quarta-feira, junho 29, 2005

A condição dos objectos


Análise a Trio, de Tiago Guedes
Teatro Carlos Alberto, Porto
30 Junho e 01 Julho 2005
21h30

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Foto: Patrícia Almeida

Trio apresenta-se como uma proposta que se quer hipnótica e em transe, no que isso representa de capacidade de ver para lá do que é exposto. No entanto, um olhar que não descure a simplicidade do gesto. Ou seja, é ao mesmo tempo um discurso sobre "o gesto pelo gesto", e uma estrutura frásica e cumulativa que promove um evoluir da capacidade de pensamento sobre o que é dado. A proposta reside numa exposição radical, seca e limitada de três movimentos, como se de três notas musicais se tratassem. Do conjunto de repetições e suas variações, nascerá uma coreografia de linhas e segredos que radica na tensão estabelecida entre quem vê e quem faz. Uma tensão que não se quer prejudicial, mas em nome de um objecto a carecer de definição e utilidade. Esse objecto é, para Tiago Guedes (e finalmente) o corpo.

Em espectáculos anteriores, o coreógrafo trabalhou objectos (materiais ou não), sendo que a abordagem partia sempre de um pensamento sobre a capacidade de manipulação dos objectos utilizados. Em Um Solo (2002), era trabalhada a imagem do próprio coreógrafo através de um dispositivo auto-irónico e destrutivo, no qual importava mais a persona que o criador. No caso de Um espectáculo com estreia marcada (2002) falava da manipulação de certas coordenadas, e a forma como são executadas em nome de um objectivo comum: a estreia de um espectáculo. E, por isso, a proposta deixava-se atravessar pelo processo criativo, estabelecendo relações com uma ideia de exposição. A proposta seguinte, Materiais Diversos (2003) permitia-se a um jogo duplo de observação/reacção, onde era dada primazia ao modo como o poder de ilusão era doseado pelo coreógrafo. Em duas partes distintas do espectáculo, Tiago Guedes propunha uma leitura não finita a partir de uma disposição pessoal dos objectos, quase todos recicláveis.

Mas sobrou sempre o corpo. Exactamente a matéria a ser trabalhada em Trio (estreia mundial em Arméntières, França, no festival Le Vivat a 01 de Abril 2005; estreia em Portugal a 14 de Abril, na Culturgest, Lisboa). E neste regresso ao corpo - afinal o ponto de origem para a relação com os objectos -, Tiago Guedes pensa-o assente num trabalho sobre o interior das construções coreográficas, pesando as suas origens, razões e consequências. Não é por isso de estranhar que se possa ler uma abordagem (há quem diga cínica, eu prefiro o termo atenta) à própria história da dança, convocando memórias construtivistas e até pós-modernas. Considerando que cada nova proposta (tenha ou não essa consciência) implica sempre uma abordagem sobre o que a levou a existir, diria que Trio se permite ao desenvolvimento de uma linguagem própria que pense a organicidade do corpo. Ou seja, de nada servirá um corpo que dance, se não souber porquê. Ou se se limitar a somar as partes. Logo, uma abordagem que implica uma biografia, mas não uma biofagia.

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Foto: Patrícia Almeida

Nada aqui existe por acaso. Três intérpretes (Inês Jacques, Martim Pedroso, Tiago Guedes) que se repetem num movimento, trocando entre si o que fazem ou trabalhando velocidades e introduzindo pequenas variações. Uma base de trabalho apostada na uniformização do discurso e que utiliza e manipula a necessidade de diferença. Movimento, olhares e figurinos (só muda a cor das camisolas que usam) são utilizados de forma a que nada os distinga. Nem mesmo o aparente desenvolvimento de uma ideia de personalidade lhes dá uma liberdade individual. Mesmo porque a individualidade e anonimato do cobrir da cara com as camisolas, só deixando espaço para os olhos e a boca, os obriga a uma continuação/repetição/evolução do movimento. Os três "operários de uma fábrica de movimento" estão presos à condição de busca de uma verdade. E por esse rigor nos movimentos, Trio não poderia ser mais exposto ao espectador, já que radicaliza o papel deste e assume a busca pelo "espectador verdadeiro". Ou seja, aquele que saiba trabalhar com a matéria que lhe é apresentada, pensando-a e abordando-a em colaboração com os intérpretes. Razão pela qual da frieza de Trio retemos os olhos abertos dos intérpretes. Um olhar distante, mas consciente e atento. Também à procura. Nem que seja de uma saída, como parece indiciar a luz final quase-salvífica, precisa e depurada de Caty Olive.

