sexta-feira, julho 08, 2005

Ocupar o coração - as críticas (III)

Entrar na Paisagem

Análise a Nous étions assis sous le rivage du monde
Ubu - Compagnie de Création (Canadá)
Teatro da Trindade
7 de Julho de 2005
21.30

por Pedro Manuel

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No Auto da Barca para o Inferno, de Gil Vicente, a praia é uma figura poética para o purgatório, o areal é a linha a perder de vista onde se encontram a terra firme e a água em movimento. A praia é um espaço de transição, de passagem, de transformação, é o limbo, o fim da terra e o princípio da água. É também um espaço livre e aberto, anónimo e público, e daí a eficácia poética e dramatúrgica da praia como espaço de transição e de julgamento das almas.

E são alguns deste pressupostos que encontramos em Nous étions assis sous le Rivage du Monde de José Plyia, encenado por Denis Marleau e apresentado no Teatro da Trindade, integrado no Festival de Almada. Desta vez, não estamos numa praia distante e deserta onde chegam as almas penadas mas numa praia deserta da Martinica onde chega uma mulher. Regressa à praia da sua infância para reencontrar o país de onde emigrou e, sobretudo, o lugar das suas memórias ou, dito de outra forma, as suas raízes, o seu passado, a parte de si que ficou na praia chamada Rivage du Monde (Margem do Mundo). No entanto, a praia deixou de ser pública, é privada, de um só homem, estendido no areal, de óculos escuros. O diálogo entre as duas personagens constitui o núcleo dramatúrgico do texto, numa sucessão de jogadas determinadas pela lei e pelo desejo, pela força e pela sensualidade. Nesta transgressão de uma praia que é propriedade privada, neste confronto entre um nativo e uma estrangeirada, entre a força e sensualidade, entre o rigor da ordem social e a liberdade dos desejos, José Plyia parece ter encontrado uma situação para expor alguns elementos da sociedade da ilha de Martinica.

Mas a simples questão da transgressão de propriedade põe a descoberto uma questão social e, sobretudo, existencial. Se a dimensão política está presente na constante referência a uma ordem social e cultural, onde a cor determina um lugar e, neste caso, uma praia, por outro lado, a ideia de propriedade liga-se à identidade do proprietário e aqui podemos compreender a peça de José Plyia num contexto mais abrangente do aquele em que foi escrito.

A partir de questões sociais, as castas, as propriedades, as cores da cor negra, a relação entre nativos e emigrantes, desenvolve-se uma abordagem existencial à condição das identidades. A mulher vive no estrangeiro e guarda uma memória do seu país natal. Ao regressar procura reencontrar essas memórias, identificar-se com elas, (re)vivê-las. O homem é dono de uma praia, a defesa do seu espaço determina também a defesa da sua condição de proprietário, assente num sistema cultural entre as cores, os negros e os mestiços. O confronto entre estas duas visões sobre uma mesma margem deserta, através de jogos verbais e violência física, através da força e do desejo, expõe duas visões antagónicas.

No entanto, através de um dispositivo formal de jogo, José Plyia consegue ir invertendo as posições, desconstruindo a solidez das afirmações de cada um e, em consequência, das suas personalidades. O homem põe em evidência as falsas memórias da mulher, levando-a a lembrar-se do que quis esquecer e de quem tinha sido e ainda é, uma mestiça e uma emigrada. A mulher subverte a solidez das opiniões dele,levando-o a admitir uma possibilidade de contacto, de desejo, de amor.

Esta inversão é pontuada por dois momentos e uma passagem que podemos associar à ideia de Jogo. Para além do constante jogo de palavras e argumentos, de encadeamentos e ganchos, Plyia utiliza a violência física como interruptor, ora interrompendo o discurso verbal e introduzindo uma forte densidade emocional, de culpa e ressentimento, ora como ponto de inversão. No primeiro gesto de violência, o homem agride a mulher, colocando-a na dependência de uma explicação, introduzindo-a numa dimensão desconhecida da realidade do seu país e das memórias da sua infância. No segundo momento, a mulher agride o homem, no momento em que este a ameaçava de violação (verbalmente), para que ela atingisse o ponto mínimo de individualidade, de humanidade, e reconhecesse a sua condição inferior.

Mas ela agride-o e, uma vez mais, o outro fica dependente, neste caso, através do desejo, construído nos instantes anteriores através do discurso de violência sexual, mas invertido agora, ou convertido, em dependência, desejo, abertura. Os papéis invertem-se. É desta forma, através de um ciclo e de uma passagem, que José Plyia enreda o jogo verbal e prepara a irrupção da violência como veículos de troca de domínio, seja através da lei ou do desejo. O Jogo é então usado como estratégia de afirmação, confronto e, sobretudo, compreensão. O jogo faz compreender. As personagens utilizam jogos para se fazerem compreender. Como quando chegam os dois amigos da mulher - concentrando neles a identificação do espectador como personagens exteriores ao conflito - , que a tentam avisar para sair dali, o amigo através de um discurso carregado e atravessado de calão, trazendo o bulício da cidade às dunas da praia e o desarranjo nervoso,e a amiga de infância que utiliza um jogo de crianças junto à rebentação para fazer compreender a necessidade de sair dali. Assim, pouco a pouco, vamos entrando nas aparências.

Neste sentido, a encenação de Denis Marleau reforça esta ideia de crescimento da tensão do espectáculo e consolidação da relação dos protagonistas. O espaço cénico é dominado por uma duna branca sob um fundo azul constante para quatro actores negros de diferentes negros da Martinica. Mas todo o espaço cénico é enquadrado por uma moldura negra à boca de cena, encaixando-os. A moldura acaba por funcionar como um mis-en-cardre, acabando por emoldurar o espaço cénico, planificando-o como um écran ou um postal de férias da Martinica, reencontrando assim o texto, no seu esforço de desconstrução de imaginários. A duna torna-se, também, um dispositivo eficaz na criação de relevo e volume da cena, criando diferentes alturas e distâncias do corpo e voz dos actores, dirigidos com atenção e cuidado, capazes de gerir longos silêncios e tensões, a partir de uma expressividade do imóvel, lento, ocupando o espaço cénico e a relação coma plateia através das posturas e olhares frontais.

Por fim, resta sensação de uma grande cumplicidade entre Plyia e Marleau para criar um espectáculo sobre a «ideia de cor», a entrada no «interior das paisagens», encontrando na figura da margemum ponto de confronto com o outro e de encontro consigo próprio, talvez emigrado.


O espectáculo repete hoje às 21h30.

Ver aqui sobre a conferência de imprensa de Denis Marleau, encenador do espectáculo
Ver aqui as reacções do público

Outras críticas aos espectáculos do 22º Festival de Almada, já publicadas:

MANUCURE, de João Grosso
PODER, pela Companhia de Teatro de Almada

Toda a programação do 22º Festival de Almada pode ser consultada aqui.

Ver o dossier OCUPAR O CORAÇÃO - O MELHOR ANJO NO 22º FESTIVAL DE ALMADA

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