O fracasso da beleza
Análise ao espectáculo Manifesto/Homeless
A proposta do Útero surge num tempo de necessárias redefinições sociais e artísticas. E, certamente, não é alheia à dificuldade do teatro se continuar a apresentar como arte questionadora do mundo e do seu quotidiano. Seja porque o conceito de arte total que Wagner preconizava se revelou falhado, ou porque objectos artísticos e quotidiano raramente se encontram num discurso comum de reflexão sobre a contemporaneidade. Assim, assistimos a um desfasamento entre o que se apresenta e o seu reflexo artístico. Ficam, pois, os objectos à espera de enquadramento e integração. E o mundo a viver com esses espelhos sem que neles se reconheça imediatamente.
A questão é que uma discussão sobre a necessidade de mudança do mundo através da arte ou da responsabilidade da arte nessa mudança, já é arte em si mesma; já é discussão em si mesma porque surge enquadrada numa necessidade de escapar ao sufoco; ao estrangulamento; à apatia social. Ou seja, é o reflexo da sociedade na própria arte. Não está nem deslocada nem é paralela. Faz parte de um movimento social integrado no comportamento do mundo. É do mundo. É o mundo. O actual.
O artista não pode, por isso, achar que o que pensa está dissociado do mundo que o rodeia. Antes deve integrar isso no seu trabalho, no seu processo e criar um discurso alternativo - um 3º discurso -, que fixe e identifique as vantagens de cada uma das partes. Em vez de procurar um caminho-outro que fuja a essa realidade, deve compreender porque e como se chegou aqui/ali. "Atacar", assim, o problema na raiz. Evitar a ressaca da próxima intervenção. Prever todos os resultados. Assumir o desejo, tal como escreveu o jornal El Mundo a propósito da exposição sobre o insucesso das utopias artísticas La belleza del fracaso/El fracaso de la belleza (Barcelona, 2004): "entre a utopia e a desilusão não existe uma especial diferença. Ambas são o resultado de um movimento pendular, como os passos: um pé segue o outro. Esta é a lógica do desejo."
Manifesto/Homeless é, então em si mesmo, uma utopia. Pode ser lido como o discurso interno do Útero acerca de uma discussão sobre o lugar da arte na sociedade. Utiliza, para isso, o cruzamento dos discursos artísticos de Max Ernst, Georg Baselitz e Jean-Michel Basquiat numa tentativa de construcção de um universo comum onde exista lugar para o quotidiano, o acaso e a interpretação artística de determinados eventos, no que isso implicava de recusa do academismo definidor/definitivo. A proposta parece querer colocar em confronto certas teorias, para dele poder criar uma nova: a que permitirá alcançar a utopia. Ou, se quisermos, o paraíso na terra.
É uma questão de forma. E a forma, aqui, é mais teórica e menos prática. E, para o caso, o teatro é só a forma como apresentam esta discussão. Ou, se quisermos, o teatro segue depois. Deveríamos, por isso, considerar que Manifesto/Homeless é menos teatro e mais um mural de intervenção, pública e política, que serve para expôr as intenções da estrutura e fazer o público parar e observar. Um jogo dúplice actor/personagem que obriga o espectador a estabelecer a fronteira entre verdade e ficção. Também porque os exemplos são reais, mas mais porque ao longo do espectáculo são convocadas memórias, fantasmas e ideias de outros espectáculos do Útero. Manifesto/Homeless apresenta-se, assim, como um espaço de discussão acerca do que é válido uma estrutura fazer e, no caso, fazer teatro da forma como o Útero o faz, o poderia levar a uma classificação de teatro-no-teatro. O objecto divide-se em duas partes:
Na primeira, o público é convocado a juntar-se à porta do Teatro Nacional D. Maria II para assistir ao comício-lançamento de Miguel Moreira ao lugar de director da instituição. A questão não está, claramente, na veracidade do acto. O lugar nem sequer está à disposição. Está antes na discussão do papel e responsabilidade do Teatro Nacional na criação de laços com a sociedade civil. Seja ela a artística ou a envolvente do edifício. A proposta de Miguel Moreira quer reflectir sobre uma discussão antiga. A que considera que o edifício ultrapassou o conceito. Ou seja, a instituição "fechou-se em copas" e deixou de reagir ao que se passava. O director artístico da companhia e encenador do espectáculo quer, assim, reivindicar a necessidade de revolucionar o papel da instituição, já que essa reclama a ideia de ser o reflexo do que se faz no teatro em português.
