quinta-feira, fevereiro 10, 2005

O construtor de Homens

Análise à proposta de Tiago Guedes para o 11º LAB
Espaço Re.Al, 05 Fevereiro 2005



A proposta de Tiago Guedes para o 11º LAB leva ao limite a ideia de espaço de experimentação da iniciativa. Está entre um objectivo e um objecto. O espectáculo que vai surgir* ainda está muito distante. Cabe então ao coreógrafo apresentar algumas das linhas estruturais do seu novo projecto.

No caso, e depois de trabalhada a matéria exterior (Materiais Diversos, 2003), Tiago Guedes procura pensar o corpo como elemento de ocupação/contaminação. Seja através da "presença branca" em palco ou carregando-o de outros materiais. Outras pessoas incluídas.

Para isso requisitou a presença de cúmplices/corpos, de forma a questionar o seu poder individual, quer como coreógrafo, quer como intérprete. Portanto, depois do "resto", chegou a "sua vez". Esta ideia de trabalhar o eu-corpo/pessoa relaciona-se pouco com o mito de Narciso, mas mais com o que Lipovetsky definiu como cultura do individualismo. A necessidade de compreender o seu lugar dentro dos objectos artísticos que cria. Perceber, no fundo, o que há de seu nas coisas que faz.

O criador utiliza, deliberadamente, os outros como espaços de criação. Como extensões do eu. E, no fundo, o espectáculo vai-se desenvolvendo dentro de Tiago Guedes. E neste baralhar e voltar a dar, vai definindo o que procura. Vai transformando gestos que podem não ser nada em pontos de contacto. Vai procurando defender-se de eventuais vazios interpretativos. É para isso que servem os espaços de experimentação.

Portanto, a proposta não quer significar um espelho, mas antes uma contaminação. A Inês Jacques e Martim Pedroso não é pedido que façam de Tiago Guedes, mas antes que, baseando-se num mesmo sistema de repetição/insistência, possam proceder a um jogo de imitação/superação. Ou seja, são auxiliares de memória. E contribuem para a construção de uma imagem do outro, através da manipulação do corpo. O mais simples e sem artifícios possível. Em nome de uma estabilidade, reconhecimento e utilidade performática. Em nome de uma definição. Do lugar de cada um, mas também do objecto artístico. Numa altura em que mais facilmente se justifica uma proposta performática aparentemente não definida como híbrida, Tiago Guedes parece querer forçar a existência de fronteiras e quase afirmar que é tudo uma questão de forma.

Margarida Medeiros defendeu (Fotografia e Narcisismo, 2000), que «esta contaminação entre dispositivos enunciativos das artes é outro dos elementos que reforçam a ideia de incertezas do Eu perante os limites do seu discurso e do seu corpo, ou da emergência das pulsões distintivas.». E, na verdade, as fronteiras de um objecto são essenciais para a compreensão da sua utilidade.

No caso concreto desta proposta, a sua utilidade reside na vontade de devolver ao corpo e à intenção a organicidade. Ou seja, o momento em que poderia ser visto/lido sem qualquer interpretação para lá do que é. O momento-zero, se quisermos. O radical. É, portanto, uma proposta a caminhar em flashback. Para que se perceba de onde e porque veio. «A representação do outro ou de si surge pois como manifestação de uma presença no mundo, como ponto de vista sobre esse mundo, mas também como forma de potencialmente o recriar ou restaurar.», continua Margarida Medeiros.

Esse ponto de origem que pretendem recriar está dividido em três imagem, uma por cada intérprete. Considerando que essas imagens podem desaparecer dentro do objecto final (aqui não importa o que existe, maso que se faz com isso), convêm fixá-las, mais não seja para, mais tarde, ajudar a entrar dentro dele. Assim, a cada um dos intérpretes é entregue uma imagem que deve ser explorada até ao limite. Uma abordagem semiótica, portanto.

