sábado, outubro 22, 2005

Nado-morto

Análise a
de Francisco Camacho (Culturgest, 13 Outubro, 21h30, meia sala)
e
de Rui Horta (CCB, 14 Outubro, 21h30, sala cheia)
Festival Temp d’Images 2005


Live-Evil/Evil-Live. Foto: Miguel Bonneville

Duas criações nacionais, voltam a encontrar-se no âmbito de um festival, o Temps d’Images (06 a 16 Outubro, vários locais de Lisboa), depois de terem sido programadas para a Plataforma de Dança Contemporânea, que decorreu no passado mês de Setembro, incluída na programação da Faro 2005 - Capital Nacional da Cultura. Refiro-me a Live-Evil/Evil-Live, de Francisco Camacho (Culturgest, 13 e 14 Outubro) e Set Up, de Rui Horta (CCB, 14 e 15 Outubro).

A oportunidade de vê-las integradas num mesmo quadro temático, permite apontar linhas programáticas e referenciais num universo criativo tantas vezes definido como espartano, solitário e pouco influenciável (ou mal influenciado). Se o resultado desta última edição do Festival Temp d’Images não é necessariamente relevante (artisticamente falando), é, contudo, revelador de uma preocupação em confrontar discursos artísticos e plásticos. Mesmo quando o que é dado a ver, possa por vezes representar pouco (ou confundir) o percurso individual, programas estéticos e criativos de cada um dos coreógrafos.

Ambos os espectáculos parecem caminhar para uma relação comum com o espectador, dependente do modo como os coreógrafos, que fizeram parte do denominado movimento “Nova Dança Portuguesa”, pensam hoje o seu lugar na criação contemporânea, o papel que cada espectáculo tem na construção de um discurso que se automomize e, sobretudo, na sua relação com os pares.

Pode, à primeira vista, parecer um programa de contextualização demasiado vasto, e, no entanto, as reflexões são isso mesmo, especialmente porque os espectáculos não são entidades autónomas e, mesmo subrepticiamente, estabelecem linhas com anteriores (e próximas) propostas.

E é por isso que o texto que Augusto M. Seabra escreveu para o jornal PÚBLICO, As aporias da vanguarda (28 Fevereiro 2003), a propósito de um espectáculo de Clara Andermatt, Polaroid (CCB, 21 a 23 Fevereiro 2003), me parece de útil recuperação. E cito: “após uma importantíssima explosão criativa, [a ‘nova dança portuguesa’] encontra [-se] virtualmente exangue. […] Confesso o meu muito cansaço de operações estéticas que se querem auto-suficientemente validadas num discurso teórico; há um discurso sobre o corpo, como preliminar sobredeterminante, em vez de um pensamento sobre o corpo”.

Ora, tanto o espectáculo de Francisco Camacho, como o de Rui Horta, se sustentam numa ideia de equilíbrio entre o espectáculo como veículo de uma mensagem, e ser a própria mensagem. Sendo que essa mensagem não reflecte tanto uma ideia de corpo, ou de corpo como representação de um ideário, mas antes um discurso crente no poder que os espectáculos podem ter na transmissão de mensagens. E se Augusto M. Seabra falava de uma aporia (“figura retórica usada pelo orador, para mostrar que hesita na orientação a dar ao seu discurso; dificuldade lógica insuperável; situação insolúvel, beco sem saída”, diz o Dicionário da Academia, que cita), é exactamente essa a definição que se pode utilizar para descrever o que os dois criadores apresentam. Espectáculos estruturalmente ambíguos, que se perdem em códigos e esquemas formais, acreditando reinventá-los, mas não fazendo mais que uma retórica e superficial discussão acerca da relação corpo-mensagem.