Vem do tempo da sua fundação, a discussão acerca do papel do Teatro Nacional D. Maria II no contexto português. Houve até, durante anos, uma famosa boutade: "cada português que nasce, traz debaixo do braço um plano de salvação nacional e uma peça para recuperar o «Normal»". Grande parte do problema do Teatro Nacional, digo eu, não está na definição da sua utilidade, mas antes na capacidade de a fazer aplicar. E essa está mais dependente de factores externos que da vontade dos seus directores. Basta aliás ver a forma como o espaço foi dotado ao abandono por parte dos governos durante gerações de administrações, algumas delas que empenharam a própria fortuna pessoal em nome do teatro em português. E, revolução feita, a necessidade que houve de afastar a ideia de teatro do Estado.
Por isso, qualquer discussão sobre o papel do Teatro Nacional, passa mais pela capacidade de observação nos outros agentes do papel individual que têm na construção de um tecido cultural homogéneo, e menos na ideia de que ao Teatro Nacional cumpre esta ou aquela função. O conceito está demasiado obsoleto para conseguir sobreviver a uma outra discussão. A solução passa, então, pela "demolição" da ideia de necessidade de um Teatro Nacional. O teatro é nacional porque é o reflexo de um país. E nesse sentido deve tentar perceber-se o que diz o país para ter um teatro que lhe responde assim. E depois, perceber como ultrapassar a própria realidade.
A campanha de Miguel Moreira assenta na entrega do espaço a projectos de iniciativa não governamental que representem as novas tendências da arte. Ou seja, que sirvam de espaço de apresentação de projectos que cruzem tendências artísticas, técnicas e fórmulas em nome de uma arte colectiva. Arte colectiva essa que inclua o público. Não tanto o público-espectador, mas o público-contribuinte, já que o teatro (edifício) é de todos.
Mas o que esta ideia encerra está mais para um conceito de comunismo utópico do que assente numa ideia de mercado, à qual o teatro está, inevitavelmente, ligado. Mais não seja porque vende produtos. E o manifesto que o Útero defende (entregue em versão DVD aos espectadores e atirado ao ar depois de lido em forma de poema pelo actor) parece querer integrar o Teatro Nacional no mercado, versão abrangente e não economicista do termo.
Há um pormenor que denuncia imediatamente o sentido que o actor-candidato quer dar à sua intervenção (e, por isso, o coloca à margem de qualquer intenção verdadeira de candidatura ao lugar): um saco à tiracolo com a inscrição DDR (Deutschland Democratic Republic - República Democrática da Alemanha). Este produto tornado merchandising pop contextualiza a proposta e os seus criadores numa relação nostálgica (imposta?) com a Alemanha de Leste, fruto de um imaginário construído a partir de uma forte presença do Partido Comunista em Portugal. A não ser que se trate de uma ironia e uma chave para a descodificação do espectáculo, o facto do candidato-actor se apresentar com esse adereço não pode denunciar outra coisa senão o previsível fracasso da beleza.
Talvez aqui se comecem a sentir as primeiras influências dos artistas investigados. Também Jean-Michel Basquiat procurava a criação de objectos à margem das próprias definições dos movimentos artísticos (e sociais?), desenvolvendo uma interpretação ingénua e intuitiva desses exemplos. No fundo, com esta proposta, provocar a discussão sem procurar uma resposta definitiva. Não limitar as hipóteses. Não condicionar o resultado. Não impedir a utopia. Não prever o seu fracasso (?). Evitar, portanto, a encenação e evidenciar a vivência e a exposição de intenções. Propor, em vez de assumir.
Sobretudo porque o que se segue radicaliza, no sentido oposto, a proposta de candidatura. E também porque a apresentação desta candidatura depende de um carisma, seriedade e abstracção que não coincidem com a forma como o espectador recebe o espectáculo. Porque este sabe que assiste a uma representação. Logo, a proposta serviria melhor para os que desconhecem tratar-se de um espectáculo de teatro. Proceder-se-ia à crença na proposta. Assim, é só teatro.
O espectáculo segue pela Avenida da Liberdade, em direcção a um outro espaço, junto à Praça da Alegria. Pelo caminho o candidato-actor vai fazendo uma visita guiada pelos espaços outrora dedicados à cultura e hoje ao consumo. Trata-se de uma reflexão que carecia de mais aprofundamento e, sobretudo, a recusa de passeio turístico. A transformação social e cultural da cidade reflecte-se nos objectos artísticos apresentados. E no teatro que é nacional.
