sexta-feira, abril 15, 2005

À volta de TRIO
Uma conversa com Tiago Guedes em exclusivo para O Melhor Anjo
[2ª parte]

Apresenta-se hoje a 2ª parte da conversa com o coreógrafo Tiago Guedes, no âmbito da estreia em Portugal da sua nova criação, TRIO. O espectáculo será apresentado hoje e amanhã, sempre às 21h30, na Culturgest. Mais informações aqui.

[o corpo e a solidão]

Como se pensa a relação com o corpo, a partir de três propostas aparentemente estanques e finitas?

Se eu posso resumir a forma como trabalho com o corpo, trata-se de um corpo funcional. Um que faça as coisas funcionar. Neste espectáculo trata-se do corpo-matéria e, se quisermos, um corpo num estado muito específico, quase hipnótico. Um corpo dedicado e quase como se só pudesse fazer aquilo, e ainda assim tivesse um prazer nesse fazer, saboreando as pequenas variações que aquilo pode ter. Trata-se, de alguma forma, de um corpo muito mais ficcional, não tão agarrado à realidade. Enquanto que em outros espectáculos era um corpo muito próximo do espectador que, inclusivé, permitia a que o espectador se revisse. Aqui o corpo é muito mais distante.

Mas um corpo que se permite a receber outras coisas ou está fechado?

Ali o corpo está fechado. Até o próprio dispositivo cénico [um quadrado branco dentro de um espaço preto e cuja luz também ajuda a fechar esse quadrado, desenhado por Caty Olive] indicia isso. É quase como se aqueles corpos fossem parte daquele espaço e onde nesse espaço só acontecesse isso. Nesta peça gosto de pensar no espaço como mesa de ensaio, onde se explora um coisa quase como um objecto científico. E ao explorares observas todas as possibilidades a que se permite. Aqui o corpo é realmente diferente dos outros espectáculos.

E são corpos solitários?

São corpos solitários... mesmo que eles se juntem e trabalhem à volta do mesmo. As relações que têm, de olhares por exemplo, podem indiciar uma relação mas uma relação técnica, científica... mecânica: "eu sei que tu estás a fazer o mesmo que eu, e vamos lá ver como é que juntos fazemos isto ainda melhor". Trata-se de uma cumplicidade muito técnica. Pode por isso dizer-se que esta é uma peça muito conceptual, porque é acerca disto. E tudo, tanto a luz, como os corpos ou a coreografia que fazemos existem para servir este conceito. Não há, por isso, grande liberdade para coisa muito pessoais no resultado final.

Nessa cumplicidade técnica, podemos incluir uma ideia de combate?

Não, antes pelo contrário. Trabalhámos exactamente para anular isso. O que eu queria era, mesmo, três pessoas a trabalharem na mesma engrenagem. São três operários da mesma fábrica especializados naquela engrenagem. Os três sabem fazer aquelas imagens. No início da peça há a construção específica de uma imagem para cada um, que depois passa para os outros, como se fosse uma contaminação. Mas no início é como se cada imagem pertencesse a cada pessoa, mas que muito facilmente deixa que se contamine para os outros. E somos nós que a construímos. Ora quando construímos a imagem do outro, já sabemos que imagem é essa. É uma coisa fechada entre nós.

Eu acho que há um ponto em comum em todos os teus espectáculos, pois parecem-me ser propostas profundamente solitárias. Se quiseres, sobre a solidão. Mas não sei se é sobre a solidão da criação e do confronto com o espectador (naquilo que um coreógrafo espera desse confronto), ou é o Tiago Guedes que é uma pessoa solitária.

Isso é engraçado porque não é por serem solos que as peças são solitárias. E mesmo as peças de grupo são peças solitárias.

No Trio, pela anulação de diferenças entre coreógrafo e intérpretes, essa solidão parece-me ainda mais presente.

Não são coisas sobre as quais eu trabalho, mas que têm a ver com a minha personalidade. Tu estás a dizer isso e eu revejo isso nas peças. Mas é uma coisa à posteriori. E é engraçado que isso aconteça porque é aí que eu acho que o cunho autoral. Ou seja, quando tu não pensas no teu fazer e ele está lá implícito. E tem a ver com coisas que tu não controlas ou programas numa peça tão programada como é esta.


[trabalhar com outros intérpretes]

Parece-me haver neste espectáculo uma anulação das diferenças entre coreógrafo e intérpretes, sendo que, ao mesmo tempo, esta não é uma co-criação. E isso é, não só muito perturbador como se fica á espera que um deles se destaque, mesmo que não seja o coreógrafo.

Eu sou muito preconceituoso em relação aos espectáculos e sobretudo áqueles que denunciam logo quem é o coreógrafo. Seja porque tem mais precisão ou porque ocupa o espaço de maneira diferente. E isso é uma coisa que tu tendes sempre a perceber, mesmo que não saibas quem é o coreógrafo. Eu aqui tentei, exactamente, acabar com essa diferença. E apercebi-me disso a meio do processo. Agora há só um momento em que isso acontece, que é quando fica uma pessoa sozinha [Inês Jacques] a fazer uma coisa.

Que importância é que tem, neste caso concreto, trabalhares com pessoas que conheces e que conhecem o teu trabalho tão bem.

Há logo muitas coisas que não é preciso explicar e perder tempo com elas. Uma vez que para um trabalho destes é preciso muito tempo, e ainda assim o tempo foi um bocado à justa. E se há certo tipo de coisas que para ti são evidências, com pessoas que já conheces, é um mês de trabalho que se ganha. Esta é uma forma muito fria de o dizer, mas é verdade. Se calhar, o perder tempo é ganhar a confiança de outras pessoas, mas eu não me apetecia estar com isso agora. Apetecia-me trabalhar seguro e não responder a questões que não interessam. Com pessoas que já conheces, podes passar à frente de tudo isso e começar logo a trabalhar.

Isso também te liberta do lado negativo da marca pessoal e da imposição, uma vez que ao trabalhares com pessoas das quais és cúmplice, te forças a ser ainda mais exigente.

É mais difícil porque as pessoas te fazem outras exigências e confrontam-te com as coisas que já sabem de ti. Mas também sei que estas pessoas cúmplices já não vão "fazer qualquer coisa". Há uma expectativa maior, porque as propostas que as pessoas fazem já são muito canalizadas para o que eu quero.



Ontem: [percurso] + [o objecto]
Amanhã: [a relação com o público e os espaços de apresentação] + [condições de produção]


Conversa realizada a 07 de Abril, em Lisboa. Agradece-se a disponibilidade de Tiago Guedes e a colaboração da Re.Al e Bazar do Vídeo na cedência de material.

Sobre Tiago Guedes neste blog:
Materiais Diversos, 2003
Proposta para os LAB 11 (onde se deu a ver uma ideia de TRIO)