E, por isso mesmo (e correndo o risco de parecer moralizador), dizer que não há som é não saber ouvir (o som dos movimentos, a respiração dos corpos, o contacto com o linóleo e, quase como prenda no final, um breve e nada inocente trecho de John Adams); dizer que não há movimento é não saber ver (Trio é, também, sobre a importância do gesto quotidiano e inútil); dizer que 'não acontece nada' é assumir um incómodo com o vazio. No limite, assume que dentro da mensagem está o código para a decifrarmos. Apresentando-se assim ao espectador, Tiago Guedes promove um diálogo franco e aberto, em busca de um sentido não só para o seu trabalho (voltam a ser pensadas questões como a solidão, o humor, a distância e a manipulação), mas para a própria convocação de pontos de vista a que se dá o nome de espectáculo.

Trio é, ainda, um espectáculo-pergunta («Quais as intenções de uma composição coreográfica?») que aposta numa 'escrita coreográfica' (a expressão é de Tiago Guedes) que, sendo limitada, deve procurar aperceber-se das vantagens da variação e um trabalhar dentro de fronteiras. Esta é uma proposta que não quer ser outra coisa senão um regresso ao primado da dança. Razão que toma outras proporções num tempo que se presta a constantes redefinições das práticas. O coreógrafo trabalha um dispositivo simples e quase primário que exige do espectador uma capacidade de atenção e resistência. Exigência esse que se prende com o que possa ser uma constante vontade, da parte do espectador, em procurar uma acção e uma justificação. Em Trio, o que se vê é o que se têm: os intérpretes ora estão deitados no chão, de joelhos e braços curvados ou de pé e braço direito estendido no ar. Tão simples e tão amplo quanto isso.

E só aparentemente é que esta é uma proposta minimalista, uma vez que a utilização de vocabulário gestual limitado propõe reduzir as hipóteses em nome de uma depuração que sirva os objectivos. Assim, radicar a proposta numa categoria minimal pode sugerir uma recusa de pensamento sobre o modo como Trio procura definir o lugar da dança como espaço de presença do corpo. Presença essa que será tanto mais suficiente quanto fundamentadas forem as opções do coreógrafo. Que, no caso, e por limitá-las, se presta a um exercício de observação/contemplação, não só em busca de uma paisagem coreográfica, mas a uma espécie de tela em permanente construção (tela essa a que não é alheia a proposta cenográfica: um espaço limitado por um linóleo branco, em nítido contraste com um conjunto de reflectores suspensos). Trio não faz mais do que propor linhas de leitura que passam por uma fundamentação relacionada com a envolvente e circunstâncias. Este espectáculo de Tiago Guedes é, por isso, das propostas mais verdadeiras sobre o air du temps, porque nos obriga a pensar a condição dos objectos. Para já, presos à eterna condição de serem. Para sempre.


TRIO é apresentado esta 5ª e 6ª feira no Teatro Carlos Alberto, no Porto, no âmbito do programa Dancem 05! e em Faro, entre os dias 17 e 19 de Setembro.

Sobre o trabalho de Tiago Guedes neste blog:

Ler a entrevista exclusiva a Tiago Guedes: À volta de Trio, publicada neste blog na altura da estreia do espectáculo em Lisboa:
1ª parte: [percurso] + [o objecto]
2ª parte: [o corpo e a solidão] + [trabalhar com outros intérpretes]
3ª parte: [a relação com o público e os espaços de apresentação] + [condições de produção]
Ler aqui a análise à apresentação da proposta de Tiago Guedes para o 11º LAB, onde se mostrou parte do processo
Ler aqui a análise ao anterior espectáculo de Tiago Guedes: Materiais Diversos

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