Eu quero… moi non plus
Análise a Sobre a mesa a faca, co-criação Cão Solteiro/Teatro Praga
15 Fevereiro a 05 Março
Hospital Miguel Bombarda, Lisboa
Sobre a mesa a faca é um espectáculo-enganador. Nos seus propósitos, nas suas premissas, na sua recepção, naquilo que condiciona o que vêm a seguir. Mas não se trata de um espectáculo-logro, de um engano fútil ou de um objecto desonesto. Em Sobre a mesa a faca o que parece, não é. Porque este é um espectáculo-questão: "o que me dizes tu e que te respondo eu?". É, por isso, uma proposta suspensa na resposta do outro e crente nas expectativas desenvolvidas antes dessa resposta. Mesmo que se fale sozinho e aquilo que o outro nos tiver para dizer pareça estranho. Naturalmente este tipo de propostas pressupõe a recusa quer dos criadores, quer do público.
O espectáculo parece aliás desafiar a definição de co-produção, uma vez que procura pensar a razão pela qual se juntam dois projectos artísticos. Se não existirem afinidades, para que serve a co-produção? Portanto, primeiro engano: Sobre a mesa a faca não é uma co-produção, é uma co-criação. E a necessidade de se perceber esta diferença não é um preciosismo, mas antes a procura de uma resposta à burocracia das instituições e aos pensamentos formatados. O espectáculo não responde assim a qualquer solicitação institucional mas antes a uma urgência que se prende com um pensar sobre o processo criativo de cada uma das companhias.
Fotografia Susana Paiva
Mas Sobre a mesa a faca comporta-se mais como um encontro e não tanto como uma proposta-finita. Com esta experiência, o Cão Solteiro e o Teatro Praga juntaram-se para uma co-criação cuja importância não residia tanto na construção de um objecto teatral, mas antes num colocar em perspectiva (e diálogo) um percurso artístico que primasse por um pensamento sobre o lugar do teatro e das artes performativas, da forma como as duas estruturas pensam o que fazem. Porque, precisamente, ambas as companhias regressarão ao seu universo pessoal, enriquecido agora com um discurso e uma reflexão exterior.
O espectáculo constrói-se em duas linhas paralelas, que inevitavelmente se tocarão: por um lado os criadores e, por outro, o público. O ponto de união é, obviamente o espectáculo. Mas isto não quer significar que se construa um terceiro objecto que responda pelas duas companhias. Essa terceira entidade que, no limite, pudesse dizer 'são os Praga à lá Cão' ou 'os Cães à lá Praga'. Mas isso não existe. Até mesmo de forma deliberada. Que sentido faria, de facto, a criação de um discurso comum (ou mimético) se o que se quer pensar é o discurso individual?
Sobre a mesa a faca cumpre, assim, aquilo que definiria como 'intra-espectáculos': propostas que pressupõem uma relação biofágica com o processo criativo e dependentes de uma relação particular com os espectadores. Ou seja, alimentam-se dele (e das componentes da estrutura teatral) para fazerem surgir uma nova proposta solicitando ao público uma proposta de conclusão.
É preciso notar que neste espectáculo nem tudo é dito em conjunto. Logo, nem tudo é verdade para os dois. E nem todos estão dispostos a ir tão longe. Eu quero... moi non plus, portanto. Sobre a mesa a faca é, efectivamente, 1 + 1 = 1 e 1. E parece aliás propor uma radicalização de discursos e recepções. Por isso, trata-se também de uma proposta que testa os limites da aceitação artística.
Teria sido, por isso, fascinante a criação e desenvolvimento de dois espectáculos: um feito pelo Teatro Praga e outro pelo Cão Solteiro. Ou, por limites de produção, disponibilizar duas bancadas: uma para o público-Cão e outra para o público-Praga. Porque, ainda que saibamos que as duas estruturas navegam no mesmo universo de públicos, esperam-se coisas diferentes de cada uma delas. E é nesse sentido que a recepção de Sobre a mesa a faca é condicionada. Porque esperamos ver um discurso super-comum. Alternativo, se quisermos.
