Na sequência da proposta do Pedro Manuel [investigador de teatro, membro do projecto Vigilâmbulo Caolho e responsável pela programação teatral do Auditório Municipal Augusto Cabrita, no Barreiro], que já colaborou neste blog com uma análise ao espectáculo Estamos Agora Sós, segue-se a análise ao espectáculo Cosmos.
Sem raízes
Análise do espectáculo Cosmos
Teatro da Comuna, na noite de 15 de Março
No texto de Gombrowicz parecem existir duas dinâmicas paralelas: a construção do sentido das palavras e das ideias, e as variações que este problema cria no campo emocional, a culpa e o desejo. Estas duas linhas de desenvolvimento temático do texto organizam também a concepção do espectáculo, caracterizado por uma encenação pautada, por vezes musical. Mas, sendo um espectáculo ordenado é, também, um espectáculo sobre o caos.
O espectador começa por ser introduzido através de ritmos: um passo, um suspiro, uma folha que se rasga, gotas de água; a cenografia exposta sugere que os elementos cénicos, em vez de evoluírem, aparecem todo ao mesmo tempo, todos os tempos da narração aparecem no espaço em simultâneo, cruzando os territórios uns dos outros. É a sugestão do início quando os actores ocupam os espaços com pequenas intervenções, habitando territórios que lhes são estranhos, como a peça confirmará. Mas depois apercebemo-nos de que a concepção é diferente: o espaço cénico está dividido em territórios definidos: o quarto dos irmãos, o quarto dos pais, a cozinha, o quarto de casal, a casa de banho, o quintal, o bosque.
A disposição é circular, aberta ao meio, e este ponto não é o centro da representação mas um ponto de passagens, na linha de uma concepção geral heterogénea e descentralizada. O círculo fecha-se durante as cenas das refeições, na sala, à boca da cena. As refeições são sempre momentos que exigem uma gestão da contra-cena e isso foi conseguido em todas as situações, com repetições e modulações dos ritmos, com as trocas de olhares e os pequenos gestos e sobretudo com as saídas tumultuosas.
Mas parece existir uma passagem de um registo musical e artificial para um registo mais verosímil, espontâneo, natural, na cena do piquenique, afastando-se do rigor do esquematismo simbólico ou poético, da rítmica, dominada pelo tema da construção de sentido em função do tema emocional. As personagens mostram o que pensam e o que dizem pelo que falam, habitam o espaço com ordem, relacionam-se entre si com ordem. Quando, ao início, as personagens sugerem uma abordagem do absurdo (sobretudo os dois amigos recuperam, à sua maneira, a ideia de espera de Beckett) e um imaginário do teatro de leste, na cena do piquenique as personagens lembram o desespero, o cansaço, a perda de esperança das personagens de Tchékhov.
Este absurdo e este desespero parecem estar presentes na falta de sentido da palavra berg que se desdobra em bergado, bergar ou ser berg que, não significando nada, pode significar tudo, sobretudo aquilo que dizemos sem querer ou o que queremos sem dizer. Dito de outro modo, berg, a palavra transparente, expõe a relatividade da linguagem, da definição, do sentido, dos significados, reencontrando um dos temas do texto: a procura de sentido, mais que dos significados. As árvores penduradas podem dar corpo aos enforcados mas são árvores que nascem acima do chão, ramificam-se no ar, como as palavras, talvez, e o sentido das coisas. E também as emoções destas personagens são berg, o que nos leva a um ponto de vista onde o cosmos se inventa do caos. A maior parte do espectáculo actua no plano metonímico, (como no final, quando Lucien ondula com as árvores e o balanço das árvores sugere o balanço do corpo pendurado), no ritmo, no destaque dos elementos quotidianos e na expressão corporal, individual e colectiva.
Esta elaboração metonímica contribui para uma visão poética, quando uma elaboração metafórica criaria relações simbólicas. Mas a adaptação dramatúrgica sugere já essa leitura, reforçada pela encenação e por um elenco equilibrado, bem distribuído e versátil. A mecânica da marcação e da construção das cenas, a cenografia aberta no espaço e organizada pelos actores, salva a tese do absurdo que percorre o texto literário da sua tendência moralizadora, lenta, depressiva, que tornaria o espectáculo fastidioso e literário. Boas soluções cénicas demonstram um processo criativo atento e calculado, onde a articulação entre técnica e poética resulta num espectáculo dinâmico, teatral e sugestivo, sobre a ordem das palavras e o caos das emoções.
