes que se não tiveres trabalho (espectáculos) podes ter um rendimento mínimo mensal que te faça continuar a trabalhar, até porque o trabalho do coreógrafo, por exemplo, não é estar sempre a fazer peças ou a ensaiar. São tempos de pesquisa, são viagens que tens que fazer para te informares sobre este ou aquele tema.
Eu acho que a grande falha e o grande trabalho a fazer não é na política de subsídios, mas no estatuto sócio-profissional do artista. Porque quando eu falo da situação em Portugal, lá fora as pessoas ficam parvas. Dizem que têm isto regulado há 20 ou 30 anos. E é aí que tu vês a forma como a cultura, os artistas e os apoios culturais são tratados em Portugal: como uma coisa muito fraca. Quando tu dizes que és artista, as pessoas perguntam logo o que é tu fazes mais.
Eu não me posso queixar muito, mas imagina que de um momento para o outro as peças deixam de circular... eu fico sem dinheiro. Eu comparo a situação com França, porque é onde trabalho mais e vejo a situação dos meus colegas franceses e mesmo que eu trabalhe mais do que eles, as condições que eles têm são imensas. Eles apresentam o número de horas que trabalham, 512 mínimo, através dos teatros por onde passam e depois disso tens um ano onde recebes 80% sobre a média do dinheiro que recebeste. No limite podes estar oito meses sem trabalhar. E para voltares a ter o estatuto, tens que apresentar outra vez esse número de horas. Mas tens sempre uma base assegurada com relação ao trabalho que fizeste. Claro que isto é um sistema ideal, mas controverso. Houve há dois anos as greves dos intermitentes, mas ainda assim é um modelo de excepção.
Eu não digo a importação deste modelo, porque para isso era necessário teres dinheiro para a área da cultura que o país não tem. Mas isto precisa ser pensado de alguma forma. Há uma precariedade muito grande no nosso trabalho. E nós para fazermos um bom trabalho e de qualidade, só podemos fazer isto.
Mas achas que há uma classe artística que tenha a capacidade de reinvindicar mais do que o subsídio momentâneo, continuando a batalhar mais do que as atribuições regulares?
Não há. Ainda que na REDE [Associação de Estruturas para a Dança] se fale muito disso, mas parece que de cada vez que se abrem os concursos se esquece isso. E os concursos são um mal menor, não resolve e são cosmética total. Precisas de um estatuto sócio-profissional.
É horrível. Qualquer coreógrafo da minha geração, lá fora, não faz mais nada. E aqui quantos é que não sabes que fazem outras coisas, que não são a criação? E é triste ver isso porque sabes de talentos desperdiçados por causa disso, porque não têm a disponibilidade e a capacidade de trabalharem só para a criação. Isso é alarmante e faz-me pensar se eu não deveria equacionar continuar o meu trabalho lá fora. Ainda por cima quando agora tenho condições para o fazer.
Porque com este projecto em França, basta querer e eu abro uma associação minha em França e torno-me intermitente. Nem é preciso estar lá a viver.
O que é que te faz continuar aqui?
O que me prende é este compromisso com a Re.Al . E o facto de criares aqui e as pessoas reconhecerem o teu trabalho, mas o que me prende aqui em termos de trabalho é muito a relação com a Re.Al . Que me produzem e permitem que me dedique só à criação. Mas eu não me posso queixar. Quantos é que podem dizer o mesmo?
Quinta: [percurso] + [o objecto]
Sexta: [o corpo e a solidão] + [trabalhar com outros intérpretes]
Conversa realizada a 07 de Abril, em Lisboa. Agradece-se a disponibilidade de Tiago Guedes e a colaboração da Re.Al e Bazar do Vídeo na cedência de material.
Sobre Tiago Guedes neste blog:
Materiais Diversos, 2003
Proposta para os LAB 11 (onde se deu a ver uma ideia de TRIO)
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