Surge inevitavelmente a primeira das dúvidas para eventual descanso de quem vê: quem influenciou quem? Sabe-se à partida que as propostas das duas estruturas tratam da contaminação teatral. Podemos até considerar que o movimento das duas companhias é contrário: o Cão Solteiro parte dos textos para fora, enquanto o Teatro Praga parte do fora para dentro (texto incluído). No meio, Sobre a mesa a faca, uma proposta pura e formalmente teatral.
O espaço apresenta-se despojado e aberto a especulações, como aliás é prática comum, sobretudo do Teatro Praga. Desconhecemos (confundimo-nos) se o espectáculo já começou. Na bilheteira o público é convidado a deixar o preço do bilhete numa bandeja (5 € sem qualquer tipo de regalias e descontos). Os actores recebem o público com sorrisos e entre a preparação e o convívio observam o espectador. A luz é baixa, quase nocturna e, do outro lado do armazém (atravessando o "palco" coberto de um chão branco e recheado de cadeiras, sofás, um piano, algumas mesas e estantes) uma plateia de três filas de cadeiras antigas de teatro. Há uma aparente serenidade quer no público quer nos actores. Uma serenidade que se prende com uma expectativa e um necessário despojamento.
A dramaturgia de Sobre a mesa a faca consiste numa recolha de entrevistas às mais diversas pessoas dos mais vastos campos de acção (companhias incluídas) que, retiradas do seu contexto e confundidas no anonimato vão formando um diálogo entre si. Nesse sentido, somos tentados a identificar os actores (Marcello Urgeghe e Paula Sá Nogueira pelo Cão Solteiro, André e. Teodósio, Carlos Alves, Pedro Penim e Sofia Ferrão, pelo Teatro Praga) como personagens e a procurar perceber se o que dizem contribui para a definição/construção de personagens. Mas mesmo sendo teatral, Sobre a mesa a faca é uma proposta de destruição da personagem. Não por uma questão de descrença, mas porque o teatro não é (não pode ser) uma paragem de tempo na realidade. É uma continuação da realidade. São os próprios a afirmar: "uma obra não pode estar virada para o futuro, porque é sobre o aqui e o agora".
Fotografia Susana Paiva
Por isso, Sobre a mesa a faca é uma entrevista em si mesmo, também porque as entrevistas representam um discurso a dois, isolado da passagem do tempo e um espaço de reflexão. 'Incontrolado' e manipulado. Não é uma contradição, é uma questão de dialética. Da mesma forma que o espectáculo não tem uma narrativa, mas tem uma estrutura. 'Espectáculo-esqueleto', portanto.
È por isso que o espectáculo é uma reflexão sobre o processo criativo, apresentada sobre a forma de um pastiche de entrevistas diversas que vão construíndo um universo de referências que em última instância obriga o teatro a filtrar e a ultrapassar-se. Na mesma medida em que podemos considerar que o espectáculo interessa menos do que aparenta. Sobretudo para as companhias, uma vez que o objectivo era testar o confronto criativo. Que ele surja sob a forma de um bloqueio ou de uma epifania dependerá do que cada uma das companhias fizer a seguir. Sobre a mesa a faca é, portanto, um 'espectáculo-bolha'.
Com Sobre a mesa a faca, dizem querer "passar no crivo do que estamos a pensar no momento". Considerando que as entrevistas são, também elas, momentos de encenação entre quem faz e quem responde, procura-se transformar as entrevistas em conversas e devolver o lado humano e real que faz do teatro uma questão de presente. No fundo, dar um significado à efemeridade. Até mesmo uma utilidade. E, claramente, um sentido de verdade.
