domingo, maio 16, 2004

Composição para pigmento preto, papel de cenário, movimento, escuridão e infra-vermelhos



No espectáculo I am here, apresentado esta semana no CCB, João Fiadeiro (JF) encontra o universo da artista plástica Helena Almeida (HA) e assume uma certa cumplicidade e até mesmo ordem aparente na apresentação da proposta. Sente-se, neste solo, uma relação emocionada, mais até do que emocional, com a obra de HA e que se vai transmitindo através da desorientação do espectador. Desorientação essa que assenta, aparentemente, na escuridão em que o coreógrafo/intérprete envolve o espectador, mas, no fundo, tem mais a ver com a anulação do sentido de repetição do que na ausência de iluminação.

Se, por um lado, JF aposta no desconhecimento do espectador acerca do que se vai passando no palco, dá-lhe - coisa rara - oportunidade para escutar, efectiva e sensorialmente o som que os movimentos fazem. Dessa forma o espectador está mais perto do que nunca do que se está a passar. Pode "ver", efectivamente, o que quiser. No entanto, e por outro lado, JF envolve o espectador numa sequencial cadência que lhe permite começar a estabelecer um padrão que, imagina-se, culminará na total ocupação gráfica e pictórica do papel de cenário que é utilizado como suporte para os contornos da figura do intérprete, fotografado no escuro por uma câmara de infra-vermelhos. É quando essa cadeia se rompe - e novamente se romperá para a sequência final do espectáculo - que a desorientação no espectador acontece.

Se tivermos em linha de conta o que diz Pierre Francastel acerca da natureza do objecto plástico (in Arte e Técnica nos séculos XIX e XX), "o artista que compõe um quadro ou que concebe uma escultura produz objectos de civilização que, sob certo ponto de vista, possuem caracteres comuns às obras saídas da actividade mais especulativa, mais experimental ou mais mecânica da sociedade. Em qualquer dos casos, há produção de coisas que são exteriores ao produtor, utilizáveis por outrem e acerca das quais se estabelecem interferências de julgamento e acção". Dessa forma, o cruzamento da linguagem de HA com o processo criativo de JF encontra em I am here, um campo fértil na partilha de conceitos, técnicas, métodos e formas de conservação do trabalho a efectuar.

Delfim Sardo, na apresentação do catálogo do espectáculo, trabalha exactamente essa condição dupla observador/observado - objecto/criador, definindo a possibilidade de diálogo toranada fluída, "porque só se pode dialogar com o que é diverso, só se pode interrogar o que se quer conhecer". É, talvez por isso, que o discurso que tanto HA como JF querem fazer passar em relação ao ponto de partida (o trabalho plástico de HA e a apreciação deste por JF) e o ponto intermédio (I am here) - o ponto final será o cruzamento interno feito por cada espectador - é um só. Ou seja, não há a obra de um e a obra de outro em I am here, mas antes uma terceira obra, feita com as memórias a/efectivas de JF e o reconhecimento no espectador da obra de HA. Trata-se, citando novamente Francastel, de "uma última razão que impede de considerar a arte como um jogo puramente imaginário de especulação" e essa é a de "não ser crível a possibilidade de acrescentar ou de amputar à vontade certos elementos de um conjunto orgâncio, uma vez este formado". HA, sim. JF, sim. mas os dois em confronto directo, por justa e explícita posição. Não há I am here sem a obra de HA - não me parece que essa seja, sequer, uma intenção - nem, por espantosa relação, memória de HA depois do movimento de JF. Delfim Sardo estabelece uma linha entre "a imagem, o espaço e o corpo que o habita".

Se à dança se chama arte visual, JF apaga as luzes; se o gesto é abstracto, mostra o seu som; se o movimento é efémero, regista a sua marca. Anulam-se, por isso, as noções de aleatório e eventual num processo estritamente relacionado com o desconforto do espectador. O aleatório e o eventual deixam de o ser a partir do momento em que "sabemos" que na escuridão JF dança e que os perfis desenhados no papel de cenário tomam formas cuja interpretação cabe a cada um relacionar. As luzes apagadas, porque dão ilusoriamente toda a liberdade ao espectador (no caso do intérprete, este afirma tratar-se do espectáculo onde se sente menos livre), obrigam-no a uma atenção redobrada a todo o tipo de acontecimentos. No fundo, JF propõe que o espectador seja parte da ambiência sonora do espectáculo, na mesma medida em que John Cage trabalhou a sua "obra silenciosa" 4'33". É claro que, do ponto de vista do espectador, estas sensações são potenciadas pela "ausência" de espectáculo visual, habituados que estamos ao excesso de imagens. É neste ponto que a obra de JF mais se toca na de HA. Depois do criador, há o vazio, ou, se quisermos, o criador em estado-zero, pronto a recomeçar. E a isso o espectador não está habituado. Antes prefere sustentar-se numa estrutura mais linear, menos dispersa ou íntima.

Um último aspecto a salientar relaciona-se com esta ideia de aleatório e na capacidade que o espectador tem de poder equilibra o que desconhece, mais por segurança que por deleite interpretativo. Estabelece uma lógica para o aleatório e o eventual, que assenta em princípios racionais e da física alicerçados no dispositivo que permite esse aleatório, a máquina fotográfica de infra-vermelhos ligada a um computador. Dá-se, assim, a anulação do efeito pretendido por JF, a libertação do autor na obra de outro, através de uma descoberta privada. O espectador, porque observador (entre o cúmplice e o distante) desse caminho vê mais linhas do que aquelas pretendidas. Não olhar para o corpo a fazer coisas, mas antes para o que este deixa feito torna-se assim um exercício de racionalização e compreensão solitário. Não há um I am here. Há uma proposta de se estar. De porta aberta e para quem quiser.

No final, JF funde-se na obra de HA como se dela tivesse saído. Como se se libertasse do seu corpo e fosse só pigmento preto. está dado o primeiro passo para essa terceira obra a nascer. HA + JF = nuit et brouillard.

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