Contrapoder
Análise ao espectáculo Poder, da Companhia de Teatro de Almada
por Pedro Manuel
Poder é uma peça de época. Mas de qual? É uma pergunta que pode aplicar-se a todas os textos ou encenações de clássicos ou cuja acção se desenrola numa época passada. E porquê aplicá-la a Poder, de Nick Dear, pela Companhia de Teatro de Almada?
Comecemos pelo texto. A acção de Poder passa-se em França, no sec. XVII, no período que antecede a ascensão e consolidação do reinado de Luís XIV, caracterizado pelo seu perfil pessoal e caracterizando uma nova forma de encarar a política, o absolutismo, através da concentração de poderes na figura do soberano, que é o que interessa destacar, para já (1). No texto de Nick Dear encontramos a família real após a morte do cardeal Mazarino questionando-se sobre como organizar a estrutura política de França. Pouco a pouco, Luís XIV vai apercebendo-se do contexto político e económico que o rodeia, através do Superintendente Fouquet, de Colbert e da sua mãe, Ana de Áustria, e o seu desejo de controlo e poder aumenta até ao limite da centralização absoluta, absolutista. A sua estratégia não é contra todos, mas de todos a seu favor, segundo uma escala hierárquica bem definida.
É aqui que o poder, a ambição e a influência do Superintendente Fouquet se começam a revelar como suspeitas e merecedoras de inveja pessoal. Assim, e ao encontro do que Nick Dear descreve como as suas intenções, "A tese da minha peça é que o poder é uma competição, um concurso com vencedores e vencidos." (A Capital, 07/04/05, Ana Rocha), a peça divide o protagonismo entre duas personagens, a ascensão de Luís XIV, rodeado de amantes e de conselheiros, e a queda de Fouquet, envelhecido e nervoso. É uma peça sobre a ambição que cresce à medida que avança, a projecção da figura pessoal nas figuras de poder e sobre o perigo do jogo político.
Joana Fartaria e Rui Neto
Neste ponto, podemos perguntar se Nick Dear queria mesmo apenas fazer um retrato de época, sobre a desgraça de Fouquet nas malhas da política ou o sucesso de Luís XIV sobre todos. Não existe nenhum aparte que nos remeta para actualidade, mas as estratégias do texto denotam tendências contemporâneas e preocupações actuais: por um lado, a estrutura do texto em quadros sucessivos, em conformidade com um modelo mais próximo de alguma dramaturgia política do que do modelo literário praticado no sec. XVI; por outro lado, o calão, a linguagem vernacular e quotidiana que contrasta com as expressões mais poéticas, que também existem, e que costumamos associar à época. A questão da juventude e da velhice, tematizada pela questão sexual como veículo de poder e de demonstração de força, aparece de modo descomprometido e informal, e esse é um primeiro traço da dramaturgia contemporânea. Outro aspecto é a permanente invasão de discussões e descrições financeiras, áridas até para as personagens, mas eficazes na construção do contexto e, sobretudo, no contexto actual.
A corrupção dos nossos dias encontra eco nas descrições da "contabilidade criativa" de Fouquet, e essas descrições assemelham-se à "parede sonora" que por vezes ouvimos dos políticos e dos telejornais, uma barreira intransponível na sua malha de significados ocultos. Outro aspecto a realçar é, também, a consciência que as personagens têm de si próprias e que assumem, como se o actor comentasse a sua própria personagem mas incorporasse esse comentário na interpretação, sem que o espectador se apercebesse dessa abertura: Luís XIV tem consciência da sua inveja e da sua ambição solar, Fouquet tem consciência da sua vivacidade de espírito e da velhice do seu corpo, Colbert fala da sua personalidade seca e obstinada como se fosse uma virtude. As personagens têm consciência de si próprias como figuras, como personagens de si próprias, e chegam a ficar fascinadas pelos seus reflexos. Este desdobramento implícito está relacionado com a ideia de cultura da imagem e de "poder-espectáculo" que encontra um fundador em Luís XIV.
E é assim que chegamos à nossa actualidade. Nas palavras do encenador, distinguido recentemente com uma Menção Honrosa da APCT pelo espectáculo O Fazedor de Teatro: "[Luís XIV] intuiu perfeitamente o papel da encenação e do espectáculo na concretização do poder, constituído por rituais e pela força da linguagem e da imagem - pelo teatro, em suma." (folha de sala do espectáculo) e esta ideia determina a concepção plástica do espectáculo segundo a ideia de "teatro", ou como se costuma dizer, de teatro dentro do teatro.