Este limite de verdade é atingido com a recriação da única entrevista identificada. No caso à ginasta olímpica Nadia Comaneci. Sofia Ferrão (Nadia Comaneci) e Pedro Penim (o entrevistador), propõe uma leitura dramatúrgica, ficcionalizando a entrevista. Deixa portanto de se tratar de uma entrevista, para passar a ser uma coisa real. Exactamente aquilo que o Teatro Praga tinha proposto num dos momentos de TÍTULO, ao convidar dois elementos do público a recriarem uma entrevista sobre o movimento Dogma 95 entre Lars von Trier e Peter Ovid Knudsen. Mas se o "público falso" de TÍTULO se limitava a lê-la não reflectindo sobre a verdade no cinema e no teatro, os actores de Sobre a mesa a faca querem fazer do confronto entre Comaneci e o entrevistador um momento o mais verdadeiro possível. Parece que dizem: "era isto a que nos propunhamos".A entrevista pelo seu grau de exposição pessoal sugere várias implicações na forma como podemos olhar os outros, logo, o actor.
Na mesma linha de verdade encontramos o momento (não me parecem que existam cenas neste espectáculo) em que Paula Sá Nogueira se recusa a fazer uma entrevista a Carlos Alves, onde este recria uma ninfomaníaca. O momento tem tanto de verdadeiro quanto maior for o conhecimento pessoal que tivermos da actriz. Na verdade, acreditamos que Paula Sá Nogueira-actriz se esteja a recusar a prosseguir com a entrevista. Mas isso seria considerar que em Sobre a mesa a faca há espaço para a improvisação. E não há. Não há sobretudo porque as entrevistas são momentos falsos e nos quais cada uma das partes dá exactamente aquilo que quer dar. Sem lhe ser pedido mais. É por isso que Sobre a mesa a faca é profundamente teatral. Porque os actores se propõem a um duplo jogo de representação.
Só assim se compreende que Pedro Penim, o único que se identifica dando o nome, número de telemóvel e e-mail, seja apanhado por Paula Sá Nogueira e depois Carlos Alves que lhe batem com um jornal, sem palavras e aparente explicação. Mas o que fazem não é mais que rejeitar uma aproximação entre personagem e actor.
O espectáculo é um desafio ao presente disfarçado de jogo teatral. Um jogo violento, descarnado e último, na medida em que uma recusa de pensamento implica a anulação do trabalho desenvolvido até agora. Por isso é tão importante o insulto ao público. Seja pelo desprezo com que recebem o pagamento do bilhete, seja no discurso com que Pedro Penim introduz o espectáculo, depois de longos minutos em que os actores se dispuseram nos seus espaços privados, quase inconscientes de que havia um público. Não estaremos certamente longe de Peter Handke («Publikumsbeschimpfung», 1965), mas na verdade o que os criadores propõe não é tanto o insulto gratuito mas o testar do conforto da plateia. É um teste de resistência para ganhar o espectador. É uma brincadeira para saber se, de facto, queremos estar ali. É uma forma de fazer o público entrar dentro de uma proposta que se quer questionada. E é, no fundo, um momento que permite não só a identificação do público (seja por recusa ou aceitação do insulto) como obriga o actor a ser inventivo na criação de formas de anulação do conforto que a plateia oferece.
Será por isso que podemos falar de zapping teatral. É que, na verdade, o conjunto de entrevistas acaba por formar uma imensa massa de informação que o público seleccionará consoante as suas próprias referências. Dizem: "o espectador é um colaborador na medida em que define os sentidos". Logo, construirá o seu próprio espectáculo. E a sua própria verdade. Mesmo que essa seja uma noção falsa, uma vez que num espectáculo que cede tão pouco como este, o espectador é um animal desconfiado.
Fotografia Susana Paiva
Quando Pedro Penim se aproxima da plateia para perguntar quem quer levar o dinheiro para casa, nada nos prepara para que isso seja mesmo verdade. E no entanto as duas estruturas estão a devolver ao espectador a oportunidade de controlarem o espectáculo. Afinal, tudo depende do preço pago. É essa a liberdade do espectador. Quem a quiser comprar ganha o jogo. Entre a vergonha do dinheiro e a tentação, há sempre um espectador que compra a liberdade de todos. Mesmo que no final pergunte se era mesmo a sério.