A segunda parte parte decorre numa casa em construção, onde três amigos (M. S. e P.) reflectem sobre as questões de contaminação da arte e do mundo, depois da morte do líder espiritual do movimento artístico a que pertenciam. Trata-se de uma conversa de resistência e justificação das posições tomadas. Uma discussão assente no cruzamento de vivências e reflexões e na necessidade de testar essas crenças.
Trata-se de um espectáculo-debate que, no entanto, se reserva ao direito de expressão sem convocar um interlocutor. Ou no mínimo, convidar o espectador a participar, conforme tinha acontecido na 1ª parte. Na sala de estar, entre a dessarrumação cenografada e o abandono da obra em desenvolvimento, três figuras parecem ter como mínimo denominador comum, a ideia de Max Ernst: "every normal person, and not just the artist, possesses an inexhaustible store of buried images within the unconscious".
Numa conversa/discussão/reflexão/desabafo acerca do modo como cada um interpreta e recebe a notícia da morte desse líder, passam ideais, sentimentos de angústia, revoltas… Tudo em nome de uma revolução por fazer. Uma revolução com hora marcada e manual de instrucções. Aquilo a que o espectador é convidado a assistir remete já para um passado de utopia. Um tempo em que ainda era possível pensar que a força de um só homem era capaz de transformar o mundo.
O que isto representa de fé (não é o comunismo a utopia mais próxima do cristianismo?), encontra também eco na ideia de Baselitz sobre o falhanço do individual ou necessidade de recuperação da subjectividade depois do modernismo. Ou seja, como podem as revoluções acontecer se estiverem dependentes da efemeridade do ser humano? Como pode o homem transformar-se em Deus, ou então, como procurou Max Ernst, como encontrar um modo de expressão concordante com o novo modelo de homem que o surrealismo postula?
A accção a que estes três corpos se reportam aconteceu em Berlim, numa passagem de ano por identificar e com vista para a AlexanderPlatz. O líder era, então, um modelo a seguir. Havia um encontro marcado com um homem que lhes ia ensinar a fazer a revolução. Mas o homem não apareceu; o líder morreu; e dos que se encontram à frente do espectador, um (P[aulo Castro]) foi preso, recusa o passado e quer enlouquecer a sociedade; o outro (M[iguel Moreira]) parece a sombra do que quis ser e insiste numa intervenção com honestidade, incluindo a tomada do Teatro Nacional; e só a mulher (S[ara de Castro]) parece querer desenvolver um discurso criativo individual, num registo que eleva a actriz a algo maior que o seu próprio corpo. Uma metamorfose envolvente e, sobretudo, secamente verdadeira.
O texto que vão desenrolando à frente do espectador evoca o desencanto de Sarah Kane e Marius von Mayenburg, mas aposta num naturalismo gutural e seco. Uma conversa quase em surdina, mesmo quando gritam. Falam deles porque se vêem sem nada. E falam do país que os envolve, da sociedade que os rodeia, das gentes que não reagem. O mesmo texto faz parte do manifesto entregue na primeira parte do espectáculo. Verdade e ficção, novamente ao serviço do ideal.
Manifesto/Homeless é uma proposta feita de retalhos e à procura de um caminho. Cruza referências, citações e propostas em nome de um discurso maior que possa indicar o curso que a arte deve seguir, se pretender de facto contribuir para uma mudança no mundo. Ou, se quisermos, onde deve o artista - o Homem - procurar as respostas que lhe permita estabelecer uma linha discursiva, logo coerente. Logo, porque inevitável, utópica. Mas, desta vez, que considere o falhanço como hipótese. Para dele poder sobreviver.
Nesse sentido, causa estranheza que o espectáculo termine com uma citação do poema trágico de Federico Garcia Lorca, Yerma. Considerando que Lorca apresenta Yerma como exemplo de um dogmatismo e fanatismo extremos, devemos considerar, primeiro, que o projecto reconhece que a resistência é a única arma para combater quer a desilusão, quer a apatia, quer a derrota? E, sabendo, ainda, que a camponesa lorquiana funciona como a ideia de que alguns desejos podem conduzir à morte quando não são concretizados, como interpretar a morte de S.? No texto de Lorca essa morte feminina não se dá. Yerma, de facto, mata o marido e recusa-se a um outro amante mais viril e capaz de lhe dar filhos. "Seca o sangue" antes que se transforme em veneno, que é o que acontece às mulheres que não parem. Mas não se mata. Assume o infortúnio, seja por capricho divino ou em nome de um destino que tarda em se transformar. Vai à sua procura.