Inês Jacques apresenta-se deitada no chão, a perna esquerda flectida até meio da cintura e o braço direito esticado para lá da cabeça. O braço esquerdo permanece junto ao corpo, retraído. Os olhos estão fechados. Martim Pedroso está sentado, de costas quase curvadas. As pernas cruzam-se e os braços acompanham a curvatura do corpo, compondo um ângulo que cria um centro a partir das mãos com os dedos tensamente colados. Tiago Guedes está em pé, com uma das pernas avançada em relação ao corpo e o braço direito levantado, com a mão supostamente a segurar um objecto. Portanto, as posições são de descanso, reflexão e defesa. Por uma questão de referências visuais é fácil uma mataforização sobre os posições evolutivas do Homem ao longo dos tempos. Portanto, Tiago Guedes pode caminhar para uma posição de "construtor de Homens". Mais perto da perfeição, talvez.

Ideia que, aliás, é testada quando trocam de posições, se imitam ou levam ao abstracto os movimentos que formam essas imagens. Estabelecem um diálogo solitário com o outro, fingindo fazer duetos ou imitando os maneirismos. E provocam o espectador nas suas definições formatadas ao brincarem com os classicismos da dança e do movimento. Da mesma forma que Materiais Diversos assumia uma certa vertente pueril, esta proposta parece ir trabalhar o quotidiano. E até mesmo o quotidiano da criação de um objecto que se quer proposta de dança.

À medida que se vão envolvendo nesta coreografia de experimentação, vão procurando a organicidade do corpo e da imagem, libertando-a de qualquer definição. O que Tiago Guedes propõe não é, portanto, um regresso ao "radical" para dele não evoluir, mas antes um que permita observar as implicações enunciadas no seu nascimento. Para que, mais tarde, se possa prever o seu caminho.

Tiago Guedes estabelece, por exemplo, um diálogo com estas imagens corporais, impondo-lhes músicas anacrónicas, desde o piano à pop mais primária, procurando perguntar como responde o corpo às várias músicas. No fundo, como responder e filtrar, para a criação de um objecto, o conjunto de referências (procuradas, impostas e recusadas) que o rodeia? A reacção é sempre a mesma, independentemente do que se usa?

Como, para já, o objecto está longe de conclusão, o que o coreógrafo apresenta é o seu momento de impasse. Esta apresentação mostra-se assim, presa em si mesma e isso torna-a o mais honesta possível. Porque, por enquanto, pode ser tudo.

E por poder ser tudo, essa honestidade obriga quem vê a reconhecer o corte na relação tradicional espectáculo/espectador. Portanto, depois de utilizar os cúmplices do palco, quer saber dos outros na plateia. E, com os intérpretes presos aos movimentos repetidos e ad aeternum, o público tem que perceber que o objecto não está completo e seguirá em regime interno. Para já é só, parece dizer o coreógrafo.

E eles continuam nos movimentos até não significarem nada, até haver público na plateia, ou músicas para dançar, ou coisas para dizer, ou energia para fazer, ou vida para viver, ou dias iguais aos outros.

*Trio, projecto coreográfico com estreia absoluta dia 1 de Abril de 2005 no Le Vivat em Armentères (França) e com estreia nacional dia 14 de Abril na Culturgest, Lisboa. Concepção: Tiago Guedes. Interpretação: Inês Jacques, Martim Pedroso, Tiago Guedes

Tiago Guedes
Residência artística de 17 de Janeiro a 5 de Fevereiro 2005
Apresentação pública 5 Fevereiro 2005 18h00
Concepção e interpretação: Tiago Guedes Colaboração artística e interpretação: Inês Jacques, Martim Pedroso Assistência: Pietro Romani Coaching: Francisco Tropa (artista convidado), João Fiadeiro, João Queiroz

Próxima apresentação
Mário Afonso
26 Fevereiro 2005
Espaço Re.Al

Sobre o 11º LAB
Sobre a anterior criação de Tiago Guedes, Materiais Diversos (2003)




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