Em Sobre a mesa a faca há uma verdade indiscutível: o teatro por ser um lugar de reflexão e crescimento tem que ser um lugar de prazer. E tanto o Cão Solteiro como o Teatro Praga são obrigados a um confronto de prazeres no palco. Podemos sentir que cada uma estruturas ocupa o palco de maneira diferente. O Cão Solteiro num canto, com Marcello Urgeghe interessado em construir um castelo com caixotes e arquivadores e Paula Sá Nogueira a ler textos e a beber vinho. O Teatro Praga mais espalhado, podendo até ser considerado que, por jogarem em casa, estão mais à vontade. Contudo, todos os actores se mexem pouco, à excepção do momento em que rompem em festa (poderia dizer-se dionísiaca, mas está mais para a Factory e as suas falsidades). Ocupam um espaço próprio, poucas vezes invadido, quase interior. Propriedade privada essa que se relaciona com os discursos que dizem e as referências que partilham. Na amálgama de nomes, datas, lugares, frases, citações e memórias existe o profundo abismo: até onde se vai com tudo isto?
E daí nasce o desconforto. Este espectáculo é, aliás, profundamente desconfortável. Quer pela sua duração (se fosse uma entrevista seria uma não editada), quer pela abstração a que se supõe expor. Exemplo disso é o quadro de Sá Nogueira que se apresenta num dos cantos do armazém e cuja distância da plateia não permite identificar o que está retratado. Quando Paula Sá Nogueira o vira, percebemos que estava ao contrário e a plateia respira (literalmente!) de alívio. Logo, o público é também um em busca de conforto. Não o encontra num objecto de conflictos, certamente.
A proposta do Cão Solteiro e do Teatro Praga é fruto de um esforço honesto de colaboração e partilha artística com tudo o que isso representa de cedências, trocas, nascimento de ideias, recusas e ausências. Podemos até considerar que com Sobre a mesa a faca estamos perante um tipo de propostas que encontram pouco eco nos espectadores uma vez que procuram responder a dúvidas dos próprios criadores. Contudo, recusar-se a integração de uma proposta como esta que pela sua dificuldade, estranheza, brutalidade, violência e dúvida considera, também, a hipótese de falhar é não perceber que a construção de um tecido artístico e cultural se faz de experiências cujos efeitos não têm (não podem) ser imediatos, sob prejuízo de serem mal avaliados. E isto tanto vale para as companhias, como para o público e especialistas.
Sobre a mesa a faca é, no fundo, a exposição sem artifícios de realidades verdadeiras e falsas e a demonstração cabal de que os processos criativos servem para pensar a razão de ser dos objectos. No caso concreto, sabe-se que os frutos se recolherão mais tarde. E cada uma das partes saberá escolher os melhores.
Sobre a mesa a faca co.criação: cão solteiro + teatro praga | interpretação: André e. Teodósio, Carlos Alves, Marcello Urgeghe, Paula Sá Nogueira, Pedro Penim e Sofia Ferrão | apoio à dramaturgia: Manuela Correia | figurinos: Mariana Sá Nogueira | cenografia: Nuno Carinhas | execução de figurinos: Teresa Louro, Palmira Abranches e Natália Ferreira | produção e promoção: Pedro Pires | desenho: Mariana Sá Nogueira | design gráfico: Triplinfinito
Sobre o espectáculo neste blog:
Zapping teatral ou a teatralização dos media?, um comentário do Dr. Daniel do Carmo Francisco, especialista em Teoria da Comunicação.
Outros espectáculos do Teatro Praga analisados neste blog:
Private Lives, 2003
Título, 2004 (1ª parte, 2ª parte)
Análise a Sobre a mesa a faca, co-criação Cão Solteiro/Teatro Praga
15 Fevereiro a 05 Março
Hospital Miguel Bombarda, Lisboa
Sobre a mesa a faca é um espectáculo-enganador. Nos seus propósitos, nas suas premissas, na sua recepção, naquilo que condiciona o que vêm a seguir. Mas não se trata de um espectáculo-logro, de um engano fútil ou de um objecto desonesto. Em Sobre a mesa a faca o que parece, não é. Porque este é um espectáculo-questão: "o que me dizes tu e que te respondo eu?". É, por isso, uma proposta suspensa na resposta do outro e crente nas expectativas desenvolvidas antes dessa resposta. Mesmo que se fale sozinho e aquilo que o outro nos tiver para dizer pareça estranho. Naturalmente este tipo de propostas pressupõe a recusa quer dos criadores, quer do público.
O espectáculo parece aliás desafiar a definição de co-produção, uma vez que procura pensar a razão pela qual se juntam dois projectos artísticos. Se não existirem afinidades, para que serve a co-produção? Portanto, primeiro engano: Sobre a mesa a faca não é uma co-produção, é uma co-criação. E a necessidade de se perceber esta diferença não é um preciosismo, mas antes a procura de uma resposta à burocracia das instituições e aos pensamentos formatados. O espectáculo não responde assim a qualquer solicitação institucional mas antes a uma urgência que se prende com um pensar sobre o processo criativo de cada uma das companhias.
Fotografia Susana Paiva
Mas Sobre a mesa a faca comporta-se mais como um encontro e não tanto como uma proposta-finita. Com esta experiência, o Cão Solteiro e o Teatro Praga juntaram-se para uma co-criação cuja importância não residia tanto na construção de um objecto teatral, mas antes num colocar em perspectiva (e diálogo) um percurso artístico que primasse por um pensamento sobre o lugar do teatro e das artes performativas, da forma como as duas estruturas pensam o que fazem. Porque, precisamente, ambas as companhias regressarão ao seu universo pessoal, enriquecido agora com um discurso e uma reflexão exterior.
O espectáculo constrói-se em duas linhas paralelas, que inevitavelmente se tocarão: por um lado os criadores e, por outro, o público. O ponto de união é, obviamente o espectáculo. Mas isto não quer significar que se construa um terceiro objecto que responda pelas duas companhias. Essa terceira entidade que, no limite, pudesse dizer 'são os Praga à lá Cão' ou 'os Cães à lá Praga'. Mas isso não existe. Até mesmo de forma deliberada. Que sentido faria, de facto, a criação de um discurso comum (ou mimético) se o que se quer pensar é o discurso individual?
Sobre a mesa a faca cumpre, assim, aquilo que definiria como 'intra-espectáculos': propostas que pressupõem uma relação biofágica com o processo criativo e dependentes de uma relação particular com os espectadores. Ou seja, alimentam-se dele (e das componentes da estrutura teatral) para fazerem surgir uma nova proposta solicitando ao público uma proposta de conclusão.
É preciso notar que neste espectáculo nem tudo é dito em conjunto. Logo, nem tudo é verdade para os dois. E nem todos estão dispostos a ir tão longe. Eu quero... moi non plus, portanto. Sobre a mesa a faca é, efectivamente, 1 + 1 = 1 e 1. E parece aliás propor uma radicalização de discursos e recepções. Por isso, trata-se também de uma proposta que testa os limites da aceitação artística.
Teria sido, por isso, fascinante a criação e desenvolvimento de dois espectáculos: um feito pelo Teatro Praga e outro pelo Cão Solteiro. Ou, por limites de produção, disponibilizar duas bancadas: uma para o público-Cão e outra para o público-Praga. Porque, ainda que saibamos que as duas estruturas navegam no mesmo universo de públicos, esperam-se coisas diferentes de cada uma delas. E é nesse sentido que a recepção de Sobre a mesa a faca é condicionada. Porque esperamos ver um discurso super-comum. Alternativo, se quisermos.
Surge inevitavelmente a primeira das dúvidas para eventual descanso de quem vê: quem influenciou quem? Sabe-se à partida que as propostas das duas estruturas tratam da contaminação teatral. Podemos até considerar que o movimento das duas companhias é contrário: o Cão Solteiro parte dos textos para fora, enquanto o Teatro Praga parte do fora para dentro (texto incluído). No meio, Sobre a mesa a faca, uma proposta pura e formalmente teatral.
O espaço apresenta-se despojado e aberto a especulações, como aliás é prática comum, sobretudo do Teatro Praga. Desconhecemos (confundimo-nos) se o espectáculo já começou. Na bilheteira o público é convidado a deixar o preço do bilhete numa bandeja (5 € sem qualquer tipo de regalias e descontos). Os actores recebem o público com sorrisos e entre a preparação e o convívio observam o espectador. A luz é baixa, quase nocturna e, do outro lado do armazém (atravessando o "palco" coberto de um chão branco e recheado de cadeiras, sofás, um piano, algumas mesas e estantes) uma plateia de três filas de cadeiras antigas de teatro. Há uma aparente serenidade quer no público quer nos actores. Uma serenidade que se prende com uma expectativa e um necessário despojamento.
A dramaturgia de Sobre a mesa a faca consiste numa recolha de entrevistas às mais diversas pessoas dos mais vastos campos de acção (companhias incluídas) que, retiradas do seu contexto e confundidas no anonimato vão formando um diálogo entre si. Nesse sentido, somos tentados a identificar os actores (Marcello Urgeghe e Paula Sá Nogueira pelo Cão Solteiro, André e. Teodósio, Carlos Alves, Pedro Penim e Sofia Ferrão, pelo Teatro Praga) como personagens e a procurar perceber se o que dizem contribui para a definição/construção de personagens. Mas mesmo sendo teatral, Sobre a mesa a faca é uma proposta de destruição da personagem. Não por uma questão de descrença, mas porque o teatro não é (não pode ser) uma paragem de tempo na realidade. É uma continuação da realidade. São os próprios a afirmar: "uma obra não pode estar virada para o futuro, porque é sobre o aqui e o agora".
Fotografia Susana Paiva
Por isso, Sobre a mesa a faca é uma entrevista em si mesmo, também porque as entrevistas representam um discurso a dois, isolado da passagem do tempo e um espaço de reflexão. 'Incontrolado' e manipulado. Não é uma contradição, é uma questão de dialética. Da mesma forma que o espectáculo não tem uma narrativa, mas tem uma estrutura. 'Espectáculo-esqueleto', portanto.
È por isso que o espectáculo é uma reflexão sobre o processo criativo, apresentada sobre a forma de um pastiche de entrevistas diversas que vão construíndo um universo de referências que em última instância obriga o teatro a filtrar e a ultrapassar-se. Na mesma medida em que podemos considerar que o espectáculo interessa menos do que aparenta. Sobretudo para as companhias, uma vez que o objectivo era testar o confronto criativo. Que ele surja sob a forma de um bloqueio ou de uma epifania dependerá do que cada uma das companhias fizer a seguir. Sobre a mesa a faca é, portanto, um 'espectáculo-bolha'.
Com Sobre a mesa a faca, dizem querer "passar no crivo do que estamos a pensar no momento". Considerando que as entrevistas são, também elas, momentos de encenação entre quem faz e quem responde, procura-se transformar as entrevistas em conversas e devolver o lado humano e real que faz do teatro uma questão de presente. No fundo, dar um significado à efemeridade. Até mesmo uma utilidade. E, claramente, um sentido de verdade.
Este limite de verdade é atingido com a recriação da única entrevista identificada. No caso à ginasta olímpica Nadia Comaneci. Sofia Ferrão (Nadia Comaneci) e Pedro Penim (o entrevistador), propõe uma leitura dramatúrgica, ficcionalizando a entrevista. Deixa portanto de se tratar de uma entrevista, para passar a ser uma coisa real. Exactamente aquilo que o Teatro Praga tinha proposto num dos momentos de TÍTULO, ao convidar dois elementos do público a recriarem uma entrevista sobre o movimento Dogma 95 entre Lars von Trier e Peter Ovid Knudsen. Mas se o "público falso" de TÍTULO se limitava a lê-la não reflectindo sobre a verdade no cinema e no teatro, os actores de Sobre a mesa a faca querem fazer do confronto entre Comaneci e o entrevistador um momento o mais verdadeiro possível. Parece que dizem: "era isto a que nos propunhamos".A entrevista pelo seu grau de exposição pessoal sugere várias implicações na forma como podemos olhar os outros, logo, o actor.
Na mesma linha de verdade encontramos o momento (não me parecem que existam cenas neste espectáculo) em que Paula Sá Nogueira se recusa a fazer uma entrevista a Carlos Alves, onde este recria uma ninfomaníaca. O momento tem tanto de verdadeiro quanto maior for o conhecimento pessoal que tivermos da actriz. Na verdade, acreditamos que Paula Sá Nogueira-actriz se esteja a recusar a prosseguir com a entrevista. Mas isso seria considerar que em Sobre a mesa a faca há espaço para a improvisação. E não há. Não há sobretudo porque as entrevistas são momentos falsos e nos quais cada uma das partes dá exactamente aquilo que quer dar. Sem lhe ser pedido mais. É por isso que Sobre a mesa a faca é profundamente teatral. Porque os actores se propõem a um duplo jogo de representação.
Só assim se compreende que Pedro Penim, o único que se identifica dando o nome, número de telemóvel e e-mail, seja apanhado por Paula Sá Nogueira e depois Carlos Alves que lhe batem com um jornal, sem palavras e aparente explicação. Mas o que fazem não é mais que rejeitar uma aproximação entre personagem e actor.
O espectáculo é um desafio ao presente disfarçado de jogo teatral. Um jogo violento, descarnado e último, na medida em que uma recusa de pensamento implica a anulação do trabalho desenvolvido até agora. Por isso é tão importante o insulto ao público. Seja pelo desprezo com que recebem o pagamento do bilhete, seja no discurso com que Pedro Penim introduz o espectáculo, depois de longos minutos em que os actores se dispuseram nos seus espaços privados, quase inconscientes de que havia um público. Não estaremos certamente longe de Peter Handke («Publikumsbeschimpfung», 1965), mas na verdade o que os criadores propõe não é tanto o insulto gratuito mas o testar do conforto da plateia. É um teste de resistência para ganhar o espectador. É uma brincadeira para saber se, de facto, queremos estar ali. É uma forma de fazer o público entrar dentro de uma proposta que se quer questionada. E é, no fundo, um momento que permite não só a identificação do público (seja por recusa ou aceitação do insulto) como obriga o actor a ser inventivo na criação de formas de anulação do conforto que a plateia oferece.
Será por isso que podemos falar de zapping teatral. É que, na verdade, o conjunto de entrevistas acaba por formar uma imensa massa de informação que o público seleccionará consoante as suas próprias referências. Dizem: "o espectador é um colaborador na medida em que define os sentidos". Logo, construirá o seu próprio espectáculo. E a sua própria verdade. Mesmo que essa seja uma noção falsa, uma vez que num espectáculo que cede tão pouco como este, o espectador é um animal desconfiado.
Fotografia Susana Paiva
Quando Pedro Penim se aproxima da plateia para perguntar quem quer levar o dinheiro para casa, nada nos prepara para que isso seja mesmo verdade. E no entanto as duas estruturas estão a devolver ao espectador a oportunidade de controlarem o espectáculo. Afinal, tudo depende do preço pago. É essa a liberdade do espectador. Quem a quiser comprar ganha o jogo. Entre a vergonha do dinheiro e a tentação, há sempre um espectador que compra a liberdade de todos. Mesmo que no final pergunte se era mesmo a sério.
Em Sobre a mesa a faca há uma verdade indiscutível: o teatro por ser um lugar de reflexão e crescimento tem que ser um lugar de prazer. E tanto o Cão Solteiro como o Teatro Praga são obrigados a um confronto de prazeres no palco. Podemos sentir que cada uma estruturas ocupa o palco de maneira diferente. O Cão Solteiro num canto, com Marcello Urgeghe interessado em construir um castelo com caixotes e arquivadores e Paula Sá Nogueira a ler textos e a beber vinho. O Teatro Praga mais espalhado, podendo até ser considerado que, por jogarem em casa, estão mais à vontade. Contudo, todos os actores se mexem pouco, à excepção do momento em que rompem em festa (poderia dizer-se dionísiaca, mas está mais para a Factory e as suas falsidades). Ocupam um espaço próprio, poucas vezes invadido, quase interior. Propriedade privada essa que se relaciona com os discursos que dizem e as referências que partilham. Na amálgama de nomes, datas, lugares, frases, citações e memórias existe o profundo abismo: até onde se vai com tudo isto?
E daí nasce o desconforto. Este espectáculo é, aliás, profundamente desconfortável. Quer pela sua duração (se fosse uma entrevista seria uma não editada), quer pela abstração a que se supõe expor. Exemplo disso é o quadro de Sá Nogueira que se apresenta num dos cantos do armazém e cuja distância da plateia não permite identificar o que está retratado. Quando Paula Sá Nogueira o vira, percebemos que estava ao contrário e a plateia respira (literalmente!) de alívio. Logo, o público é também um em busca de conforto. Não o encontra num objecto de conflictos, certamente.
A proposta do Cão Solteiro e do Teatro Praga é fruto de um esforço honesto de colaboração e partilha artística com tudo o que isso representa de cedências, trocas, nascimento de ideias, recusas e ausências. Podemos até considerar que com Sobre a mesa a faca estamos perante um tipo de propostas que encontram pouco eco nos espectadores uma vez que procuram responder a dúvidas dos próprios criadores. Contudo, recusar-se a integração de uma proposta como esta que pela sua dificuldade, estranheza, brutalidade, violência e dúvida considera, também, a hipótese de falhar é não perceber que a construção de um tecido artístico e cultural se faz de experiências cujos efeitos não têm (não podem) ser imediatos, sob prejuízo de serem mal avaliados. E isto tanto vale para as companhias, como para o público e especialistas.
Sobre a mesa a faca é, no fundo, a exposição sem artifícios de realidades verdadeiras e falsas e a demonstração cabal de que os processos criativos servem para pensar a razão de ser dos objectos. No caso concreto, sabe-se que os frutos se recolherão mais tarde. E cada uma das partes saberá escolher os melhores.
Sobre a mesa a faca co.criação: cão solteiro + teatro praga | interpretação: André e. Teodósio, Carlos Alves, Marcello Urgeghe, Paula Sá Nogueira, Pedro Penim e Sofia Ferrão | apoio à dramaturgia: Manuela Correia | figurinos: Mariana Sá Nogueira | cenografia: Nuno Carinhas | execução de figurinos: Teresa Louro, Palmira Abranches e Natália Ferreira | produção e promoção: Pedro Pires | desenho: Mariana Sá Nogueira | design gráfico: Triplinfinito
Sobre o espectáculo neste blog:
Zapping teatral ou a teatralização dos media?, um comentário do Dr. Daniel do Carmo Francisco, especialista em Teoria da Comunicação.
Outros espectáculos do Teatro Praga analisados neste blog:
Private Lives, 2003
Título, 2004 (1ª parte, 2ª parte)
2 comentários:
Vocês pensam que temos tempo para ler tratados? Vejam se começam a escrever textos mais pequenos sobre os espectáculos. Senão acho que ninguem lê.
caro anónimo, algumas considerações:
1) não se trata de crítica, mas de análises... logo, de um discurso com o objecto que permira a sua contextualização, seja para o público, seja para os criadores
2)o facto de já não estar em cena permite libertar de pressões (digamos) publicitárias, qualquer texto
3) as análises no meu blog sempre foram extensas, e é por isso que são reconhecidas. temo até que no dia em que fizer análises curtas que ninguém perceba. acho aliás que uma das razões que traz as pessoas a este blog é encontrar espaço para dialogar com os objectos (mesmo que não comentem)
4) se n quiser ler o texto todo de uma vez, imprima e leia devagarinho. até porque as análises são para serem pensadas e não lidas à pressa.
obrigado
Enviar um comentário