domingo, agosto 21, 2005

I love you (not)

Análise a The End of Love
de Lúcia Sigalho
Casa dos Dias da Água, de 14 Julho a 14 Agosto


Abílio Leitão


Lúcia Sigalho inscreveu já o seu nome na história recente das artes performativas nacionais. Seja pela sua iconoclastia biográfica, ou pelo modo como as propostas rasgaram determinados conceitos (espaço, corpo, dramaturgia, lugar do intérprete, papel do espectador), em nome não da criação de novas definições, mas de um trabalho alicerçado num discurso acerca da entrega performática, do acto de criar e da importância que a arte tem na vida quotidiana. Muito em virtude do poder de sedução que a criadora exerce no tecido cultural, entre ódios viscerais e paixões declaradas, esta procurou sempre, através de espectáculos epidérmicos, desenvolver uma relação estreita entre esse quotidiano (metafórica e literalmente falando) e a construção de estruturas dramatúrgicas que o pensassem e organizassem, fazendo do 'espaço-mundo' um lugar de convergência entre discursos artísticos e não-artísticos.

Um percurso feito de confrontos cria expectativas que, podendo por em causa a recepção, são inerentes ao modo como se parte para um espectáculo. Mas devem os espectáculos ser analisados individualmente ou enquanto passos na construção de um corpo criativo e artístico? A The End of Love, a sua mais recente encenação, impõem-se algumas questões que não podem deixar de reflectir o carácter duvidoso da proposta, mesmo tratando-se de um objecto apelativo e, aparentemente, acessível. Nele reconhecem-se algumas das linhas do trabalho de Lúcia Sigalho. Nomeadamente o desequilíbrio de forças nas relações entre homens e mulheres e o diálogo sobre a construção cénica.

Mas a posição sexista, e não feminista (porque isso seria uma leitura pertinente e o assumir de um ponto de vista criativo), no qual a autora se coloca, não tem o fulgor das adaptações de Adília Lopes (A birra da viva, 2000) ou a violência do diptíco Puro Sangue (Homens, 1995/Mulheres, 1997). E se, com o passar do tempo, os espectáculos de Lúcia Sigalho vinham adoptando uma postura mais interior e de diálogo não só com a envolvente, mas também com a estrutura de um espectáculo (e a sua utilidade/funcionalidade) - são disso exemplo Seres Solitários (1999), Viagem à Grécia (2001) ou Obras na Fachada (2004) -, neste há uma espécie de paragem discursiva. Não tanto no sentido prospectivo, como era Dedicatórias (2000), mas enquanto objecto de reflexão. Incluindo sobre a razão de criar.

O espectáculo constrói-se numa lógica sequencial, através de um discurso feito de resíduos, memórias, afectividades e cedências amorosas. Ou pelo menos assim parecer ser. Vera Paz e Tiago Barbosa compõem o frágil par mudo, dedicado a este desfilar de momentos que se querem plásticos e conceptuais, mas não são mais que formais e ilustrativos. Obrigam-se a um exercício de revisitação com pendor saudosista, ao qual não é alheia a divisão em prateleiras e quadrados que o cenário (de Manuel Graça Dias e José Egas Vieira) constrói. Uma ideia de arrumação dos sentimentos em gavetas?

Este melting pot dramatúrgico transforma The End of Love numa proposta hermética e pouco equilibrada, quando a ideia parecia passar por uma universalização de sentimentos. Mas, sobretudo, ilude o espectador, não lhe oferecendo uma oportunidade de reflexão conjunta. Prefere encerrar-se numa imagética que, por não ser explorada, não chega sequer a uma universalização. E, afinal, o discurso denunciava ser sobre coisas comuns. Há aqui lugar para a violência física (quando caem em cima dos estrados) e emocional (quando ela lhe atira tarteletes à cara, ou destrói uma ideia de território comum com o atirar da terra para o chão). E também há espaço para memórias colectivas (como o teatro, nas projecções de fachadas de edifícios ainda existentes ou destruídos - o Armazém do Ferro, por exemplo, onde a companhia esteve até 2002) ou relações artísticas (passam aqui os fantasmas de Chagall, Pina Bausch, Robert Doisneau e Edward Hopper). Existe ainda a criação de leituras semióticas sobre a importância de uma certa ordem no caos (os quatro elementos: água - chove num dos quadrados; fogo - o calor que o obriga a procurar refrescar-se com um pano molhado; ar - as ventoinhas; terra - que ela deita para o chão). Mas nada disto parecer oferecer uma leitura de conjunto, quanto mais política e artística sobre a importância da criação artística para pensar o quotidiano.

Ao procurar ser tão simples quanto abstracto (quase circular e auto-fágico), The End of Love redunda numa exploração de códigos fátuos e símbolos sobre-expostos, sem que desse acumular resulte uma implosão. E dela a renovação. Seja do amor, da arte, do teatro, da vida ou do mais simples gesto sem significado. E, no entanto, o potencial da proposta existe. Se isolarmos determinados momentos (os pés a pegarem em maçãs, a voz que grita que não é artista, o vídeo final quase 'hara-kiriano') conseguimos perceber porque razão é este um espectáculo que deve ser pensado (e até apreciado) na sua relação criador-objecto-recepção. Há ali uma ideia de trabalho sobre a razão de ser das obras. Essa urgência criativa que durante tanto tempo justificou um conjunto de propostas. E, sobretudo, determinou as linhas e pontos de interesse (e fuga?) dos criadores. Mas sabe a pouco. Se calhar como as relações interrompidas, de que o espectáculo parece querer dar conta.

Provavelmente, o problema de The End of Love está em querer ser uma espécie de ponte entre a memória e o futuro, tal como a canção homónima de Leonard Cohen. Faz-me e leva-me, baseado no que já fui e quis ser. Mas se o amor vive de impulsos, onde está o impulso de The End of Love? Porque mesmo o corte (a 'boneca gigante' que Vera Paz personifica, no alto da estrutura, com o título inscrito na roupa) não é mais do que um convite à sedução. E, depois, novamente presos, segue-se para onde? Aqui, estamos presos. E o carcereiro não é certamente a pessoa por quem gostaríamos de nos apaixonar.