segunda-feira, julho 11, 2005

Ocupar o coração - as críticas (V)

No quiero ser salvado

Análise a 11M - Voces contra la barbarie
pela Dante Produciones (Espanha)
22º Festival de Almada
Teatro Municipal de Almada
10 Julho 2005
22h00 (sessão extra às 23h30)

O Festival de Almada foi ontem surpreendido pela recepção do espectáculo 11 M - Voces contra la barbarie, pela companhia espanhola Dante-Produciones, tendo que repetir a única sessão inicialmente prevista dado o fluxo de gente, certamente potenciado pelo trágico ataque terrorista que esta semana ocorreu em Londres. Este acontecimento foi aliás alvo de comentário da companhia, que dedicou as duas apresentações às vítimas londrinas.

O espectáculo, feito por vários autores, é composto por um encadear de breves histórias, entre a alegoria e a evocação, a reconstituição e a parábola, desenvolvendo-se assente num discurso que evitava a comiseração, a piedade ou o lado mais superficial da mágoa. Toda a estrutura dramatúrgica parecia acreditar numa reflexão atenta sobre o modo como a arte (e o teatro em particular) pode pensar o mundo que a rodeia, naquilo que era um curioso exercício de estilo, tão ao jeito das criações colectivas mais politizadas que ocorreram em Espanha nos anos 80.

11 M - Voces contra la barbarie não procurava ser uma proposta panfletária, mas antes a fixação de uma realidade no quotidiano dramatúrgico, explorando as imensas variações e possibilidades que a criação artística permite. Para além disso, devolvia ao teatro um lugar que é seu por direito próprio e que ecoa desde a Antiga Grécia: um espaço para discussão, problematização e pensamento sobre a forma de agir perante determinados acontecimentos marcantes. Foi por isso uma rara oportunidade para se ver teatro político, sem metaforizações extemporâneas.

A peça apresentava-se num cenário pós-nuclear, em que a cena era atravessada por uma estlização de uma estação de comboio que, no final do espectáculo se transformava numa espécie de purgatório, reunindo as almas das vítimas para uma viagem de reconciliação com os seus medos, angústias, dúvidas ou culpas.

Este era, aliás, um espectáculo onde se cruzava uma galeria de personagens post-mortem, onde se incluía desde o terrorista à vítima, do sobrevivente ao voluntário, do cidadão comum à ficcionalização das instituições. Em todas elas construía-se um discurso feito mais de perguntas que de respostas, mas onde havia pouco lugar para o porquê. Esta era uma proposta pensada na integração do ataque na vida quotidiana, razão pela qual surpreende pela ausência de vitimização. Tratam-se de personagem em busca de um lugar, seja esse de atacante ou vítima. Mas tudo em nome de uma reorganização do mundo, alterado que foi por comportamentos que em muito ultrapassam as gentes comuns.

O que surpreende em 11 M é o modo como se organiza um discurso que, por exemplo, condena a manipulação da dor e da perda. É disso exemplo a última sequência com uma funcionária do reino a querer politizar as 192 vítimas do atentado em detrimento das 77 mil que morreram nesse dia por outras causas, incluindo outras guerras. Ou ainda a forma consciente como dá voz a um terrorista que, sem maniqueísmos, discursa sobre as forças maiores que si e que o levam a ser um suicida, também ele um mártir de uma causa que não compreende de todo.

Não há neste espectáculo uma exploração gratuita das posições contrárias dos intervenientes (são todos vítimas, uns mais culpados que outros) e o que importa é perceber como pode o mundo funcionar assente num barril de pólvora onde pesa mais a causa abstracta que o sentimento de proximidade. Esta é ainda uma proposta que parece querer libertar-se dos olhares piedosos de quem não sofreu (pelo menos danos físicos). A dada altura uma das mulheres grita que nos habituamos a tudo, desde um corpo imperfeito (não tem uma perna ou o cabelo demora a crescer) a voltar a entrar num comboio.

Mas há certamente uma homenagem a quem perdeu a vida na manhã de Março em Atocha, com vários nomes próprios a serem enunciados ao som de uma desvirtuada marcha nupcial. Este cortar abrupto das vidas alheias projecta-se depois nas vidas dos que ficam, seja porque se atrasaram na entrada do comboio, ou porque por alguma razão insistiram para que alguém não embarcasse. Prodece-se a um trabalho de percepção e alcance dos danos que tem consciência do trabalho de resistência feito por quem fica, sentimentos de culpa incluídos.

Este espectáculo simples e rigoroso, feito de um trabalho de pensamento e procura é, assim, uma pertinente e eficaz abordagem a uma temática complexa, sem medo de pensar o presente, mesmo que se sinta uma certa vontade de ir mais fundo. Mas a apresentação deste espectáculo levanta sérias questões não só sobre o lugar da criação artística, mas também sobre o modo como os encontros artísticos querem firmar discursos actuais sobre a envolvente. Numa sociedade cada vez mais politizada, impressiona que só um dos espectáculos nesta edição do Festival seja assumidamente político. Esta opção, certamente presa a outras tantas questões, potencia recepções mais próximas do contexto actual em que vivemos e dá ao Festival uma dimensão ainda mais viva, ainda mais consciente do contexto, mais perto do que se pode fazer.

Outras críticas aos espectáculos do 22º Festival de Almada já publicadas:

MANUCURE, de João Grosso, por Tiago Bartolomeu Costa
PODER, pela Companhia de Teatro de Almada, por Pedro Manuel
NOUS ETIONS ASSIS SUR LA RIVAGE DU MONDE, pela UBU - Compagnie de Creation, por Pedro Manuel
FARSA QUIXOTESCA, pela companhia Pia Fraus, por Tiago Bartolomeu Costa


Toda a programação do 22º Festival de Almada pode ser consultada aqui.

Ver dossier OCUPAR O CORAÇÃO - O MELHOR ANJO NO 22º FESTIVAL DE ALMADA

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