Rui Neto
Assim, o palco montado no palco do Teatro Municipal de Almada é um estrado elevado e largo, quadrado, no centro da cena, com duas entradas de cada lado e uma longa cortina de fundo que cai do alto da teia, numa relação vertical com o chão. Atrás desta cortina semi-transaparente existe um elemento natural que contrasta com a disposição artificial dos elementos, uma árvore, que nos traz a presença da natureza e do orgânico, e que reforça o contexto de algumas cenas de exterior, como a cena de caça ou os passeios pelos jardins.
Nas cenas de interior, a luz incide sobre a cortina, impedindo que se veja a árvore, fechando a cena no estrado. Na segunda parte, outro elemento metateatral, um grande espelho atrás da árvore, dobrando o espaço durante a festa de Fouquet no seu castelo de Vaux le Vicomte Estas soluções cénicas são muito bem conseguidas na simplicidade da sugestão do imaginário teatral, escapando à tentação de preencher a cena com os pormenores do artifícios barrocos. Mas a exuberância, a cor e o arrojo das formas tinham de estar presentes numa peça sobre o poder-espectáculo. E essa extravagância aparece, e bem, nos figurinos, sobretudo nos vários figurinos da personagem de Filipe de Orleães, o irmão efeminado de Luís XIV. Num cenário tão simples e tão dado à expressividade e ao excesso, os figurinos preenchem e equilibram, com o espaço cénico, toda a dimensão visual e plástica do espectáculo, destacando o trabalho dos actores.
Quando se diz que a cena é "dada à expressividade", diz-se de um espaço cénico que é um teatro dentro de um teatro e que é, ao mesmo tempo, muito despojado. Ora essa simplicidade do estrado e do pano de fundo, aliado ao carácter metateatral da proposta sugere, ao início, que a direcção dos actores e as soluções das cenas, dos quadros, será "teatral" - no que esta ideia tem de indefinida -, expressiva, pautada, plástica. Mas as marcações são desenhadas na dependência das entradas, como um cenário clássico com quatro portas, acabando, por um lado, por repetir esquemas de equilíbrio na distribuição espacial dos actores pelo tabuleiro do estrado e, por outro lado, na maior parte das vezes, os actores entram pelas entradas do fundo e inevitavelmente deslizam para a boca de cena, concentrando aí a contracena e a deslocação.
Marques D'Arede e Francisco Costa
Mesmo com um registo verosímil e quotidiano, criado também pelo texto, como vimos, a dinâmica das marcações poderia aproveitar as potencialidades da cena aberta, despojada de adereços, e definida no espaço do palco. Mas os adereços insistem em aparecer, as mesas, os bancos, as secretárias, organizando o espaço de forma convencional, à excepção de algumas cenas, como a da dança de Luís XIV para a sua amante, Luísa de La Valliére, da falcoaria e em cenas familiares entre Ana de Áustria e os seus filhos. O pouco aproveitamento das potencialidades expressivas dos elementos cénicos e cenográficos repete-se no espectáculo, por exemplo, na solução dos black-outs entre os quadros, preenchidos com a presença e a música de Fernando Fontes que, pelo seu lado, compõe o contraponto certo para a leitura contemporânea do espectáculo.
A utilização do black-out para separar as cenas conduz a um convencionalismo dos tempos de entrada dos actores, mas depois fica por aí. Outro exemplo, é a utilização decorativa do espelho e a substituição dos faustosos fogos de artifício por confettis prateados. Apesar de tudo isto, nenhuma destas soluções prejudica tanto o espectáculo que afaste o espectador da acção. Aliás, um aspecto a destacar é a direcção dos actores, pouco trabalhada em A Purga do Bebé, mas que em Poder consegue dar aos actores a capacidade de fazer evoluir as suas personagens, humanizando-as no caso de Fouquet ou Colbert e desumanizando-as no caso de Luís XIV ou Henriqueta de Inglaterra, que se vão tornando cada vez mais déspotas e insensíveis. Já Ana de Áustria, Filipe de Orleães e Luísa de La Valliére são personagens estáveis e interpretadas com segurança.
Por exemplo, nem o carácter efeminado de Filipe se torna tão risível quanto se poderia tornar, nem a sexualidade de Luísa não se torna tão chocante quanto sugere. Destaque para o trabalho individual e conjunto de Marques D'Arede e de Francisco Costa. O primeiro já tinha mostrado um bom trabalho em O Jogador, também sobre uma passagem, de velho apaixonado a velho solitário, agora dando corpo a um Fouquet mais humano que ambicioso; o segundo, consegue aqui humanizar uma personagem intragável através de uma presença forte e determinada. Marques D'Arede faz recurso da dicção e da gestão das pausas, Francisco Costa utiliza a segurança do olhar, enriquecendo as cenas em que contracenam.
