Sensação
Análise a Manucure
Encenação e Interpretação de João Grosso
22º Festival de Almada
04 Julho 2005, 22h00
Palco Grande da Escola D. António da Costa
É curioso pensar como esta edição do Festival de Almada abre com um poema que é mais do que isso, levantando pertinentes questões acerca das fronteiras do recital, da leitura encenada e da apropriação de um objecto de dimensão literária como material dramatúrgico. Ana Luísa Amaral (1) fala de «Manucure» (publicado na revista Orpheu 2, em 1915) como uma encenação paródica da convivência chocante do extremo tédio e do frémito extremo, da transformação do pendor decadente e dos anseios pós-simbolistas em exaltação verbal.
E se é verdade que reconhecemos na figura apresentada no palco vazio um esteta entre o tédio e a decadência, não é menos verdade ver-se na figura do intérprete João Grosso um vertiginoso e potencialmente perigoso homem que espera o momento certo para fazer eclodir a bomba. E a bomba, neste caso, é um virulento ataque a uma criação burguesa e fascinada, mais interessada na aparência que na essência. Apostando no inevitável distanciamento entre um «eu» e um «mim» , «Manucure» desenvolve-se através de um jogo de palavras e sentidos sonoros que compõe uma paisagem biográfica, fundamental para perceber em que dimensões queria Mário de Sá-Carneiro tocar: duas grandes linhas estéticas, uma ligada ainda à grande tradição romântica e simbolista e a outra ligada ao futurismo.
«Manucure» é ainda um discurso sobre o lugar do poema no corpo e no espaço. João Grosso apresenta-se como uma figura de corpo sonâmbulo, com o cotovelo pousado em cima da mesa e cara apoiada numa mão quase inerte, enquanto a outra se passeia na perna cruzada. É um corpo feito de bocejos amarelos, sem história e preso a um tempo onde, diz, se golfa o meu passado,/ se desmorona o meu presente/ e o meu futuro é já poeira. Este é o corpo de um homem perdido e distante, razão pela qual o rosto impávido parece recusar o correr dos dias, preferindo a observação passiva e escolhendo uma ideia em vez de uma acção. Um tempo onde com a sensação de polir as minhas unhas e de as pintar com um verniz parisiense/ vou-me mais e mais enternecendo até chorar por mim.
Mas de uma apropriação depressiva e displicente do texto evoluímos para uma recusa da resignação através de subtis mutações de criatura perdida para grotesca figura, a partir do momento em que quebra a chávena com um martelo. O rigoroso domínio do texto permite a João Grosso apoderar-se da voz para, através de um exemplar trabalho de elocução, fazer desta o corpo que o seu corpo recusa ser. E neste corpo sujeito a um texto, há espaço para um estimulante duelo entre presença e imaginação, tal como antes se falava em aparência e essência ou ideia e acção. Onde a voz é velocidade e rapidez, o corpo é inerte; onde ela é suspensa, é ele morto; onde a voz é sedosa, é o corpo espaço de sedução tardia e relembrada.
O fascínio da interpretação de João Grosso relaciona-se não só com o referido domínio sobre o texto, mas também na forma como faz dele uma extensão de si, no que isso representa de apropriação de realidades distantes. Porque é através do «corpo-gato» dessa figura estranha a falar para um ausente (ele mesmo?), que passa todo um registo vocal e uma coreografia de emoções, que envolve o espectador num onomatopeico e vertiginoso jogo. Um jogo que acaba por ser mais lúdico e menos de transferência (ou contaminação) de emoções inscritas no corpo do texto, o que acentua algumas fragilidades dramatúrgicas (o momento do strob a fazer as vezes de alheamento provocado pelo gás). O público tende a reagir por mimese e não tanto por apreensão das intenções do poema.
Num deambular pelo espaço, João Grosso faz de «Manucure» uma proposta magnética, sobretudo pelo reconhecido virtuosismo, e consciência das potencialidades do texto. Ou seja, mais do acrescentar, devolve a carne e a alma que as palavras escritas sugerem, envolvendo o público numa urgência poética que faz do poema música etérea e acção desejada.
(1) todas as citações retiras do texto referido no programa: Ana Luísa Amaral in MANUCURE, publicado em SÉCULO DE OURO, ANTOLOGIA CRÍTICA DA POESIA PORTUGUESA DO SÉCULO XX, Organização de Osvaldo Silvestre e Pedro Serra, Angelus Novus, Editora e Edições Cotovia, Lda, Lisboa, 2002.