No entanto (liberdades artísticas à parte), na proposta do Útero, S. mata-se depois de se questionar acerca do comportamento nada feminino (nada padronizado) que leva. Que poderá, então, esta morte significar numa personagem que durante toda a discussão se bateu por uma resistência aos limites impostos pela arte e pelo quotidiano? Que procurou nas ruas a força para os seus trabalhos? Que quis ver nos outros o que não tinha em si? Ou seja, que se distanciou das opções de Yerma para se libertar enquanto artista das definições do que deve ser a intervenção criativa. É certo que o exemplo que apresentam no espectáculo é o de um homem impotente contra o de um outro, viril e completo, como era o do líder espiritual que seguiam. Uma interpretação do confronto Juan e Victor?
Deixando no ar a dúvida do envolvimento entre S. e esse líder, podemos perceber que Yerma-S. também está desesperada, mas que recusa viver nesse desespero. Porque, tal como a outra que não se reconhece nos passos que dá (passos masculinos, tarefas de homem), esta não consegue sobreviver à ausência de um homem (um modelo?) que a conduza, que a guie, que lhe dê razões para continuar. Falta individualizar-se como artista. Podemos, então, considerar que Yerma-S. se suicida em nome de uma libertação da mulher, e das imposições sociais a ela subjacentes, mas, ao mesmo tempo, do jugo criativo-inovador? Podemos considerar que Yerma-S. leva mais longe a ideia de ser o artista o próprio objecto artístico, transformando-se, assim, na experiência-última da criação: a morte como ritual de passagem para um mundo ideal? (Nihilismo transvestido de arte?) No fundo, a concretização do paraíso na terra? É o mundo, um mundo melhor se os artistas levarem até ao fim o limite que procuram? E que mundo fica depois disso? E que artistas?
Se servir de resposta, M. e P. acobardam-se, recusam a morte e fogem para o anonimato dos homens e mulheres que queriam mudar. Em última análise, a morte de um artista retira-lhes todas as hipóteses de evolução. Outra vez. E se procuravam perceber como seguir depois da morte do líder espiritual, encontram na opção de S. o limite que ainda não reconhecem. Serão artistas? Recusam o instinto e a inocência. Tornam-se observadores. Recusam-se e ao seu quotidiano. Anulam-se. Porque para se ser revolucionário há que ser paciente e impaciente. Não é uma contradição. É uma questão de dialética.
Para fazer justiça à proposta de Basquiat, e contrariar a opinião generalizada dos discursos críticos extra-obra, ao que se passa na casa em construcção deveria seguir-se a manifestação apresentada na 1ª parte. Assim, evitar-se-ia a discussão surda e autista entre espectador e criadores. Só assim a obra sairía do mural e se tornaria teatro-vivo, teatro-reactivo, teatro-urgente. Quando o espectáculo termina, fica a sensação de utopia falhada, de facto, mas fica ainda a vontade e o desejo de ter contribuído mais para a discussão. Contributo esse que só poderia ser prestado depois de escutadas as razões que levaram à criação do manifesto. Porque o trabalho de analepse processa-se no espectador não como efeito de aproximação mas de afastamento da proposta.
Ao se falar do fracasso das utopias, há que considerar que determinadas acções necessitam contextualização, sobretudo pelas diversas implicações subjacentes. Uma manifestação a favor de um teatro que seja nacional só funcionará com a participação de todos, se recusar a ideia de performance. Já que o tempo se encarregará de dar à coisa o nome de arte. E tanto Max Ernst, como Baselitz e Basquiat defendiam a introdução do acaso no quotidiano, não para uma substituição de realidades, mas para a construcção de uma terceira coisa. E se há verdade nos objectos artísticos é que nada é por acaso. Nem mesmo o acaso. E aí reside a chave para evitar o fracasso da beleza.
