sábado, julho 09, 2005

Ocupar o coração - as críticas (IV)

Moinhos de vento

Análise a Farsa Quixotesca
pela companhia Pia Fraus (Brasil)
Escola D. António da Costa, Almada
06 Julho 2005
21h30

por Tiago Bartolomeu Costa

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A participação da companhia brasileira Pia Fraus no 22º Festival de Almada (Palco Grande da Escola D. António da Costa, 06 Julho) fez-se com uma variação da história de Miguel Cervantes, D. Quixote de la Mancha, no ano em que se comemora o 4º centenário da publicação do 1ºvolume. A companhia, auxiliada pelo grupo de teatro de rua Parlapatões, de S. Paulo procurou fazer da famosa história um encontro de práticas e técnicas que correspondessem ao habitual trabalho que produzem. Assim, no mesmo palco misturavam-se teatro de fantoches, números de fogo e malabares, máscara e teatro sustentado numa componente física de resistência e aceleração. A combinação destes elementos deveria trazer ao espectáculo uma dimensão surrealista, que acentuasse o onirismo latente no texto de Cervantes.

Contudo, Farsa Quixotesca é uma confusa e gritada proposta que mais do que convencer e entreter, aposta no desenvolvimento algo superficial da história, recusando até o potencial da adaptação dramatúrgica. Veja-se o momento em que uma companhia de títeres estabelece um paralelo com a história de Dulcineia e Quixote. Ao dividir a personagem de Quixote (e Sancho Pança, naturalmente) por três actores, a companhia parece querer dar a ler uma posição que assume as diversas personagens que o próprio Quixote representou (ou acreditou ser): o cavaleiro da triste figura, o cavaleiro dos espelhos, o cavaleiro dos leões. Razão pela qual, os momentos mais interessante acontecem quando os vários Quixotes partilham o discurso dando ênfase a essa multiplicação de personalidades. Estes momentos passam-se no fundo do palco e atrás de uma cortina transparente. Os Quixotes falam para um ente desconhecido (mesmo que se refiram a Sancho Pança), pois encontram-se já num território assumidamente de sonho e crença. Numa outra altura chegam a afirmar sobre o outro Quixote tratar-se de um 'sonhador perdido entre aventuras'.

Este é um espectáculo que começa com D. Quixote já morto e é narrado por uma Dulcineia que, percebe-se no final, está refugiada num convento, de onde pretende narrar a sua história. Considerando que ao longo de toda a obra de Cervantes, Dulcineia tem dúvidas sobre as verdadeiras intenções de D. Quixote, esta leitura poderia promover uma nova forma de ler o clássico. Contudo, a Dulcineia da Pia Fraus é feita de espasmos semi-eróticos e histriónicos movimentos, num registo difícil de convencer para lá de uma caricatura de uma demente.

Aliás, toda esta Farsa Quixotesca parece perder-se entre uma caricatura do que é um teatro de feira e uma abordagem fantasiosa a um universo já de si estranho. E cuja abordagem quase à la Kusturica parece compreender. Fica-se na dúvida se a proposta não funcionaria melhor fora de um palco convencional e com o público ao seu redor, uma vez que se sente uma urgência em comunicar com quem vê. E pela distância cénica, essa comunicação processa-se de um modo algo inconsequente e feita de graças pouco eficazes que reúnem alusões à política, espaço social, comentários sobre o público e actualidades e uma banda sonora algo confusa que atravessa vários estilos e tendências numa aposta na modernidade que não passa de superficial. O problema não está obviamente nesta opção, mas no modo como ela parece anacrónica, em virtude de outros elementos parecerem denunciar uma abordagem mais íntegra. É o caso do desenho de luz (demasiado formal para esta leitura) e de algumas soluções cenográficas (o espaço dos Quixotes referido anteriormente e os diversos moinhos espalhados pelo palco).

Fica, no final, a sensação de que Farsa Quixotesca cumpre a sua função de espectáculo para o grande público, não no sentido de movimentar emoções em grande escala, mas antes através da promoção e perpetuação de recursos fáceis (as piadas, mas também as quedas, o insultar do público, o estilo quase rocambolesco e improvisado,...). O que se lamenta é, sobretudo, a oportunidade perdida de dar ao romance de Cervantes uma nova leitura que não seja meramente farsesca. Porque, afinal, a farsa sempre foi utilizada para falar jocosamente de temas sérios. E aqui o tema sério parece ser um moinho de vento.

Ver aqui as reacções do público ao espectáculo.

Outras críticas aos espectáculos do 22º Festival de Almada já publicadas:

MANUCURE, de João Grosso, por Tiago Bartolomeu Costa
PODER, pela Companhia de Teatro de Almada, por Pedro Manuel
NOUS ETIONS ASSIS SUR LA RIVAGE DU MONDE, pela UBU - Compagnie de Creation, por Pedro Manuel

Toda a programação do 22º Festival de Almada pode ser consultada aqui.

Ver o dossier OCUPAR O CORAÇÃO - O MELHOR ANJO NO 22º FESTIVAL DE ALMADA

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