Em resumo, Poder é um espectáculo fiel à ambiguidade do texto, entre a crítica social sobre a actualidade e a biografia de duas personagens históricas, marcado por uma adaptação cénica simplista, mas servido por boas soluções visuais, por uma boa direcção de actores e um elenco unido. Referência final à imagem do espectáculo, dominada pela figura de um falcão de asas abertas, numa sugestão às águias do imperialismo alemão ou norte-americano.
Bruno Martins e Kjesrti Kaasa
(1) Esta ideia de soberania irá influenciar o pensamento político dos secs. XVI e XVII, como podemos identificar, num primeiro nível de leitura, na ideia de direito civil de Hobbes (o cidadão abdica do seu direito natural, entregando-se à protecção do soberano) ou na ideia de contrato social de Rosseau (as relações civis estabelecem-se segundo um acordo entre todos, manifestando-se numa vontade comum).
Poder Autor: Nick Dear. Tradução - Rui Romão Encenação - Joaquim Benite Colaboração coreográfica - Jean Paul Bucchieri Figurinos e cenografia - Maria João Silveira Ramos Direcção musical - Maestro Fernando Fontes Luz - José Carlos Nascimento Intérpretes: Teresa Gafeira (Ana de Áustria); Rui Neto (Filipe de Orleães); Bruno Martins (Luís XIV); Marques D'Arede (Nicolas Fouquet); Joana Fartaria (Henriqueta de Inglaterra); Francisco Costa (Jean-Baptiste Colbert); Kjersti Kaasa (Luísa de La Valliére)
Teatro Municipal de Almada
de 7 de Abril a 15 de Maio
de quarta a sábado às 21.30h
domingo às 16.00h
Poder em cena em Inglaterra:
ADC Theatre
National Theatre
Pedro Manuel é investigador de teatro, actor e membro do projecto Vigilâmbulo Caolho e responsável pela programação teatral do Auditório Municipal Augusto Cabrita, no Barreiro
Outras análises de Pedro Manuel neste blog:
Estamos agora sós, encenação André Amálio a partir de Heiner Muller
Cosmos, encenação Cristina Carvalhal
Análise ao espectáculo Poder, da Companhia de Teatro de Almada
por Pedro Manuel
"Porque é que faço isto? Porque posso."
Luís XIV, em Poder
Luís XIV, em Poder
Poder é uma peça de época. Mas de qual? É uma pergunta que pode aplicar-se a todas os textos ou encenações de clássicos ou cuja acção se desenrola numa época passada. E porquê aplicá-la a Poder, de Nick Dear, pela Companhia de Teatro de Almada?
Comecemos pelo texto. A acção de Poder passa-se em França, no sec. XVII, no período que antecede a ascensão e consolidação do reinado de Luís XIV, caracterizado pelo seu perfil pessoal e caracterizando uma nova forma de encarar a política, o absolutismo, através da concentração de poderes na figura do soberano, que é o que interessa destacar, para já (1). No texto de Nick Dear encontramos a família real após a morte do cardeal Mazarino questionando-se sobre como organizar a estrutura política de França. Pouco a pouco, Luís XIV vai apercebendo-se do contexto político e económico que o rodeia, através do Superintendente Fouquet, de Colbert e da sua mãe, Ana de Áustria, e o seu desejo de controlo e poder aumenta até ao limite da centralização absoluta, absolutista. A sua estratégia não é contra todos, mas de todos a seu favor, segundo uma escala hierárquica bem definida.
É aqui que o poder, a ambição e a influência do Superintendente Fouquet se começam a revelar como suspeitas e merecedoras de inveja pessoal. Assim, e ao encontro do que Nick Dear descreve como as suas intenções, "A tese da minha peça é que o poder é uma competição, um concurso com vencedores e vencidos." (A Capital, 07/04/05, Ana Rocha), a peça divide o protagonismo entre duas personagens, a ascensão de Luís XIV, rodeado de amantes e de conselheiros, e a queda de Fouquet, envelhecido e nervoso. É uma peça sobre a ambição que cresce à medida que avança, a projecção da figura pessoal nas figuras de poder e sobre o perigo do jogo político.