Live-Evil/Evil-Live. Samuel Louwyck e Sílvia Real. Foto: Francisca Paula

Francisco Camacho é, nesse aspecto, o que mais longe vai na afirmação de um discurso onde a vertente política, sendo assumida, é-o com uma ligeireza indesculpável. Live-Evil/Evil-Live, que parte da ironia da obra literária de Bulgakov, Margarita e o Mestre, quer reflectir sobre a eterna luta entre o bem e o mal, através de longas sequências onde os intérpretes (Carlota Lagido, Miguel Bonneville, Sílvia Real, Samuel Louwyck e Sara Vaz, em substituição de Anja Gross), se passeiam-se por entre mortalhas dispostas ao longo do palco, de onde vão retirando peças de vestuário, o que imediatamente recorda outros corpos, outras vítimas, e sobretudo, introduz o tom amargo e impotente em que todo o espectáculo se vai desenvolver. Uma imagem que, obviamente, remete para os despojos que mais facilmente são lembrados, basta recordar as imagens da queda das Torres Gémeas, com peças de roupa a voarem.

Os intérpretes (ou deveria dizer, os corpos?) relacionam-se, contidos e tensos, com uma enorme projecção de vídeos de guerra ou paisagens bucólicas, da responsabilidade de Bruno de Almeida, e uma banda sonora austera e pressurante, onde cabem valsas, samplers e helicópteros. Um exercício de acumulação visual e sonora, que vacila entre a determinação com que o espectáculo se quer apresentar - uma exploração das “consequências da inevitável ambiguidade que se desencadeia a partir da posição privilegiada, embora posta em risco, enquanto testemunhas dos desenvolvimentos à escala planetária, bem como das vidas de todos e de cada um”, como dizem no programa -, e a impossibilidade de não reagir à manipulação de imagens de terror. Especialmente quando essas imagens passam como se o Homem (o ocidental, pois claro) fosse ausente de responsabilidade.

A estetização do mal surge aqui como uma opção gratuita e banal, em que há uma lisura no tratamento das imagens. Genocídios confundem-se com vulcões em erupção, rios plácidos misturam-se com campos devastados por bombas atómicas, como se fosse possível estabelecer-se uma base comum de assimilação dos acontecimentos. Como se fosse possível banalizar o terror e o drama, meramente por conveniência dramatúrgica.


Live-Evil/Evil-Live. Sílvia Real e Miguel Bonneville. Foto: Francisca Paula

Esta indefinição, e aquilo que poderia ser o ponto de envolvência com o espectador (porque significaria o assumir de uma posição, até mesmo uma apologia a uma consciente estética fascista, coisa que este espectáculo nem sequer consegue), prende-se com o lugar do intérprete. Sonâmbulos e quase inexistentes, cada um dos intérpretes é sujeito a uma bidimensionalidade que deriva do filme, sendo ultrapassado pelo peso das imagens, que faz deles cúmplices silenciosos do que é projectado, e, obviamente, parte da projecção.

Live-Evil/Evil-Live parece assim esquecer o que Walter Benjamin disse no ensaio The work of art in age of mechanical reproduction: “For the film, what matters primarily is that the actor represents himself to the public before the camera, rather than representing someone else (...) The audience’s identification with the actor is really an identification with the camera”.

Disse o coreógrafo em entrevista ao jornal PÚBLICO (02 Setembro 2005), que “as personagens fazem escolhas, não são vítimas de impulsos exteriores. Se optam pelo mal é porque decidiram fazê-lo”. Mas se a intenção de Francisco Camacho era a de atribuir responsabilidades ao corpo, através da criação de personagens, a banalidade dos gestos, feitos de movimentações esparsas e ambíguas - e em que cada um dos intérpretes mais do que perdido no espaço, parece não reconhecer uma lógica narrativa -, obriga ao estabelecimento de relações directas entre o que se vê em palco e o que se projecta. Sobretudo porque não são inocentes determinadas opções dramatúrgicas, sendo as mais gritantes, o momento em que Sara Vaz (que se passeia em palco numa apatia cúmplice e superficial), canta uma canção alemã, e a displicência com que Carlota Lagido e Miguel Bonneville se entregam a um jogo de prazer e sedução no final da peça.