Homeless / Manifesto de e com Miguel Moreira, Paulo Castro e Sara de Castro Apoio cenográfico Joana Simões Direcção Miguel Moreira Produção Útero - Associação Cultural
18 a 17 Janeiro 2005 21h30
O espectáculo será reposto em Março
Análise ao espectáculo Manifesto/Homeless
A proposta do Útero surge num tempo de necessárias redefinições sociais e artísticas. E, certamente, não é alheia à dificuldade do teatro se continuar a apresentar como arte questionadora do mundo e do seu quotidiano. Seja porque o conceito de arte total que Wagner preconizava se revelou falhado, ou porque objectos artísticos e quotidiano raramente se encontram num discurso comum de reflexão sobre a contemporaneidade. Assim, assistimos a um desfasamento entre o que se apresenta e o seu reflexo artístico. Ficam, pois, os objectos à espera de enquadramento e integração. E o mundo a viver com esses espelhos sem que neles se reconheça imediatamente.
A questão é que uma discussão sobre a necessidade de mudança do mundo através da arte ou da responsabilidade da arte nessa mudança, já é arte em si mesma; já é discussão em si mesma porque surge enquadrada numa necessidade de escapar ao sufoco; ao estrangulamento; à apatia social. Ou seja, é o reflexo da sociedade na própria arte. Não está nem deslocada nem é paralela. Faz parte de um movimento social integrado no comportamento do mundo. É do mundo. É o mundo. O actual.
O artista não pode, por isso, achar que o que pensa está dissociado do mundo que o rodeia. Antes deve integrar isso no seu trabalho, no seu processo e criar um discurso alternativo - um 3º discurso -, que fixe e identifique as vantagens de cada uma das partes. Em vez de procurar um caminho-outro que fuja a essa realidade, deve compreender porque e como se chegou aqui/ali. "Atacar", assim, o problema na raiz. Evitar a ressaca da próxima intervenção. Prever todos os resultados. Assumir o desejo, tal como escreveu o jornal El Mundo a propósito da exposição sobre o insucesso das utopias artísticas La belleza del fracaso/El fracaso de la belleza (Barcelona, 2004): "entre a utopia e a desilusão não existe uma especial diferença. Ambas são o resultado de um movimento pendular, como os passos: um pé segue o outro. Esta é a lógica do desejo."
Manifesto/Homeless é, então em si mesmo, uma utopia. Pode ser lido como o discurso interno do Útero acerca de uma discussão sobre o lugar da arte na sociedade. Utiliza, para isso, o cruzamento dos discursos artísticos de Max Ernst, Georg Baselitz e Jean-Michel Basquiat numa tentativa de construcção de um universo comum onde exista lugar para o quotidiano, o acaso e a interpretação artística de determinados eventos, no que isso implicava de recusa do academismo definidor/definitivo. A proposta parece querer colocar em confronto certas teorias, para dele poder criar uma nova: a que permitirá alcançar a utopia. Ou, se quisermos, o paraíso na terra.
É uma questão de forma. E a forma, aqui, é mais teórica e menos prática. E, para o caso, o teatro é só a forma como apresentam esta discussão. Ou, se quisermos, o teatro segue depois. Deveríamos, por isso, considerar que Manifesto/Homeless é menos teatro e mais um mural de intervenção, pública e política, que serve para expôr as intenções da estrutura e fazer o público parar e observar. Um jogo dúplice actor/personagem que obriga o espectador a estabelecer a fronteira entre verdade e ficção. Também porque os exemplos são reais, mas mais porque ao longo do espectáculo são convocadas memórias, fantasmas e ideias de outros espectáculos do Útero. Manifesto/Homeless apresenta-se, assim, como um espaço de discussão acerca do que é válido uma estrutura fazer e, no caso, fazer teatro da forma como o Útero o faz, o poderia levar a uma classificação de teatro-no-teatro. O objecto divide-se em duas partes:
Na primeira, o público é convocado a juntar-se à porta do Teatro Nacional D. Maria II para assistir ao comício-lançamento de Miguel Moreira ao lugar de director da instituição. A questão não está, claramente, na veracidade do acto. O lugar nem sequer está à disposição. Está antes na discussão do papel e responsabilidade do Teatro Nacional na criação de laços com a sociedade civil. Seja ela a artística ou a envolvente do edifício. A proposta de Miguel Moreira quer reflectir sobre uma discussão antiga. A que considera que o edifício ultrapassou o conceito. Ou seja, a instituição "fechou-se em copas" e deixou de reagir ao que se passava. O director artístico da companhia e encenador do espectáculo quer, assim, reivindicar a necessidade de revolucionar o papel da instituição, já que essa reclama a ideia de ser o reflexo do que se faz no teatro em português.