Joana Fartaria e Rui Neto
Neste ponto, podemos perguntar se Nick Dear queria mesmo apenas fazer um retrato de época, sobre a desgraça de Fouquet nas malhas da política ou o sucesso de Luís XIV sobre todos. Não existe nenhum aparte que nos remeta para actualidade, mas as estratégias do texto denotam tendências contemporâneas e preocupações actuais: por um lado, a estrutura do texto em quadros sucessivos, em conformidade com um modelo mais próximo de alguma dramaturgia política do que do modelo literário praticado no sec. XVI; por outro lado, o calão, a linguagem vernacular e quotidiana que contrasta com as expressões mais poéticas, que também existem, e que costumamos associar à época. A questão da juventude e da velhice, tematizada pela questão sexual como veículo de poder e de demonstração de força, aparece de modo descomprometido e informal, e esse é um primeiro traço da dramaturgia contemporânea. Outro aspecto é a permanente invasão de discussões e descrições financeiras, áridas até para as personagens, mas eficazes na construção do contexto e, sobretudo, no contexto actual.
A corrupção dos nossos dias encontra eco nas descrições da "contabilidade criativa" de Fouquet, e essas descrições assemelham-se à "parede sonora" que por vezes ouvimos dos políticos e dos telejornais, uma barreira intransponível na sua malha de significados ocultos. Outro aspecto a realçar é, também, a consciência que as personagens têm de si próprias e que assumem, como se o actor comentasse a sua própria personagem mas incorporasse esse comentário na interpretação, sem que o espectador se apercebesse dessa abertura: Luís XIV tem consciência da sua inveja e da sua ambição solar, Fouquet tem consciência da sua vivacidade de espírito e da velhice do seu corpo, Colbert fala da sua personalidade seca e obstinada como se fosse uma virtude. As personagens têm consciência de si próprias como figuras, como personagens de si próprias, e chegam a ficar fascinadas pelos seus reflexos. Este desdobramento implícito está relacionado com a ideia de cultura da imagem e de "poder-espectáculo" que encontra um fundador em Luís XIV.
E é assim que chegamos à nossa actualidade. Nas palavras do encenador, distinguido recentemente com uma Menção Honrosa da APCT pelo espectáculo O Fazedor de Teatro: "[Luís XIV] intuiu perfeitamente o papel da encenação e do espectáculo na concretização do poder, constituído por rituais e pela força da linguagem e da imagem - pelo teatro, em suma." (folha de sala do espectáculo) e esta ideia determina a concepção plástica do espectáculo segundo a ideia de "teatro", ou como se costuma dizer, de teatro dentro do teatro.
Rui Neto
Assim, o palco montado no palco do Teatro Municipal de Almada é um estrado elevado e largo, quadrado, no centro da cena, com duas entradas de cada lado e uma longa cortina de fundo que cai do alto da teia, numa relação vertical com o chão. Atrás desta cortina semi-transaparente existe um elemento natural que contrasta com a disposição artificial dos elementos, uma árvore, que nos traz a presença da natureza e do orgânico, e que reforça o contexto de algumas cenas de exterior, como a cena de caça ou os passeios pelos jardins.
Nas cenas de interior, a luz incide sobre a cortina, impedindo que se veja a árvore, fechando a cena no estrado. Na segunda parte, outro elemento metateatral, um grande espelho atrás da árvore, dobrando o espaço durante a festa de Fouquet no seu castelo de Vaux le Vicomte Estas soluções cénicas são muito bem conseguidas na simplicidade da sugestão do imaginário teatral, escapando à tentação de preencher a cena com os pormenores do artifícios barrocos. Mas a exuberância, a cor e o arrojo das formas tinham de estar presentes numa peça sobre o poder-espectáculo. E essa extravagância aparece, e bem, nos figurinos, sobretudo nos vários figurinos da personagem de Filipe de Orleães, o irmão efeminado de Luís XIV. Num cenário tão simples e tão dado à expressividade e ao excesso, os figurinos preenchem e equilibram, com o espaço cénico, toda a dimensão visual e plástica do espectáculo, destacando o trabalho dos actores.
Quando se diz que a cena é "dada à expressividade", diz-se de um espaço cénico que é um teatro dentro de um teatro e que é, ao mesmo tempo, muito despojado. Ora essa simplicidade do estrado e do pano de fundo, aliado ao carácter metateatral da proposta sugere, ao início, que a direcção dos actores e as soluções das cenas, dos quadros, será "teatral" - no que esta ideia tem de indefinida -, expressiva, pautada, plástica. Mas as marcações são desenhadas na dependência das entradas, como um cenário clássico com quatro portas, acabando, por um lado, por repetir esquemas de equilíbrio na distribuição espacial dos actores pelo tabuleiro do estrado e, por outro lado, na maior parte das vezes, os actores entram pelas entradas do fundo e inevitavelmente deslizam para a boca de cena, concentrando aí a contracena e a deslocação.