Live-Evil/Evil-Live, na sua ambiguidade coreográfica, impede um verdadeiro discurso político, tão reivindicado quer no programa, quer no próprio percurso de Francisco Camacho, que procurou sempre dar ao seu trabalho um cunho assumidamente interventivo e provocatório. Mas aqui, quer a projecção quer a banda sonora impedem o desenvolvimento do espectáculo, castram o trabalho interpretativo e obrigam a uma recusa, não tanto pelo que é mostrado, mas pelo modo como o é feito. Toda a violência gráfica sufoca qualquer capacidade de relação entre o espectáculo (a mensagem) e o espectador que, forçado a digerir todas estas ausências, se sente quase culpado pelo sequestro a que os intérpretes (ou diria, as personagens?) estão sujeitos.

A dimensão trabalhada nesta proposta, obriga a uma profunda reflexão sobre o cânone, o modo como é trabalhado, e o facto de, hoje, ser impossível proceder-se à construção de um espectáculo, sem pensar nas permanentes, e por vezes castradoras, linhas de comparação. Preso a uma ‘ingerência criativa’, Live-Evil/Evil-Live serve de exemplo para pensar o lugar de um espectáculo na sua relação com a envolvente.

Set Up. Foto: Helder Cardoso

Rui Horta, por seu lado, volta a apostar em Set Up, numa ambiguidade entre o teatro e a dança, assente na ideia de que o espectador saberá organizar o seu discurso criativo a partir das ferramentas que o coreógrafo apresenta. Não sendo tão gritante a sensação de aporia, não deixa, no entanto, de ser curioso observar que o mecanismo de convencimento que Horta quer operar no espectador é tão falacioso, quanto achar-se que um espectáculo, mesmo dependente do espectador, não deve saber que caminho quer seguir.

Os espectadores são ‘convidados’ a aguardar num corredor feito entre plateias colocadas no palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, depois de terem passado por duas assistentes que lhes colocam etiquetas com nomes pessoais. A ideia, segundo o programa, é convidar o espectador a esquecer-se do seu próprio nome (logo, da sua identidade) e procurar uma nova, depreendendo-se, que será o espectáculo a fornecê-la.

Assim, nesse estreito corredor, o agora anónimo (ou desconhecido para si mesmo) espectador, aguarda que lhe indiquem uma plateia, ao mesmo tempo que observa o outro (duplamente anónimo e desconhecido), ao som de música de discoteca. A semi-escuridão e a proximidade dos corpos deverão provocar um sentimento de incomodidade, aliada ainda ao facto de se ter perdido a identidade. Ou seja, aposta-se num jogo de procura, em que o anonimato inerente a uma plateia é posto em causa.

Os três intérpretes (Anton Skrzypiciel, Bruno Heynderickx e Nicola Carofiglio) passeiam-se pela audiência, dançando e convidando os espectadores a fazer o mesmo. Depois segue-se uma correria para as duas plateias, há espectadores que ficam sem lugar, correm-se as cortinas em frente a cada uma dessas plateias, e dá-se início ao espectáculo, formalmente falando. Cada espectador passa a ter um referente na bancada oposta, devendo acreditar naquele ‘espelho’ para se pensar enquanto indivíduo. A imagem que aqui é trabalhada não é nem virtual nem bidimensional, mas antes os corpos de cada um dos espectadores sem identidade.

Set Up, de acordo com o programa, acredita que “percepção, questões de identidade, multiplicidade de postos de vista e falta de verdadeira comunicação são conceitos que ganham corpo nesta encenação da não-comunicação”. Mas, na verdade, todo o espectáculo peca por uma sobre-exposição desse mesmo mecanismo, através de jogos entre os intérpretes e os espectadores, blackouts, impedimento de visibilidade e exercícios de virtuosismo que pouco contribuem para o desenvolvimento da estrutura coreográfica.

