quinta-feira, agosto 11, 2005

Dimensão corporal

Análise a No Body Never Mind 002
De Ana Borralho e João Galante
Negócio
06 Agosto 2005
21h30



Em No Body Never Mind 001 (estreia em Novembro 2004), Ana Borralho e João Galante inscreviam no corpo, e sob a forma de tatuagens, as palavras No Body (nela) e Never Mind (nele), para assim estabelecerem uma "fronteira implacável entre o biológico e o social, depositando na pele a capacidade de produção de uma opacidade imutável, ou seja, transformando-a numa segunda pele." (in programa). Com a apresentação de No Body Never Mind 002 (NBNM), prosseguem um trabalho de investigação em torno do corpo e da mente, conscientes da sua dimensão (e função) social, estabelecimento de relações com a biomecânica e organização sequencial de argumentos para a construção de um todo, agora mutável.

Diz, na folha de sala, Fernando Ribeiro, colaborador dramatúrgico no processo, que os criadores apresentam agora "os mecanismos inerentes ao processo de objectualização do corpo, fomentando uma indistinção entre domínio escatológico e sentimento do sublime.". Antes tratava-se da aplicação de um pressuposto imutável, fazendo deste um ponto de partida (e retorno) de uma ideia de corpo como matéria finita e presa ao criador. Agora assiste-se ao desenvolvimento de um universo performático, cuja relação com o corpo é feita a partir da instalação espacial de conceitos como 'fronteira física', 'rigor', 'perpétuo', 'consciencialização' e 'partilha'.

Este trabalho divide-se em duas longas sequências coreográficas, através das quais se vai estabelecendo com o espectador não uma relação de cumplicidade, mas antes um modo de pensar a bidimensionalidade performática. Se, por exemplo, o cinema e a pintura sempre procuraram uma forma de trabalhar (e contrariar) a bidimensionalidade, Borralho e Galante parecem forçar uma reflexão sobre essa barreira visual, em nome da instalação de uma paisagem cénica que seja, em primeiro lugar, coerente com o corpo executante e, depois, com o corpo exposto.

Se na primeira parte da performance os dois corpos aparecem como objectos contraídos, são-no enquanto matéria que procura o alienamento. Os dois performers apresentam-se de frente para o público, nús, e com um microfone colado ao pescoço. O som dos soluços, gargalhadas, suspiros e movimentos internos é amplificado, construindo uma banda sonora corporal ritmada e excessiva que é contrariada pela passividade facial. De olhos sempre abertos e braços esticados ao longo do corpo, os dois performers nunca cruzam o olhar, nem se fixam nos espectadores. Operam uma ideia de abstracção, sendo que o controlo a que forçam o rosto e o corpo não é o mesmo nos sons que executam. O corpo depressa se tornará num mecanismo de produção de formas de pensar os limites da exposição. Parecem provocar-se ao ponto de sugerirem uma anulação física. Quase como se ao espectador fosse pedido para esquecer a forma e pensar o conteúdo.

Potencia-se aqui uma relação estreita com as técnicas performáticas orientais (este apresentação foi precedida de uma residência no Japão), e em particular o butoh, nas quais o intérprete é só o meio para fazer passar a mensagem. Tudo o mais existe a partir da relação estabelecida entre o que faz e o que se observa. Ou seja, não é no palco que a acção tem lugar, mas no modo como intérpretes e espectadores percepcionam o acto performático. A paisagem cénica e a instalação coreográfica funcionam aqui como elementos de ignição, dando oportunidade ao desenvolvimento de relações, ambiguidades e referências. Assim, o que se apresenta em NBNM passa por um trabalho estrutural de observação/reacção, que em muito se relaciona com o que a comissária de arte Marianne Karabelnik defende no prefácio ao livro «Stripped Bare - The body revealed in contemporary art»: "Once the artist had carried out this subversion of the self, it was no longer just what was observed that was being tested but also the observers state of mind." (p.13).

Na segunda parte desta peça, Ana Borralho e João Galante levam mais longe a ideia de tatuagem. Completamente às escuras (a luz é um elemento que surgirá muito timidamente ao longo desta sequência, nunca se assumindo por inteiro), o par desloca-se em posições pouco confortáveis dentro de um quadrado delimitado por um pano preto. Caminha, nitidamente, para a ocupação de um espaço íntimo e individual, no qual o intérprete deixa de existir para dar lugar àideia de criação. A acção é aparentemente simples: alternando, vão percorrendo o corpo do outro com a língua e, após a zona marcada com a saliva, colam-lhe uma folha dourada. Os corpos vão-se percorrendo num jogo erótico, sensual, de partilha e comunhão, num trabalho de reconhecimento territorial e mapeamento sensorial que é, antes de mais, um exercício de experimentação amorosa.

Mesmo que, a espaços, seja violento, grotesco, animal e quase necrófilo, é também de uma delicadeza emocional, na qual perpassa a ideia de uma máscara que uniformiza o outro e o torna igual a si. Daí se poder dizer que o par éuma estranha unidade num corpo bicéfalo. E que a total e completa junção de dois corpos em um não surge através da mimese mas da complementaridade. Ou seja, quase como se procurassem, depois da pele marcada, a marcação do interior. E uma marcação objectiva, indicativa e pessoal, tal como nas civilizações antigas em que o vencedor se marcava com o sangue do vencido.

Há ainda uma outra dimensão em NBNM que se prende com um trabalho sobre o cliché do nú e a sua beleza performática. Ana Borralho e João Galante por se exporem assim (incluindo as posições e momentos potencialmente sexuais que ocorrem na segunda parte) procedem ao levantamento de questões que se relacionam com a fixação de um corpo que, mais do que sexualmente explícito, seja sexualmente instigador. De um quebrar de tabus, de transgressões, de subversões. Nesse sentido, propõe-se aqui não uma dissecação do corpo enquanto instrumento sexual, mas uma idealização. Ou seja, que corpo nú se apresenta? Que corpo se quer performatizado/performatizável? Aqui, esse corpo será objecto não de uma exposição por estar nú (o nú é só uma das variantes do figurino), mas por procurar uma forma. Seja essa forma feita de folhas douradas que o cobrem ou de acumulação gestual.

Mas é neste ponto que NBNM denuncia uma certa fragilidade, já que o corpo que aparentava uma busca parece preso na sua própria armadilha. A fixação de imagens cede à dimensão temporal, prolongando as sequências a um limite por vezes exasperante. Sobretudo a segunda parte (também potenciado pelo incómodo que pode ser a ausência de luz). Parece anular-se (diria mesmo contrariar-se) o hipnotismo e a envolvência da proposta, afastando o espectador que rapidamente procede à criação de expectativas e evoluções. Não uma evolução no sentido narrativo ou explicativo, mas uma que não parecesse recusar esta instalação performática quase ao nível do haiku. Porque o problema não está nem na instalação cénica nem na disponibilidade do espectador, mas antes no modo como aquilo que aparentava ser a partilha de um todo criativo, depressa se torne num exercício, por vezes, autista. Sobretudo quando se quer evoluir para a projecção numa intemporalidade, no que isso possa significar de discurso permanente com quem observa.

Última referência para a banda sonora original de Vítor Rua, e interpretada ao vivo por Eddie Prévost. Escrita para tam tam, bass drum e idiofones, esta é uma composição que, por se definir como peça de música intuitivase relaciona menos com a coreografia. Uma vez que, não sendo necessariamente ilustrativa, também não preenche os espaços em branco. Sobretudo porque a intensidade dos corpos de Ana Borralho e João Galantes, quando juntos, não necessitam de qualquer outro suporte musical.


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