Vem do tempo da sua fundação, a discussão acerca do papel do Teatro Nacional D. Maria II no contexto português. Houve até, durante anos, uma famosa boutade: "cada português que nasce, traz debaixo do braço um plano de salvação nacional e uma peça para recuperar o «Normal»". Grande parte do problema do Teatro Nacional, digo eu, não está na definição da sua utilidade, mas antes na capacidade de a fazer aplicar. E essa está mais dependente de factores externos que da vontade dos seus directores. Basta aliás ver a forma como o espaço foi dotado ao abandono por parte dos governos durante gerações de administrações, algumas delas que empenharam a própria fortuna pessoal em nome do teatro em português. E, revolução feita, a necessidade que houve de afastar a ideia de teatro do Estado.
Por isso, qualquer discussão sobre o papel do Teatro Nacional, passa mais pela capacidade de observação nos outros agentes do papel individual que têm na construção de um tecido cultural homogéneo, e menos na ideia de que ao Teatro Nacional cumpre esta ou aquela função. O conceito está demasiado obsoleto para conseguir sobreviver a uma outra discussão. A solução passa, então, pela "demolição" da ideia de necessidade de um Teatro Nacional. O teatro é nacional porque é o reflexo de um país. E nesse sentido deve tentar perceber-se o que diz o país para ter um teatro que lhe responde assim. E depois, perceber como ultrapassar a própria realidade.
A campanha de Miguel Moreira assenta na entrega do espaço a projectos de iniciativa não governamental que representem as novas tendências da arte. Ou seja, que sirvam de espaço de apresentação de projectos que cruzem tendências artísticas, técnicas e fórmulas em nome de uma arte colectiva. Arte colectiva essa que inclua o público. Não tanto o público-espectador, mas o público-contribuinte, já que o teatro (edifício) é de todos.
Mas o que esta ideia encerra está mais para um conceito de comunismo utópico do que assente numa ideia de mercado, à qual o teatro está, inevitavelmente, ligado. Mais não seja porque vende produtos. E o manifesto que o Útero defende (entregue em versão DVD aos espectadores e atirado ao ar depois de lido em forma de poema pelo actor) parece querer integrar o Teatro Nacional no mercado, versão abrangente e não economicista do termo.
Há um pormenor que denuncia imediatamente o sentido que o actor-candidato quer dar à sua intervenção (e, por isso, o coloca à margem de qualquer intenção verdadeira de candidatura ao lugar): um saco à tiracolo com a inscrição DDR (Deutschland Democratic Republic - República Democrática da Alemanha). Este produto tornado merchandising pop contextualiza a proposta e os seus criadores numa relação nostálgica (imposta?) com a Alemanha de Leste, fruto de um imaginário construído a partir de uma forte presença do Partido Comunista em Portugal. A não ser que se trate de uma ironia e uma chave para a descodificação do espectáculo, o facto do candidato-actor se apresentar com esse adereço não pode denunciar outra coisa senão o previsível fracasso da beleza.
Talvez aqui se comecem a sentir as primeiras influências dos artistas investigados. Também Jean-Michel Basquiat procurava a criação de objectos à margem das próprias definições dos movimentos artísticos (e sociais?), desenvolvendo uma interpretação ingénua e intuitiva desses exemplos. No fundo, com esta proposta, provocar a discussão sem procurar uma resposta definitiva. Não limitar as hipóteses. Não condicionar o resultado. Não impedir a utopia. Não prever o seu fracasso (?). Evitar, portanto, a encenação e evidenciar a vivência e a exposição de intenções. Propor, em vez de assumir.
Sobretudo porque o que se segue radicaliza, no sentido oposto, a proposta de candidatura. E também porque a apresentação desta candidatura depende de um carisma, seriedade e abstracção que não coincidem com a forma como o espectador recebe o espectáculo. Porque este sabe que assiste a uma representação. Logo, a proposta serviria melhor para os que desconhecem tratar-se de um espectáculo de teatro. Proceder-se-ia à crença na proposta. Assim, é só teatro.
O espectáculo segue pela Avenida da Liberdade, em direcção a um outro espaço, junto à Praça da Alegria. Pelo caminho o candidato-actor vai fazendo uma visita guiada pelos espaços outrora dedicados à cultura e hoje ao consumo. Trata-se de uma reflexão que carecia de mais aprofundamento e, sobretudo, a recusa de passeio turístico. A transformação social e cultural da cidade reflecte-se nos objectos artísticos apresentados. E no teatro que é nacional.