A falta de condições técnicas, humanas e financeiras ou os pressupostos estéticos que caracterizam a prática teatral portuguesa têm resultado em alguns espectáculos que se aproximam de uma certa linguagem do teatro de leste, na utilização de espaços não convencionais, na utilização expressiva de objectos pobres e na linguagem poética da construção das cenas. A própria encenadora admite no seu texto do programa essa influência através das suas memórias pessoais. Um exemplo dessa aproximação é a presença de encenadores como Vassiliev, Nekrosius ou Fomenko, outro exemplo foi o Seminário de Jovens Encenadores do Teatro Nacional D. Maria II, que a encenadora frequentou, e onde maior parte dos formadores internacionais eram da Europa de Leste (Rússia, Polónia, Lituânia).
Em Cosmos, essa ligação é recuperada, não só através do autor do texto, mas pela linguagem cénica, pelos objectos pobres e pelas marionetas, pela utilização expressiva e sugestiva dos objectos, isto é, na sua utilização expressiva pelos actores e na sua presença sugestiva, isolada, habitada de memórias. A suspeita de uma relação entre as duas realidades teatrais vem do facto de o objecto não ser estranho, mas familiar.
Texto original: Witold Gombrowicz Encenação: Cristina Carvalhal Adaptação Dramaturgica (a partir da tradução de Luíza Neto Jorge): Cristina Carvalhal Elenco: Albano Jerónimo (Witold), André Levy (Léon Wojtis), Bruno Simões (Fuchs), Cucha Carvalheiro (Bouboule Wojtis), Luís Gaspar (Lucien), Manuela Couto (Catherette Wojtis), Sandra Faleiro (Léna Wojtis) Direcção Plástica: Ana Limpinho, Maria João Castelo Música: Sérgio Delgado Desenho de luz: João Paulo Xavier Apoio ao movimento: Jens Altheimer Fotografia: Carmo Sousa, Luís Vasco Grafismo: Pedro Serpa Assessoria de Imprensa: Rui Calapez Operação Técnica: José Diogo, Nelson Malcata Assistência de Produção: Catarina Mascarenhas Produção: Mafalda Gouveia
Espaço: Teatro A Comuna, Lisboa
Datas: 2005/03/10 até 2005/04/17
Horários: Ter a Sáb: 22h; Dom: 16h
Sem raízes
Análise do espectáculo Cosmos
Teatro da Comuna, na noite de 15 de Março
No texto de Gombrowicz parecem existir duas dinâmicas paralelas: a construção do sentido das palavras e das ideias, e as variações que este problema cria no campo emocional, a culpa e o desejo. Estas duas linhas de desenvolvimento temático do texto organizam também a concepção do espectáculo, caracterizado por uma encenação pautada, por vezes musical. Mas, sendo um espectáculo ordenado é, também, um espectáculo sobre o caos.
O espectador começa por ser introduzido através de ritmos: um passo, um suspiro, uma folha que se rasga, gotas de água; a cenografia exposta sugere que os elementos cénicos, em vez de evoluírem, aparecem todo ao mesmo tempo, todos os tempos da narração aparecem no espaço em simultâneo, cruzando os territórios uns dos outros. É a sugestão do início quando os actores ocupam os espaços com pequenas intervenções, habitando territórios que lhes são estranhos, como a peça confirmará. Mas depois apercebemo-nos de que a concepção é diferente: o espaço cénico está dividido em territórios definidos: o quarto dos irmãos, o quarto dos pais, a cozinha, o quarto de casal, a casa de banho, o quintal, o bosque.
A disposição é circular, aberta ao meio, e este ponto não é o centro da representação mas um ponto de passagens, na linha de uma concepção geral heterogénea e descentralizada. O círculo fecha-se durante as cenas das refeições, na sala, à boca da cena. As refeições são sempre momentos que exigem uma gestão da contra-cena e isso foi conseguido em todas as situações, com repetições e modulações dos ritmos, com as trocas de olhares e os pequenos gestos e sobretudo com as saídas tumultuosas.
Mas parece existir uma passagem de um registo musical e artificial para um registo mais verosímil, espontâneo, natural, na cena do piquenique, afastando-se do rigor do esquematismo simbólico ou poético, da rítmica, dominada pelo tema da construção de sentido em função do tema emocional. As personagens mostram o que pensam e o que dizem pelo que falam, habitam o espaço com ordem, relacionam-se entre si com ordem. Quando, ao início, as personagens sugerem uma abordagem do absurdo (sobretudo os dois amigos recuperam, à sua maneira, a ideia de espera de Beckett) e um imaginário do teatro de leste, na cena do piquenique as personagens lembram o desespero, o cansaço, a perda de esperança das personagens de Tchékhov.