Criando um espectáculo dentro do próprio espectáculo, Rui Horta procede à criação de sequências de confronto entre os três intérpretes, numa estilização da violência da masculinidade, em exercícios onde os corpos se sujeitem a regras normativas e estanques. Nesse sentido, supõe-se que a massa corporal composta pelos intérpretes deva servir como chamada de atenção para a perda de identidade e a necessária busca de um objectivo. Esse objectivo será, no fundo, o contrário do que o espectáculo propõe: a individualização.

Set Up. Foto: Helder Cardoso

Crente num processo de sedução, esta proposta, poderá ter a ver com proximidade e até com a estimulação de novos sentidos para a percepção do lugar de cada um num universo cada vez mais egoísta e solitário. Mas dificilmente se acredita que tal se concretize a partir da destruição das fronteiras, de regras e de modelos comparativos, uma vez que nada de novo se apresenta. Supõe-se que a proposta deveria reflectir sobre o caminho que nos levou até à não-identificação, ou se quisermos, perceber que fazer, agora que essa não-identificação é um dado adquirido. Mas, ao invés de uma reflexão sobre a sensação de aprisionamento, há um certo prazer, diria masoquista, em insistir numa estrutura concentracionária, redundante e de translação.

A teatralização do movimento, do corpo e da palavra não obedece a um preceito coreográfico, sujeitando-se a ambíguas divisões que mais do que desenvolverem uma lógica cénica, acumulam meros preceitos estéticos. Set Up armadilha-se e cede ante a sua própria estrutura. Torna-se assim refém do seu discurso, incapaz de produzir algo de pertinente ou relevante. Todo o espectáculo suspende-se num difícil equilíbrio entre a qualidade técnica dos intérpretes, onde se destaca, pela positiva, o trabalho do belga Bruno Heynderickx, e a superficialidade dos movimentos e acções.

Ao espectador, sujeito a um papel de permanente e forçado observador, é-lhe retirada qualquer possibilidade de interagir com o que se passa, uma vez que as fórmulas apresentadas já estão previamente definidas. Diria mesmo que se sujeita o espectador a um jogo falso entre verdade e mentira. Não há em Set Up, qualquer razão para se acreditar que existe uma vontade de interacção. Há sim um jogo de ilusão técnica e esteticamente duvidoso. O que até pode ser interessante, mas não era exactamente o ponto de partida.

Live-Evil/Evil-Live e Set Up têm em comum o facto de se organizarem em estruturas dramatúrgicas que se obrigam à construção de um discurso, sem procurarem perceber o modo como esse discurso vai ser recebido. Por isso mesmo, é preciso reflectir sobre o lugar da dança, e da escrita coreográfica, se se acreditar que o movimento pode mais que a palavra. Ou seja, proceder ao resgate do corpo. Ambas as peças apresentam confrontos morais e estéticos, nos quais há uma acumulação de referentes sobre o modo como o corpo se sujeita à mensagem e o olhar percepciona essa relação.

Cada um deles desenvolve depois uma dramaturgia na qual o corpo funciona como agente dessa mensagem, ainda que, como se viu, impedido de uma autonomização. Assim sendo, cada espectador é forçado a um diálogo surdo com o espectáculo, já que aquele que seria o ponto de ligação (o corpo) desaparece em lógicas argumentativas falaciosas e estanques.

São os próprios coreógrafos a afirmá-lo nos respectivos programas. Diz Camacho: “Um corpo que conheceu diferentes ideais, nas diferentes épocas, que a indústria do sexo e entretenimento elevaram a padrões (capitalistas) inatingíveis”. E diz Horta: “quando a palavra não chega, o corpo transporta a única comunicação possível”. Num e noutro caso os corpos chegaram mortos. Não houve sequer espaço para o espectador os ‘salvar’.

Sem comentários: