quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Movimentos simples

Análise ao espectáculo Publique, de Mathilde Monnier
12 Fevereiro 2005, 21h30
Culturgest, Lisboa



A proposta de Mathilde Monnier, Publique, levanta interessantes questões sobre a relação entre a música e a dança. Ou, se quisermos, sobre a forma como o corpo pode viver a música. E, em última instância, como se pode ouvir o som de um movimento.

Construído a partir da obra musical de P.J. Harvey, esta coreografia vive, no entanto, de uma relação unilateral com o trabalho da autora inglesa. Quase que se poderia dizer que é uma proposta pós-P.J. Harvey, já que trabalha sensações terceiras que partem da música para o corpo da coreógrafa que, por sua vez, se multiplica nas intérpretes*. Mathilde Monnier procura ainda estabelecer uma outra ligação, uma que comece no palco e vá ao encontro do espectador.

E é este inquietante mapa que se desenha em Publique. Uma coreografia do quotidiano que baralha música e dança através de uma fisicalidade e um rigor, que parecem levar o corpo a algo que responda de forma primária, honesta, emotiva e hiper-sensível ao prazer/energia que a música dá/transmite.

A própria música é coreografada e manipulada no palco. Acompanha as bailarinas, escondendo-se quando elas o fazem atrás da rampa que atravessa o espaço delimitado por um linóleo branco, por exemplo. Ou reagindo à violência dos seus corpos em explosão. A variação do volume em que enchem o palco e o alinhamento que tanto sobrepõe como repete, enreda a obra de P.J. Harvey nas opções de Monnier.

Por isso, ao apresentar uma coreografia para as músicas, estará a autora a impôr uma imagem ao universo, ao esqueleto, à estrutura da própria música? Pode esta ganhar (com) a proposta física? Ou, pelo contrário, é a coreografia que fica obrigada a ultrapassá-la e provar a sua individualidade? Afinal, não veio primeiro a música e depois o movimento? A leitura do trabalho de P.J. Harvey parece servir uma apropriação para provocar a libertação. Ou seja, regressar ao movimento sem música. Ao som do movimento.

Publique trata de uma coreografia a partir de movimentos tão quotidianos quanto aqueles que se fazem numa discoteca ao ouvir as músicas de P.J. Harvey. É, por isso uma proposta que se obriga à reflexão sobre o que de melhor pode existir quando nos deixamos invadir por uma música (já que é de música que daqui se parte): deslocar o corpo para algo mais confortável. Algo que faça do espectador e do bailarino dois iguais, cuja diferença resida apenas na liberdade interpretativa. No primeiro caso ausente de regras, no segundo quebrando as regras para ser orgânico.

Mas é o espectador um bailarino? É essa uma leitura possível para a relação próxima que Mathilde Monnier procura estabelecer? Aparentemente não. E não porque o espectador, na discoteca ou no seu quotidiano não compõe uma dramaturgia com o corpo. Ou seja, o que faz é irracional. E essa é a barreira que se tenta derrubar em Publique. Devolver às bailarinas a irracionalidade e colocar o espectador preso, literalmente amarrado, à cadeira. Inverter as liberdades, portanto.



A cena aberta e despojada do Grande Auditório da Culturgest oferece ao espectador a oportunidade de preencher o aparente vazio com as emoções que as músicas de P.J. Harvey lhe transmitem. Convida, assim, o espectador a reflectir sobre a sua condição de observador. Sobretudo porque os movimentos que as bailarinas desenham no espaço são, numa primeira leitura, perfeitamente reconhecíveis.

E esses movimentos reconhecíveis depressam se transformam numa dança privada, íntima e mais próxima de um estado etéreo que só a música provoca. Esse rigor corporal caminha para um desenho de emoções que nos é apresentado através de mudanças de roupa, cabeleiras e movimentos dificilmente enquadrados em classicismos. Mas que os reconhecem.

E a coreógrafa procura demonstrá-lo de duas formas. Quando as bailarinas saem do espaço cénico e observam a cena, não para a abandonarem mas para procurarem outros espaços para a corporalização. Reconhecem que tudo o que está no palco é pensado (ou quer pensar sobre). Parecem viver dentro da densa massa que a música ocupa e o movimento apreende. E, ainda, quando a música deixa de se ouvir e as intérpretes fazem das palavras de P.J. Harvey extensões dos gestos anteriores. Testam a sua musicalidade. Dançam as palavras. Dizem-nas sem as cantar. Tentam fazê-lo, pelo menos. E compõem uma só canção, um só discurso, um só corpo, um só movimento, uma só "coisa": música e dança.

Portanto, em Publique um mais um não são dois. Um mais um será sempre um mais um.

*Nove na estreia e sete nas apresentações em Portugal: Lisboa (Culturgest, 12 e 13 de Fevereiro), Viseu (Teatro Viriato, 17 Fevereiro) e Porto (Rivoli Teatro Municipal)

Coreografia Mathilde Monnier Música PJ Harvey Artistas associados à criação: Ayelen Parolin, Germana Civera, Corinne Garcia, Natacha Kouznetsova, I Fang Lin Lemoisson, Ana Sofia Neves Gonçalves, Filiz Sizanli, Mathilde Monnier Trabalho de preparação Germana Civera Cenografia Annie Tolleter Luzes Eric Wurtz Figurinos Dominique Favrègue assistida por Laurence Alquier Realização Sonora Olivier Renouf Aconselhamento Claude Espinassier Co-produção Centre Chorégraphique National de Montpellier Languedoc-Roussillon, Festival Montpellier danse 2004. Théâtre de la Ville et Festival d’Automne – Paris; DeSingel – Anvers – Bélgica

Publique será apresentado no Porto (Rivoli Teatro Municipal) a 17 Fevereiro e Viseu (Teatro Viriato) a 19 Fevereiro

Outras informações sobre o espectáculo, no site da companhia

Fotografias da autoria de M. Coudrais retiradas do site da companhia

As opiniões de Daniel Tércio e Eduardo Prado Coelho, no jornal Público


1 comentário:

Duarte disse...

Obrigado pelo texto, Tiago. Gostei de o ler e irei publicitá-lo no Chá Príncipe. Infelizmente, não tive oportunidade de o ver.