Este absurdo e este desespero parecem estar presentes na falta de sentido da palavra berg que se desdobra em bergado, bergar ou ser berg que, não significando nada, pode significar tudo, sobretudo aquilo que dizemos sem querer ou o que queremos sem dizer. Dito de outro modo, berg, a palavra transparente, expõe a relatividade da linguagem, da definição, do sentido, dos significados, reencontrando um dos temas do texto: a procura de sentido, mais que dos significados. As árvores penduradas podem dar corpo aos enforcados mas são árvores que nascem acima do chão, ramificam-se no ar, como as palavras, talvez, e o sentido das coisas. E também as emoções destas personagens são berg, o que nos leva a um ponto de vista onde o cosmos se inventa do caos. A maior parte do espectáculo actua no plano metonímico, (como no final, quando Lucien ondula com as árvores e o balanço das árvores sugere o balanço do corpo pendurado), no ritmo, no destaque dos elementos quotidianos e na expressão corporal, individual e colectiva.
Esta elaboração metonímica contribui para uma visão poética, quando uma elaboração metafórica criaria relações simbólicas. Mas a adaptação dramatúrgica sugere já essa leitura, reforçada pela encenação e por um elenco equilibrado, bem distribuído e versátil. A mecânica da marcação e da construção das cenas, a cenografia aberta no espaço e organizada pelos actores, salva a tese do absurdo que percorre o texto literário da sua tendência moralizadora, lenta, depressiva, que tornaria o espectáculo fastidioso e literário. Boas soluções cénicas demonstram um processo criativo atento e calculado, onde a articulação entre técnica e poética resulta num espectáculo dinâmico, teatral e sugestivo, sobre a ordem das palavras e o caos das emoções.
A falta de condições técnicas, humanas e financeiras ou os pressupostos estéticos que caracterizam a prática teatral portuguesa têm resultado em alguns espectáculos que se aproximam de uma certa linguagem do teatro de leste, na utilização de espaços não convencionais, na utilização expressiva de objectos pobres e na linguagem poética da construção das cenas. A própria encenadora admite no seu texto do programa essa influência através das suas memórias pessoais. Um exemplo dessa aproximação é a presença de encenadores como Vassiliev, Nekrosius ou Fomenko, outro exemplo foi o Seminário de Jovens Encenadores do Teatro Nacional D. Maria II, que a encenadora frequentou, e onde maior parte dos formadores internacionais eram da Europa de Leste (Rússia, Polónia, Lituânia).
Em Cosmos, essa ligação é recuperada, não só através do autor do texto, mas pela linguagem cénica, pelos objectos pobres e pelas marionetas, pela utilização expressiva e sugestiva dos objectos, isto é, na sua utilização expressiva pelos actores e na sua presença sugestiva, isolada, habitada de memórias. A suspeita de uma relação entre as duas realidades teatrais vem do facto de o objecto não ser estranho, mas familiar.
Pedro Manuel
Texto original: Witold Gombrowicz Encenação: Cristina Carvalhal Adaptação Dramaturgica (a partir da tradução de Luíza Neto Jorge): Cristina Carvalhal Elenco: Albano Jerónimo (Witold), André Levy (Léon Wojtis), Bruno Simões (Fuchs), Cucha Carvalheiro (Bouboule Wojtis), Luís Gaspar (Lucien), Manuela Couto (Catherette Wojtis), Sandra Faleiro (Léna Wojtis) Direcção Plástica: Ana Limpinho, Maria João Castelo Música: Sérgio Delgado Desenho de luz: João Paulo Xavier Apoio ao movimento: Jens Altheimer Fotografia: Carmo Sousa, Luís Vasco Grafismo: Pedro Serpa Assessoria de Imprensa: Rui Calapez Operação Técnica: José Diogo, Nelson Malcata Assistência de Produção: Catarina Mascarenhas Produção: Mafalda Gouveia
Espaço: Teatro A Comuna, Lisboa
Datas: 2005/03/10 até 2005/04/17
Horários: Ter a Sáb: 22h; Dom: 16h
Análise da responsabilidade de Pedro Manuel, excepto hiperligações e parágrafos.
Sem comentários:
Enviar um comentário