terça-feira, janeiro 18, 2005

Eu sou mais eu

Análise à proposta de Cláudia Dias para o 11º LAB
Espaço Re.Al, 15 Janeiro 2005



Com o regresso dos LAB, a Re.Al. procura "fomentar a espera em detrimento da procura" e promover "o esquecimento para que as coisas possam acontecer 'sem querer'". Assim, com a primeira apresentação do trabalho em evolução de Cláudia Dias, proporcionaram ao público (sobretudo críticos, pensadores e outros criadores), uma oportunidade para o estabelecimento de um diálogo. Tornam assim os objectos finitos em objectos comunicantes, criando um espaço de experimentação de linguagens e propostas que vivem e se alimentam do confronto. Por isso mesmo, as propostas dos LAB não são coisas encerradas em si mesmas e pretendem provocar o diálogo entre quem vê e quem faz. É por isso, também, que nada do que se vê tem uma só leitura. E nada do que se escreve também. Antes se processam ideias em nome de uma coisa pour avenir.

Cláudia Dias propõe uma viagem a um universo pessoal e biográfico, não tanto numa posição biofágica, mas mais de libertação. Ou seja, com este exercício, a proposta parece ser a recusa de encerramento no seu mundo confortável e identificado, para partir dele e procurar um outro, quase tão confortável. Porque, inevitavelmente será ilusoriamente confortável. Procede, assim, a um trabalho de exposição pessoal ausente de qualquer reflexão sobre as sensações que teve na altura dos factos, mas antes explora os efeitos dessas sensações nos dias de hoje. Só aparentemente é que este é um trabalho de memória. E só aparentemente, também, é que se pode considerar um anacronismo. É, por isso, um exercício profundamente urbano, no que isso representa de individualidade estéril e monótona. Um urbano ausente de emoções e a necessitar de uma outra forma de organização, mais centrada numa nova definição do lugar e responsabilidades de cada um na contrucção de um imaginário colectivo. Portanto, podemos considerar que este exercício procede a uma reavaliação da nostalgia e empatias emocionais com os lugares, os nomes e as coisas quotidianas, procurando encontrar uma forma de libertação dessas "amarras" e definição do caminho a seguir. Cláudia Dias propõe, assim, reflectir sobre o que fazer com o que se têm.

Nesse sentido, este trabalho de reflexão sobre a forma como nos vemos e interpretamos o quotidiano, toma uma dimensão antropológica. Se por antropologia quisermos entender o efeito/relação "torna-viagem" (para usar a ideia do poema de Alexandre O'Neill) que estabelecemos com o que nos rodeia. A coreógrafa utiliza-se de objectos banais e perfeitamente identificáveis para construir uma persona que rapidamente alude a uma ideia de mulher-mutante e recorda o trabalho pictórico do artista italiano do século XVI, Arcimboldo. Porque, da mesma forma que o milanês equilibrava frutas e legumes para compor figuras humanas, atribuindo-lhes uma dimensão alegórico-harmónica, Cláudia Dias procura forçar a individualização de cada um de nós através da manipulação dos objectos que nos tornam iguais: pensos higiénicos, pastas de dentes, fio dental, pastilhas, cigarros, fósforos, lenços de papel, microfone, fita-cola, garrafa de água. Precisamente para testar a coerência dessa harmonia. Para perceber se ainda existimos debaixo de tantas camadas.

Este olhar transporta ainda uma necessidade de se assumir predominantemente como um olhar feminino. No sentido em que se deve procurar estabelecer uma relação organizada, reflexiva e subterrânea com o mundo. Um olhar distante mas atento, um olhar quase maternal. É, assim, uma proposta que coloca a mulher no centro do seu próprio universo e com ela estabelece um diálogo de identificação e reconhecimento. Cláudia Dias parece assumir essa dimensão feminina, obrigando-se a vestir uma personagem (ela própria) para depois se destruir. Contribui assim para um reequilibrio do passado com o presente, não em nome de uma limpeza dos erros ou enaltecimento das virtudes, mas antes numa tentativa de construção de algo novo, algo puro, algo centrado em si. Um "si" omnipotente, omnipresente. Um Deus, que aprenda a louvar-se, antes de louvar outros deuses. Será por isso que, depois de ter construído um mapa do local onde se formou emocionalmente - a Margem Sul -, destrói esse mapa de dejectos, deitando sobre ele a água suja que permanecia na garrafa presa ao sexo. Uma espécie de morte do pai. Uma libertação que pode ser lida como castração.

Rui Catalão, que escreveu a folha de sala do exercício, reconhece no trabalho da artista "uma progressão dramática, [que] no seu caso, equivale à acumulação de estados psicológicos constrastantes, que o espectador percepciona como tapetes que desaparecem debaixo dos pés, sem que os tapetes deixem de ser visíveis". Cláudia Dias vai estabelecendo um diálogo com o público assente numa proposta de ocupação de espaço e manipulação de objectos e de corpo. Permite-se a um pensar sobre o lugar da dança como encontro de presenças e escusa-se a um dançar solitário. Feito de silêncios, este exercício obriga a uma confrontação do público com hipóteses de compreensão. O facto da proponente ir narrando uma série de episódios isolados que compõe a sua memória afectiva obriga quem vê a procurar nas pausas, nos gestos curtos e no controlo da respiração os espaços de libertação necessários a quem se expôs. Esse silêncio. É, por isso, uma proposta passiva-agressiva que combate a ideia de que muitas palavras são excesso de ruído. Pelo contrário, aqui, todas as palavras procuram caminhar para uma só: "libertação".

Libertação essa que assume contornos manifestamente feministas. Não só propondo a leitura electriana da garrafa de água suja, mas também ao colocar no corpo, presos com fita-cola, os objectos que trazia dentro de um saco de supermercado, Cláudia Dias procura exercitar uma ideia de dupla auto-mutilação. Primeiro quando os coloca e tapa articulações, peito, olhos, costas ou umbigo e depois quando os arranca. Dá, assim, ao espectador a imagem viva de sofrimento que este já tinha projectado no momento em que a viu colar ao corpo os objectos. Porque se trata de uma metaforização acerca das anulações que vamos procedendo no dia a dia, a artista parece querer perguntar o que acontece quando nos retiram o quotidiano. Que existe afinal em nós que se quis esconder? E que podemos nós fazer para o recuperar?

Este exercício de imaginação, termina numa transformação de Cláudia Dias num ser indígena, como se quisesse significar que é necessário um regresso ao início. Mas que esse início está no meio de nós.

O que quer que se siga, procurará, certamente, aprofundar uma relação de espelho e confronto entre o objecto apresentado e o público que o assiste, numa tentativa de fixação de um discurso dançante sobre o lugar de cada um de nós enquanto colectivo. Mas, sobretudo, com a intenção de discutir o que se pode fazer com isso.


Cláudia Dias
Residência artística de 06 Dezembro 2004 a 15 Janeiro 2005
Apresentação pública 15 de Janeiro 2005 18h00
Colaboração artística Márcia Lança Coaching Olga Mesa (artista convidada), João Fiadeiro e João Queiroz

Próxima apresentação
Tiago Guedes
05 Fevereiro 18h00
Espaço Re.Al

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