sexta-feira, agosto 05, 2005

Mesa posta

Análise a Accidens - Matar para Comer
De Rodrigo Garcia
27º Citemor - Festival de Montemor-o-velho
Teatro Esther de Carvalho
30 Julho 2005
00h30

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O dispositivo cénico e dramatúrgico é aparentemente simples: um homem, de aspecto duvidoso e circunspecto, retira uma enorme lagosta de uma tina de água, pendura-a num arame que cai do tecto, e enrola um microfone à volta do crustáceo. Depois, enquanto se escuta o bater do coração do bicho, o mesmo homem acende um charuto, observa o modo como a lagosta se debate com a própria morte, rega-a, de vez em quando com água de uma garrafa e chega a atirar-lhe com fumo para cima. Só mais tarde, com a lagosta incapaz de se defender é que retirará os cordões que lhe amarram as tenazes.

A lagosta reage a espaços à suspensão, certamente apercebendo-se que não havendo água, acabará por morrer. Depois, o homem, do qual não sabemos o nome nem vemos qualquer alteração facial, retira a lagosta, dispõe-a em cima de uma mesa e, num ápice, corta-lhe as patas e, sem piedade, rasga o animal em dois. Com a mesma precisão e calculismo, entrega o bicho, que ainda mexe algumas patas, à chapa quente de um grelha, deixando-o a assar, devidamente temperado de sal e regado com azeite, para que não agarre. Ao som de uma versão de It's a perfect day, abre uma garrafa de vinho Planalto, limpa a mesa e espera que a lagosta esteja pronta. Em seguida come-a, com o mesmo à-vontade com que a matou.

Num dos armazéns desactivados das obras do Baixo Mondego, e após uma viagem de autocarro, o espectador enfrenta um espaço amplo e sombrio, onde Juan Loriente, o actor que carrega a performance (ou será a lagosta a fazê-lo?), é corpo e mutismo para um conjunto de pertinentes questões sobre o modo como a sociedade se esqueceu de integrar os mais naturais, básicos, estruturais e elementares comportamentos. Se toda uma sociedade se construiu através de guerras, e troca de posições, como será possível conceber um mundo feito de "coisas já mortas. Vais ao supermercado e dão-tas já todas mortas. Empacotadas, em lata, embaladas a vácuo, em plástico, em papel: tudo morto." (in programa).

Rodrigo Garcia, o encenador argentino radicado em Espanha e presença habitual no Citemor, regressa com as suas linhas fortes (a religião, os valores morais, os preconceitos éticos, as regras castradoras, a cedência gratuita ao imediato, o consumismo), para trabalhar uma ideia de superficialidade, globalização, formatação de pensamentos e reflexão em torno das criaturas acéfalas em que nos podemos transformar se, recusando a noção de que a sobrevivência de uma espécie existe por aniquilamento de outra, rapidamente seremos nós [os humanos] a desaparecer.

A performance não é mais ou menos impressionista pelo facto de se utilizar um animal que, sempre que é cozinhado, é-o vivo. E, no limite, o animal é mesmo comido, mesmo que sob a forma de espectáculo. O que causa alguma espécie de angústia, mais até do que o palpitar do coração da lagosta, é o modo como se constrói uma narrativa que mais do que afirmar, obriga a especulações internas sobre o que de facto fazemos para alterar comportamentos que podem resultar em graves alheamentos sociais, culturais, políticos, religiosos, comportamentais. Em última instância, que são instigadores da criação de redes e teias que crucificam o homem num mundo feito de formosura e vacuidade.

Ao apresentar uma lagosta como símbolo dessa aniquilação, não será possível estabelecer-se um sentimento de piedade pelo animal como, por exemplo, aconteceria com um coelho, um porco, um vitelo, um pato, uma galinha ou até mesmo um cão e um gato (bastaria mudar a criação para o oriente). Não há essa relação emocional com o bicho, por ser um bem raro (ou raro acesso para a maior parte). E a transferência de emoção opera-se então não no desperdício, mas no inatingível que a própria lagosta representa. Ou seja, que caminho fez 'aquela personagem' até 'gastar' uma lagosta num exercício de violência que mais do que gratuito, denuncia um sadismo e desespero. Que hipótese de homem é essa que usa um animal (e de um modo cobarde, pois só lhe dá meios para lutar quando este não se pode defender) para um jogo de equilíbrios entre comandante e comandado?

O encenador não parece esclarecer a exacta mensagem que quer transmitir, superficialidade aliás que é potenciada pelo preenchimento do espaço vazio das palavras por um vídeo onde se narra uma hipótese de ambíguos e difusos antecedentes justificativos. Mesmo que se possa considerar desnecessária essa presença, limita-se, assim, a acção e consequência a um universo estritamente pessoal, auto-reflexivo e quase penitente (por exemplo, se quisermos considerar que a repetição por três vezes do espectáculo no mesmo dia [sessões às 22h30, 23h30 e 00h30], é um acto performático em si mesmo).

Há em Accidents - Matar para comer uma imagética que pode alternar entre o surrealismo (Dalí como a referência mais óbvia)e a distância brechtiana, mas certamente é uma proposta que raia as fronteiras do pecado capital (gula e luxúria, claro), no que isso possa denunciar de projecção de um futuro que, muito possivelmente, não está assim tão distante. Afinal, haverá mesmo uma preocupação consciente do modo como nos chegam os alimentos à mesa? E não havendo que nome se dá a essa frieza? Será por isso que quando o espectáculo termina (uns breves 25 minutos), os espectadores podem rodear o performer, sendo ele agora o animal exposto e consumido. Pela(s) lagosta(s) que comeu, pelos espectadores mais impressionados, pelo abandono rápido local para recusa de uma identificação.

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