A segunda parte parte decorre numa casa em construção, onde três amigos (M. S. e P.) reflectem sobre as questões de contaminação da arte e do mundo, depois da morte do líder espiritual do movimento artístico a que pertenciam. Trata-se de uma conversa de resistência e justificação das posições tomadas. Uma discussão assente no cruzamento de vivências e reflexões e na necessidade de testar essas crenças.
Trata-se de um espectáculo-debate que, no entanto, se reserva ao direito de expressão sem convocar um interlocutor. Ou no mínimo, convidar o espectador a participar, conforme tinha acontecido na 1ª parte. Na sala de estar, entre a dessarrumação cenografada e o abandono da obra em desenvolvimento, três figuras parecem ter como mínimo denominador comum, a ideia de Max Ernst: "every normal person, and not just the artist, possesses an inexhaustible store of buried images within the unconscious".
Numa conversa/discussão/reflexão/desabafo acerca do modo como cada um interpreta e recebe a notícia da morte desse líder, passam ideais, sentimentos de angústia, revoltas… Tudo em nome de uma revolução por fazer. Uma revolução com hora marcada e manual de instrucções. Aquilo a que o espectador é convidado a assistir remete já para um passado de utopia. Um tempo em que ainda era possível pensar que a força de um só homem era capaz de transformar o mundo.
O que isto representa de fé (não é o comunismo a utopia mais próxima do cristianismo?), encontra também eco na ideia de Baselitz sobre o falhanço do individual ou necessidade de recuperação da subjectividade depois do modernismo. Ou seja, como podem as revoluções acontecer se estiverem dependentes da efemeridade do ser humano? Como pode o homem transformar-se em Deus, ou então, como procurou Max Ernst, como encontrar um modo de expressão concordante com o novo modelo de homem que o surrealismo postula?
A accção a que estes três corpos se reportam aconteceu em Berlim, numa passagem de ano por identificar e com vista para a AlexanderPlatz. O líder era, então, um modelo a seguir. Havia um encontro marcado com um homem que lhes ia ensinar a fazer a revolução. Mas o homem não apareceu; o líder morreu; e dos que se encontram à frente do espectador, um (P[aulo Castro]) foi preso, recusa o passado e quer enlouquecer a sociedade; o outro (M[iguel Moreira]) parece a sombra do que quis ser e insiste numa intervenção com honestidade, incluindo a tomada do Teatro Nacional; e só a mulher (S[ara de Castro]) parece querer desenvolver um discurso criativo individual, num registo que eleva a actriz a algo maior que o seu próprio corpo. Uma metamorfose envolvente e, sobretudo, secamente verdadeira.
O texto que vão desenrolando à frente do espectador evoca o desencanto de Sarah Kane e Marius von Mayenburg, mas aposta num naturalismo gutural e seco. Uma conversa quase em surdina, mesmo quando gritam. Falam deles porque se vêem sem nada. E falam do país que os envolve, da sociedade que os rodeia, das gentes que não reagem. O mesmo texto faz parte do manifesto entregue na primeira parte do espectáculo. Verdade e ficção, novamente ao serviço do ideal.
Manifesto/Homeless é uma proposta feita de retalhos e à procura de um caminho. Cruza referências, citações e propostas em nome de um discurso maior que possa indicar o curso que a arte deve seguir, se pretender de facto contribuir para uma mudança no mundo. Ou, se quisermos, onde deve o artista - o Homem - procurar as respostas que lhe permita estabelecer uma linha discursiva, logo coerente. Logo, porque inevitável, utópica. Mas, desta vez, que considere o falhanço como hipótese. Para dele poder sobreviver.
Nesse sentido, causa estranheza que o espectáculo termine com uma citação do poema trágico de Federico Garcia Lorca, Yerma. Considerando que Lorca apresenta Yerma como exemplo de um dogmatismo e fanatismo extremos, devemos considerar, primeiro, que o projecto reconhece que a resistência é a única arma para combater quer a desilusão, quer a apatia, quer a derrota? E, sabendo, ainda, que a camponesa lorquiana funciona como a ideia de que alguns desejos podem conduzir à morte quando não são concretizados, como interpretar a morte de S.? No texto de Lorca essa morte feminina não se dá. Yerma, de facto, mata o marido e recusa-se a um outro amante mais viril e capaz de lhe dar filhos. "Seca o sangue" antes que se transforme em veneno, que é o que acontece às mulheres que não parem. Mas não se mata. Assume o infortúnio, seja por capricho divino ou em nome de um destino que tarda em se transformar. Vai à sua procura.
