quinta-feira, julho 07, 2005

Ocupar o coração - as conferências de imprensa (I)

À flor da pele

por Tiago Bartolomeu Costa e Pedro Manuel

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Denis Marleau. Foto: Pedro Manuel

Na edição de 2003, a companhia canadiana UBU- Compagnie de Création, dirigida pelo encenador Denis Marleau, apresentou no Festival de Almada Les Aveugles, de Maurice Maeterlinck, um dos espectáculos que fazia parte do projecto Fantasmagories Technologiques, caracterizado por uma abordagem em vídeo e sem actores (e que fez de Les Aveugles uma das propostas mais estimulantes da época teatral internacional). Desta vez, Denis Marleau regressa com um espectáculo construído num confronto de palavras e corpos na insular Martinica.

O encenador esteve ontem no Teatro da Trindade para um encontro com jornalistas, em jeito de apresentação da peça Nous étions assis sur la rivage du monde (hoje e amanhã às 21h30, Teatro da Trindade) onde falou da necessidade que sentiu em ultrapassar o bilhete-postal e a visão romântica que tinha da ex-colónia francesa transformada em ilha paradisíaca, entrando «no interior da paisagem», da imagem, para falar da história, das relações entre os povos e, sobretudo, da importância das cores da pele na construção de uma sociedade.

Denis Marleau respondeu assim ao desafio do autor José Plyia, do Benim, depois de um encontro casual em Otawa. O dramaturgo construiu um discurso sobre a raça, baseado na relação pessoal que tem com Martinica, desenvolvendo um texto assente numa constante definição e repetição, onde os efeitos passam pela expressividade do actor e da sua presença em palco, num jogo (por vezes infantil) que quer ser um equilíbrio entre o presente e o passado: «Em Les Aveugles era tudo negro e dominado pelas máscaras, aqui é tudo branco e dominado pelo corpo dos actores.

A encenação, encomendada pela Scéne Nationale da Martinica, faz do confronto entre um homem (Éric Delor) e uma mulher (Ruddy Sylaire) um espaço para a representação de emoções e ideias de mestiçagem, transferindo essa ideia para um espaço cénico despojado de artefactos, uma praia que se torna num espaço histórico e num espaço virgem, uma praia que se torna espaço de confronto entre a opressão no presente e a memória do passado, sintetizadasna relação entre os corpos masculino e feminino.

A escolha dos intérpretes, explicou Marleau, foi um dos pontos de partida para a sua abordagem. Tendo inicialmente pensado que a peça poderia ser feita com actores brancos, foi só depois de José Plyia lhe explicar o modo como a sociedade se organizou em castas (e diversas repressões, como as histórias, sexuais, etc.), e a importância de olhar para os habitantes como resistentes, é que Marleau percebeu que atéos mais simples gestos (como dizer bom dia) fazia toda a diferença. O encenador canadiano acredita que a sua encenação - mais do que provocar um rasgo no reportório da UBU - permite uma leitura mais ampla da dimensões cénica e do modo como o teatro pode ser um lugar de debate sem forçar um determinismo histórico ou político, mas também existencial. Ou seja, não foi só o facto de ser um encenador quebequiano (também ele portador da memória de uma ex-colónia francesa) a trabalhar um texto de um autor africano numa ilha feita de ocultas histórias de escravatura que potenciaram o espectáculo, mas também o modo como isso permitiu um confronto com as suas próprias ideias e percepções, da história do Quebec, no que isso representa de uma relação directa e emocional e não tanto antropológica.

Neste espectáculo, Denis Marleau quis acentuar o confronto interior e a tensão entre as personagens através de uma estrutura que, diz, evoca os fantasmas do Teatro Nô, num confronto com o passado (as tais histórias ocultas da ilha, o que promove uma pertinente inscrição das marcas desta na história) que quer pensar o presente.

Daí que Marleau repita por diversas vezes a palavra reencontro e cores de pele. Porque são duas chaves de criação do espectáculo: a ideia de reencontro dos opostos e, no limite, consigo próprio. Esta ideia é materializada de duas formas: uma sobre a «ideia de pele», ao que possa corresponder, onde não há uma cor negra, mas várias; e na imagem do rio, porque é entre duas margens que se dá o confronto/ reencontro.

É assim que é dada margem ao espectador para uma reflexão sobre o modo como uma sociedade se organiza e pensa. Porque a sociedade reflecte-se e é reflectida no indivíduo, no confronto com o eu interior. Por outro lado, rivage du monde é apenas uma praia, para lembrar, e passar.



Toda a programação do 22º Festival de Almada pode ser consultada aqui.

Dossier Ocupar o Coração - O Melhor Anjo no 22º Festival de Almada (em construção)

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