sábado, março 05, 2005

O lado esquerdo das coisas

Análise ao espectáculo Punchwork, do Ninho de Víboras
9ª Mostra de Teatro de Almada
Casa da Juventude de Cacilhas
23 Fevereiro
21h30



É muito simples a proposta do Ninho de Víboras. Simples na estrutura, simples nas intenções e simples nos objectivos.

Punchwork é uma viagem ao universo labírintico e nostálgico da infância, que aposta na evocação de determinadas acções para compreender os seus efeitos na vida adulta. Dessa forma, o espectador é convidado a acompanhar uma menina-mulher (Inês Nogueira) numa revisitação do seu passado, laços familiares, relações com o espaço e a cidade mas, sobretudo, com a descoberta da necessidade de se passar de um mundo de crianças para um mundo adulto. Por isso, Punchwork é um trabalho sobre as dores de crescimento.

Apresenta-se num dispositivo agridoce, totalmente dependente da interpretação de Inês Nogueira que, de uma forma nada impositiva vai cativando o espectador e convencendo-o a preocupar-se menos com certos apontamentos infantis. Desta ex-criança pouco sabemos. Apenas o suficente para confiar no seu discurso sedutor e crente.

Trata-se de um exercício de manipulação da memória colectiva e pessoal, que se constrói através da apropriação de um espectáculo de marionetas bastante popular em Inglaterra: Punch & Judy. Equilibrando a história pessoal da menina-mulher, assistimos ao desenrolar do conto, através de um teatrinho de feira e as suas marionetas trabalhadas por Vitor d'Andrade.

Espectáculo melancólico, Punchwork quase parece querer fazer-nos esquecer que a história de Punch & Judy é violenta, perigosa e de caracteristicas quase sado-masoquistas. A integração deste espectáculo tradicional e secular de origens indianas e até gregas na lógica da história permite um confronto entre verdades, mentiras e ambiguidades, tão comuns nas relações entre adultos e crianças.



A história de Punch & Judy é, também ela, simples. Punch é um velho execrável que resolve os problemas matando quem o irrita ou perturba. Mata o bebé, a mulher, o polícia e tudo o que lhe apareça pela frente. A única coisa que lhe mete medo é um palhaço que nunca morre e um crocodilo que o poderia comer. Este espectáculo de marionetas depende de tal forma da inocência do público que só funciona se este se libertar dos pré-conceitos que o levam ao teatro. E essa é a primeira de algumas mais-valias de Punchwork: trabalhar um público adulto já esquecido do encanto que pode ser uma história simples.

A tradição diz-nos que o interesse de Punch & Judy reside num libertar de tensões, nomeadamente na gritaria que se pode instalar entre o público que, sabendo que Punch vai matar quem se atravessar no caminho, vai procurar alertar a vítima. Portanto, os espectadores oscilam num fascínio pela violência primária e quase divertida de Punch e a necessidade de auxílio a quem vai sofrer. O espectador perde sempre, já que Punch é mais eficaz.

Em Punchwork, o espectador apercebe-se das falhas dos discursos adultos evocados e quase pode antever os efeitos que tiveram nesta criança-mulher. Contudo, tal como em Punch & Judy querem saber como Punch se vai "safar", aqui querem saber como vai ela crescer com esses erros. Mesmo que lhes apeteça gritar ou quanto muito dizer "eu já sabia".

Contudo esta proposta do Ninho de Víboras tende a parecer-nos algo formal, já que o encaixe das duas narrativas demora a ser compreendido uma vez que o universo referenciado não é reconhecível. Por isso o público demora a perceber que o seu papel depende mais de si do que seria de esperar. O que em última instância pode atribuir à narrativa de Punch & Judy um papel de corte da narrativa principal.

Esta história de criaturas maldosas (os adultos) e fascinados (as crianças) é um belo exercício de experimentação teatral, seja ao nível do papel do público, seja do cruzamento de linguagens nem sempre coincidentes. As duas narrativas encontram-se num ponto só: aquele em que a criança cresce e decide experimentar o papel de Punch, ou seja, passar da criança à mulher. E nesse momento, Inês Nogueira, que ocupara sempre o lado direito do direito do palco, cruza a linha e passa a habitar o esquerdo. Da mesma forma que a mão esquerda do manipulador de marionetas deve manter Punch, para que a direita possa ter todas as outras.

No fim a questão que se pode colocar é: em que altura da nossa vida deixámos de morrer às mãos dos Punchs?

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