Marques D'Arede e Francisco Costa
Mesmo com um registo verosímil e quotidiano, criado também pelo texto, como vimos, a dinâmica das marcações poderia aproveitar as potencialidades da cena aberta, despojada de adereços, e definida no espaço do palco. Mas os adereços insistem em aparecer, as mesas, os bancos, as secretárias, organizando o espaço de forma convencional, à excepção de algumas cenas, como a da dança de Luís XIV para a sua amante, Luísa de La Valliére, da falcoaria e em cenas familiares entre Ana de Áustria e os seus filhos. O pouco aproveitamento das potencialidades expressivas dos elementos cénicos e cenográficos repete-se no espectáculo, por exemplo, na solução dos black-outs entre os quadros, preenchidos com a presença e a música de Fernando Fontes que, pelo seu lado, compõe o contraponto certo para a leitura contemporânea do espectáculo.
A utilização do black-out para separar as cenas conduz a um convencionalismo dos tempos de entrada dos actores, mas depois fica por aí. Outro exemplo, é a utilização decorativa do espelho e a substituição dos faustosos fogos de artifício por confettis prateados. Apesar de tudo isto, nenhuma destas soluções prejudica tanto o espectáculo que afaste o espectador da acção. Aliás, um aspecto a destacar é a direcção dos actores, pouco trabalhada em A Purga do Bebé, mas que em Poder consegue dar aos actores a capacidade de fazer evoluir as suas personagens, humanizando-as no caso de Fouquet ou Colbert e desumanizando-as no caso de Luís XIV ou Henriqueta de Inglaterra, que se vão tornando cada vez mais déspotas e insensíveis. Já Ana de Áustria, Filipe de Orleães e Luísa de La Valliére são personagens estáveis e interpretadas com segurança.
Por exemplo, nem o carácter efeminado de Filipe se torna tão risível quanto se poderia tornar, nem a sexualidade de Luísa não se torna tão chocante quanto sugere. Destaque para o trabalho individual e conjunto de Marques D'Arede e de Francisco Costa. O primeiro já tinha mostrado um bom trabalho em O Jogador, também sobre uma passagem, de velho apaixonado a velho solitário, agora dando corpo a um Fouquet mais humano que ambicioso; o segundo, consegue aqui humanizar uma personagem intragável através de uma presença forte e determinada. Marques D'Arede faz recurso da dicção e da gestão das pausas, Francisco Costa utiliza a segurança do olhar, enriquecendo as cenas em que contracenam.
Em resumo, Poder é um espectáculo fiel à ambiguidade do texto, entre a crítica social sobre a actualidade e a biografia de duas personagens históricas, marcado por uma adaptação cénica simplista, mas servido por boas soluções visuais, por uma boa direcção de actores e um elenco unido. Referência final à imagem do espectáculo, dominada pela figura de um falcão de asas abertas, numa sugestão às águias do imperialismo alemão ou norte-americano.
Bruno Martins e Kjesrti Kaasa
(1) Esta ideia de soberania irá influenciar o pensamento político dos secs. XVI e XVII, como podemos identificar, num primeiro nível de leitura, na ideia de direito civil de Hobbes (o cidadão abdica do seu direito natural, entregando-se à protecção do soberano) ou na ideia de contrato social de Rosseau (as relações civis estabelecem-se segundo um acordo entre todos, manifestando-se numa vontade comum).
Poder Autor: Nick Dear. Tradução - Rui Romão Encenação - Joaquim Benite Colaboração coreográfica - Jean Paul Bucchieri Figurinos e cenografia - Maria João Silveira Ramos Direcção musical - Maestro Fernando Fontes Luz - José Carlos Nascimento Intérpretes: Teresa Gafeira (Ana de Áustria); Rui Neto (Filipe de Orleães); Bruno Martins (Luís XIV); Marques D'Arede (Nicolas Fouquet); Joana Fartaria (Henriqueta de Inglaterra); Francisco Costa (Jean-Baptiste Colbert); Kjersti Kaasa (Luísa de La Valliére)
Teatro Municipal de Almada
de 7 de Abril a 15 de Maio
de quarta a sábado às 21.30h
domingo às 16.00h
Poder em cena em Inglaterra:
ADC Theatre
National Theatre
Pedro Manuel é investigador de teatro, actor e membro do projecto Vigilâmbulo Caolho e responsável pela programação teatral do Auditório Municipal Augusto Cabrita, no Barreiro
Outras análises de Pedro Manuel neste blog:
Estamos agora sós, encenação André Amálio a partir de Heiner Muller
Cosmos, encenação Cristina Carvalhal
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