quarta-feira, junho 29, 2005

Percebo-te-me

Análise à proposta de Ana Borralho e João Galante para o 11º LAB
Atelier Re.Al
30 Abril 2005
18h00

Image hosted by Photobucket.com
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Quando alguém afirma que dança, é natural esperar-se que o faça: que faça o seu corpo movimentar-se, ou quedar-se, segundo um modelo previamente concebido para assim ser interpretado, ou segundo a respiração que imprima no seu corpo a inspiração de tal momento.

Mónica Guerreiro in Capitals 2003, p.262



Os LAB sempre quiseram ser um "projecto em movimento" (in DocLab nº0) , razão pela qual os espectadores que assistiam às sessões no novo espaço da Re.Al (Rua do Poço dos Negros, 55, Lisboa) eram avisados sobre o carácter informal e inconclusivo das apresentações. E deveriam olhar para os objectos não como propostas firmadas, mas como uma espécie de caderno de esboços que se dispunham a uma discussão e reflexão. Naturalmente em nome de algo a surgir, quem sabe radicalmente oposto. Daí a dificuldade (o risco) em se analisarem propostas que ainda não o são. No limite, as propostas de fixação de discurso funcionam antes como levantar de questões para o desenvolver dos objectos. Afinal, uma das razões de ser dos LAB é, exactamente, promover um diálogo entre 'quem vê' e 'quem faz'. Em nome de uma concretização que se quer fundamentada, já que esta era uma proposta que queria pensar o modo como o quotidiano atravessa os objectos artísticos e força uma existência.

Ana Borralho e João Galante levaram à letra esta ideia de esboço e concluíram a edição dos 11º LAB com um discurso performativo que desconcertou os coordenadores (João Fiadeiro, João Queiroz e Pedro Morais), críticos e o público, mas certamente aliviou os criadores da pressão de apresentação. O que os 'junkies da imagem' (expressão de João Fiadeiro) apresentaram foi, provavelmente, dos gestos performáticos mais arriscados, pois consideraram que o processo criativo lhes serviu para assumirem que o objecto ainda não existia. Logo, que fazer face à obrigação da apresentação? Apostaram no aparente nada.

Assim, Ana Borralho e João Galante criaram um dispositivo visual em que importava mais a dúvida que aquilo que se pode fazer com ela. Através de um computador portátil, instalado no meio do espaço e ligado a um projector, os espectadores assistiam, a um slide-show onde eram apresentadas poses dos performers que fixavam determinados movimentos e inerentemente (pela selecção e organização, por exemplo) esboçavam uma coreografia. Ao mesmo tempo, a banda sonora da proposta era feita de trechos de conversas entre os dois, nas quais se debatiam questões como ocupação de espaço, presença do corpo, alteridade, objectivos da proposta, verdades, sentidos, significados, relações entre objectos e responsabilidades.

O conjunto de imagens cruas mostrava o par de rostos autistas, vestindo ou despindo uma roupa de ensaio e denunciando um trabalho sobre o domínio e controle do corpo enquanto presença num espaço de criação. A ideia de necessidade de resultados sugeria um crescendo de tensão, sobretudo quando às imagens mais ambíguas se cruzavam os diálogos de confronto entre os dois. Sentados na plateia, ao lado dos espectadores, Ana Borralho e João Galante assumiam uma condição de permanentes observadores, desenvolvendo uma ideia do que se passava e ansiando o final: a reacção do público. Toda a proposta passava-se, então, em dois palcos: no estrado coberto de linóleo onde estava o computador portátil de onde saíam as imagens, e no corpo dos criadores que assistiam ao seu próprio trabalho.

Contudo, havia a consciência de que o que estavam a apresentar se propunha a ser lido como o nada criativo. Ora, isto é tanto uma falácia quanto dizer-se que não se mede as consequências dos actos. Qualquer objecto colocado num espaço designado como de representação, passa a ser um objecto performático (ou performatizável). E qualquer ideia de criação apresentada como nada, éuma ideia em si mesma. Por isso, havia nos pressupostos de inacção uma intensidade teórica que justifica a dúvida: dançar o quê? Para Ana Borralho e João Galante o importante era perceber o 'nós-criador'. Esta ideia de unidade pressupõe um objecto criativo que responda pelos dois. E mesmo sabendo de inerentes divergências criativas, quer-se sempre acreditar que os objectos apresentados levam a assinatura de todos os envolvidos. Neste caso, e por ausência de objecto, coloca-se no centro da dúvida o 'eu-criador', que procura pensar o corpo e as suas reacções através de um conjunto de hipóteses, mas também de uma (ainda) recusa de decisão.

Este trabalho levanta, assim, sérias e pertinentes questões sobre o primado do objecto artístico e o modo como, ao longo do processo, se pode ir condicionando os resultados. Ou seja, questiona as verdades da aposta,e recusa uma veleidade criativa só pela justificação de apresentação. Este cruzamento de hipóteses de coreografias (o som, as imagens, a disposição do objecto-computador e projecção, os corpos falseados dos criadores-espectadores, a datação das imagens), não faz mais do que regurgitar a ideia de espaço laboratorial, abrindo assim porta para um pensamento sobre as dificuldades de criação.

E a mais valia deste exercício de estilo não está exactamente na apresentação de uma variação sobre o vazio, mas antes na liberdade que se quer conquistada. Se os objectos artísticos nascem do interior dos criadores e, muitas vezes, trabalham num discurso de espelho e reflexão obra/criador, importa aqui dar verdadeira razão e definido sentido ao desenvolvimento do objecto. Esta é ainda uma proposta que pode ser lida como um belo e semiótico diálogo de amor, não só entre os dois criadores, mas também entre criador e objecto. Aprender a ouvir e a ler o outro da forma mais completa possível, de modo a poder deixar que se entranhe na mais íntima das justificações. E aí poder dizer: é isto, porque sim. Sem mais.

Dossier 11ºLAB neste blog

Cláudia Dias
Tiago Guedes
Mário Afonso
Gustavo Sumpta


Outros espectáculos produzidos pela Re.Al, analisados neste blog:
Materiais Diversos, de Tiago Guedes (2003)
I am here, de João Fiadeiro (2004)
Trio, de Tiago Guedes (2005)

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