No entanto (liberdades artísticas à parte), na proposta do Útero, S. mata-se depois de se questionar acerca do comportamento nada feminino (nada padronizado) que leva. Que poderá, então, esta morte significar numa personagem que durante toda a discussão se bateu por uma resistência aos limites impostos pela arte e pelo quotidiano? Que procurou nas ruas a força para os seus trabalhos? Que quis ver nos outros o que não tinha em si? Ou seja, que se distanciou das opções de Yerma para se libertar enquanto artista das definições do que deve ser a intervenção criativa. É certo que o exemplo que apresentam no espectáculo é o de um homem impotente contra o de um outro, viril e completo, como era o do líder espiritual que seguiam. Uma interpretação do confronto Juan e Victor?
Deixando no ar a dúvida do envolvimento entre S. e esse líder, podemos perceber que Yerma-S. também está desesperada, mas que recusa viver nesse desespero. Porque, tal como a outra que não se reconhece nos passos que dá (passos masculinos, tarefas de homem), esta não consegue sobreviver à ausência de um homem (um modelo?) que a conduza, que a guie, que lhe dê razões para continuar. Falta individualizar-se como artista. Podemos, então, considerar que Yerma-S. se suicida em nome de uma libertação da mulher, e das imposições sociais a ela subjacentes, mas, ao mesmo tempo, do jugo criativo-inovador? Podemos considerar que Yerma-S. leva mais longe a ideia de ser o artista o próprio objecto artístico, transformando-se, assim, na experiência-última da criação: a morte como ritual de passagem para um mundo ideal? (Nihilismo transvestido de arte?) No fundo, a concretização do paraíso na terra? É o mundo, um mundo melhor se os artistas levarem até ao fim o limite que procuram? E que mundo fica depois disso? E que artistas?
Se servir de resposta, M. e P. acobardam-se, recusam a morte e fogem para o anonimato dos homens e mulheres que queriam mudar. Em última análise, a morte de um artista retira-lhes todas as hipóteses de evolução. Outra vez. E se procuravam perceber como seguir depois da morte do líder espiritual, encontram na opção de S. o limite que ainda não reconhecem. Serão artistas? Recusam o instinto e a inocência. Tornam-se observadores. Recusam-se e ao seu quotidiano. Anulam-se. Porque para se ser revolucionário há que ser paciente e impaciente. Não é uma contradição. É uma questão de dialética.
Para fazer justiça à proposta de Basquiat, e contrariar a opinião generalizada dos discursos críticos extra-obra, ao que se passa na casa em construcção deveria seguir-se a manifestação apresentada na 1ª parte. Assim, evitar-se-ia a discussão surda e autista entre espectador e criadores. Só assim a obra sairía do mural e se tornaria teatro-vivo, teatro-reactivo, teatro-urgente. Quando o espectáculo termina, fica a sensação de utopia falhada, de facto, mas fica ainda a vontade e o desejo de ter contribuído mais para a discussão. Contributo esse que só poderia ser prestado depois de escutadas as razões que levaram à criação do manifesto. Porque o trabalho de analepse processa-se no espectador não como efeito de aproximação mas de afastamento da proposta.
Ao se falar do fracasso das utopias, há que considerar que determinadas acções necessitam contextualização, sobretudo pelas diversas implicações subjacentes. Uma manifestação a favor de um teatro que seja nacional só funcionará com a participação de todos, se recusar a ideia de performance. Já que o tempo se encarregará de dar à coisa o nome de arte. E tanto Max Ernst, como Baselitz e Basquiat defendiam a introdução do acaso no quotidiano, não para uma substituição de realidades, mas para a construcção de uma terceira coisa. E se há verdade nos objectos artísticos é que nada é por acaso. Nem mesmo o acaso. E aí reside a chave para evitar o fracasso da beleza.
Homeless / Manifesto de e com Miguel Moreira, Paulo Castro e Sara de Castro Apoio cenográfico Joana Simões Direcção Miguel Moreira Produção Útero - Associação Cultural
18 a 17 Janeiro 2005 21h30
O espectáculo será reposto em Março
Sem comentários:
Enviar um comentário