terça-feira, julho 05, 2005

Ocupar o coração - as críticas (I)

PODER

Contra-poder
Análise ao espectáculo PODER
Companhia de Teatro de Almada

por Pedro Manuel
publicada originalmente a 12 de Abril 2005

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Poder é uma peça de época. Mas de qual? É uma pergunta que pode aplicar-se a todas os textos ou encenações de clássicos ou cuja acção se desenrola numa época passada. E porquê aplicá-la a Poder, de Nick Dear, pela Companhia de Teatro de Almada?

Comecemos pelo texto. A acção de Poder passa-se em França, no sec. XVII, no período que antecede a ascensão e consolidação do reinado de Luís XIV, caracterizado pelo seu perfil pessoal e caracterizando uma nova forma de encarar a política, o absolutismo, através da concentração de poderes na figura do soberano, que é o que interessa destacar, para já (1). No texto de Nick Dear encontramos a família real após a morte do cardeal Mazarino questionando-se sobre como organizar a estrutura política de França. Pouco a pouco, Luís XIV vai apercebendo-se do contexto político e económico que o rodeia, através do Superintendente Fouquet, de Colbert e da sua mãe, Ana de Áustria, e o seu desejo de controlo e poder aumenta até ao limite da centralização absoluta, absolutista. A sua estratégia não é contra todos, mas de todos a seu favor, segundo uma escala hierárquica bem definida. (...)

Neste ponto, podemos perguntar se Nick Dear queria mesmo apenas fazer um retrato de época, sobre a desgraça de Fouquet nas malhas da política ou o sucesso de Luís XIV sobre todos. Não existe nenhum aparte que nos remeta para actualidade, mas as estratégias do texto denotam tendências contemporâneas e preocupações actuais: por um lado, a estrutura do texto em quadros sucessivos, em conformidade com um modelo mais próximo de alguma dramaturgia política do que do modelo literário praticado no sec. XVI; por outro lado, o calão, a linguagem vernacular e quotidiana que contrasta com as expressões mais poéticas, que também existem, e que costumamos associar à época. A questão da juventude e da velhice, tematizada pela questão sexual como veículo de poder e de demonstração de força, aparece de modo descomprometido e informal, e esse é um primeiro traço da dramaturgia contemporânea. Outro aspecto é a permanente invasão de discussões e descrições financeiras, áridas até para as personagens, mas eficazes na construção do contexto e, sobretudo, no contexto actual. (...)

E é assim que chegamos à nossa actualidade. (...) "[Luís XIV] intuiu perfeitamente o papel da encenação e do espectáculo na concretização do poder, constituído por rituais e pela força da linguagem e da imagem - pelo teatro, em suma." (folha de sala do espectáculo) e esta ideia determina a concepção plástica do espectáculo segundo a ideia de "teatro", ou como se costuma dizer, de teatro dentro do teatro. Assim, o palco montado no palco do Teatro Municipal de Almada é um estrado elevado e largo, quadrado, no centro da cena, com duas entradas de cada lado e uma longa cortina de fundo que cai do alto da teia, numa relação vertical com o chão. (...) Estas soluções cénicas são muito bem conseguidas na simplicidade da sugestão do imaginário teatral, escapando à tentação de preencher a cena com os pormenores do artifícios barrocos. Mas a exuberância, a cor e o arrojo das formas tinham de estar presentes numa peça sobre o poder-espectáculo. E essa extravagância aparece, e bem, nos figurinos, sobretudo nos vários figurinos da personagem de Filipe de Orleães, o irmão efeminado de Luís XIV. Num cenário tão simples e tão dado à expressividade e ao excesso, os figurinos preenchem e equilibram, com o espaço cénico, toda a dimensão visual e plástica do espectáculo, destacando o trabalho dos actores. (...)

Ora essa simplicidade do estrado e do pano de fundo, aliado ao carácter metateatral da proposta sugere, ao início, que a direcção dos actores e as soluções das cenas, dos quadros, será "teatral" - no que esta ideia tem de indefinida -, expressiva, pautada, plástica. Mas as marcações são desenhadas na dependência das entradas, como um cenário clássico com quatro portas, acabando, por um lado, por repetir esquemas de equilíbrio na distribuição espacial dos actores pelo tabuleiro do estrado e, por outro lado, na maior parte das vezes, os actores entram pelas entradas do fundo e inevitavelmente deslizam para a boca de cena, concentrando aí a contracena e a deslocação.

Mesmo com um registo verosímil e quotidiano, criado também pelo texto, como vimos, a dinâmica das marcações poderia aproveitar as potencialidades da cena aberta, despojada de adereços, e definida no espaço do palco. (...) O pouco aproveitamento das potencialidades expressivas dos elementos cénicos e cenográficos repete-se no espectáculo, por exemplo, na solução dos black-outs entre os quadros, preenchidos com a presença e a música de Fernando Fontes que, pelo seu lado, compõe o contraponto certo para a leitura contemporânea do espectáculo. (...) Em resumo, Poder é um espectáculo fiel à ambiguidade do texto, entre a crítica social sobre a actualidade e a biografia de duas personagens históricas, marcado por uma adaptação cénica simplista, mas servido por boas soluções visuais, por uma boa direcção de actores e um elenco unido. Referência final à imagem do espectáculo, dominada pela figura de um falcão de asas abertas, numa sugestão às águias do imperialismo alemão ou norte-americano.


(1) Esta ideia de soberania irá influenciar o pensamento político dos secs. XVI e XVII, como podemos identificar, num primeiro nível de leitura, na ideia de direito civil de Hobbes (o cidadão abdica do seu direito natural, entregando-se à protecção do soberano) ou na ideia de contrato social de Rosseau (as relações civis estabelecem-se segundo um acordo entre todos, manifestando-se numa vontade comum).

Ler texto na íntegra aqui.

Texto da responsabilidade do autor, excepto cortes de texto indicados.

Poder
Autor: Nick Dear. Tradução - Rui Romão Encenação - Joaquim Benite Colaboração coreográfica - Jean Paul Bucchieri Figurinos e cenografia - Maria João Silveira Ramos Direcção musical - Maestro Fernando Fontes Luz - José Carlos Nascimento Intérpretes: Teresa Gafeira (Ana de Áustria); Rui Neto (Filipe de Orleães); Bruno Martins (Luís XIV); Marques D'Arede (Nicolas Fouquet); Joana Fartaria (Henriqueta de Inglaterra); Francisco Costa (Jean-Baptiste Colbert); Kjersti Kaasa (Luísa de La Valliére)

PODER é apresentado hoje às 17h00 no Teatro Municipal de Almada. Repete dia 08 às 16h00.

Amanhã às 18h00 decorre no Teatro Municipal de Almada uma conversa com o autor Nick Dear, sobre a sua obra e o teatro inglês contemporâneo, moderada por Maria Helena Serôdio.

No foyer do Teatro Municipal de Almada está patente uma exposição documental sobre o contexto sócio-político da peça.

Toda a programação do 22º Festival de Almada pode ser consultada aqui.

Ver aqui dossier Ocupar o Coração - O Melhor Anjo no 22º Festival de Almada (em contrução)

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