Outras críticas aos espectáculos do 22º Festival de Almada já publicadas:
Contrapoder, por Pedro Manuel (sobre o espectáculo PODER, da Companhia de Teatro de Almada)
Análise a Manucure
Encenação e Interpretação de João Grosso
22º Festival de Almada
04 Julho 2005, 22h00
Palco Grande da Escola D. António da Costa
É curioso pensar como esta edição do Festival de Almada abre com um poema que é mais do que isso, levantando pertinentes questões acerca das fronteiras do recital, da leitura encenada e da apropriação de um objecto de dimensão literária como material dramatúrgico. Ana Luísa Amaral (1) fala de «Manucure» (publicado na revista Orpheu 2, em 1915) como uma encenação paródica da convivência chocante do extremo tédio e do frémito extremo, da transformação do pendor decadente e dos anseios pós-simbolistas em exaltação verbal.
E se é verdade que reconhecemos na figura apresentada no palco vazio um esteta entre o tédio e a decadência, não é menos verdade ver-se na figura do intérprete João Grosso um vertiginoso e potencialmente perigoso homem que espera o momento certo para fazer eclodir a bomba. E a bomba, neste caso, é um virulento ataque a uma criação burguesa e fascinada, mais interessada na aparência que na essência. Apostando no inevitável distanciamento entre um «eu» e um «mim» , «Manucure» desenvolve-se através de um jogo de palavras e sentidos sonoros que compõe uma paisagem biográfica, fundamental para perceber em que dimensões queria Mário de Sá-Carneiro tocar: duas grandes linhas estéticas, uma ligada ainda à grande tradição romântica e simbolista e a outra ligada ao futurismo.
«Manucure» é ainda um discurso sobre o lugar do poema no corpo e no espaço. João Grosso apresenta-se como uma figura de corpo sonâmbulo, com o cotovelo pousado em cima da mesa e cara apoiada numa mão quase inerte, enquanto a outra se passeia na perna cruzada. É um corpo feito de bocejos amarelos, sem história e preso a um tempo onde, diz, se golfa o meu passado,/ se desmorona o meu presente/ e o meu futuro é já poeira. Este é o corpo de um homem perdido e distante, razão pela qual o rosto impávido parece recusar o correr dos dias, preferindo a observação passiva e escolhendo uma ideia em vez de uma acção. Um tempo onde com a sensação de polir as minhas unhas e de as pintar com um verniz parisiense/ vou-me mais e mais enternecendo até chorar por mim.
Mas de uma apropriação depressiva e displicente do texto evoluímos para uma recusa da resignação através de subtis mutações de criatura perdida para grotesca figura, a partir do momento em que quebra a chávena com um martelo. O rigoroso domínio do texto permite a João Grosso apoderar-se da voz para, através de um exemplar trabalho de elocução, fazer desta o corpo que o seu corpo recusa ser. E neste corpo sujeito a um texto, há espaço para um estimulante duelo entre presença e imaginação, tal como antes se falava em aparência e essência ou ideia e acção. Onde a voz é velocidade e rapidez, o corpo é inerte; onde ela é suspensa, é ele morto; onde a voz é sedosa, é o corpo espaço de sedução tardia e relembrada.
O fascínio da interpretação de João Grosso relaciona-se não só com o referido domínio sobre o texto, mas também na forma como faz dele uma extensão de si, no que isso representa de apropriação de realidades distantes. Porque é através do «corpo-gato» dessa figura estranha a falar para um ausente (ele mesmo?), que passa todo um registo vocal e uma coreografia de emoções, que envolve o espectador num onomatopeico e vertiginoso jogo. Um jogo que acaba por ser mais lúdico e menos de transferência (ou contaminação) de emoções inscritas no corpo do texto, o que acentua algumas fragilidades dramatúrgicas (o momento do strob a fazer as vezes de alheamento provocado pelo gás). O público tende a reagir por mimese e não tanto por apreensão das intenções do poema.
Num deambular pelo espaço, João Grosso faz de «Manucure» uma proposta magnética, sobretudo pelo reconhecido virtuosismo, e consciência das potencialidades do texto. Ou seja, mais do acrescentar, devolve a carne e a alma que as palavras escritas sugerem, envolvendo o público numa urgência poética que faz do poema música etérea e acção desejada.
(1) todas as citações retiras do texto referido no programa: Ana Luísa Amaral in MANUCURE, publicado em SÉCULO DE OURO, ANTOLOGIA CRÍTICA DA POESIA PORTUGUESA DO SÉCULO XX, Organização de Osvaldo Silvestre e Pedro Serra, Angelus Novus, Editora e Edições Cotovia, Lda, Lisboa, 2002.
Outras críticas aos espectáculos do 22º Festival de Almada já publicadas:
Contrapoder, por Pedro Manuel (sobre o espectáculo PODER, da Companhia de Teatro de Almada)
Ver aqui o Dossier Ocupar o coração - O Melhor Anjo no 22º Festival de Almada (em construção)
Ver aqui toda a programação do 22º Festival de Almada.
Ver aqui toda a programação do 22º Festival de Almada.
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