domingo, novembro 28, 2004

Let's misbehave

Análise ao espectáculo Private Lives
Teatro Praga
6ª Mostra de teatro jovem
Teatro Taborda
24 Novembro 2004



Private Lives (PL) é um espectáculo afirmativo. Contudo, não definitivo, já que reafirma essas duas linhas estruturais do teatro feito pelo Teatro Praga (TP), sem as querer dar por terminadas. Por um lado o questionar do actor e da sua importância durante o espectáculo, no que isso assume de recusa do Método Stanislavskiano e quase se aproxima do conceito de übber-marionette de Gordon Craig (e PL é teatro de marionetas). Ou seja, a ideia de que a preparação do actor deve conter a simplificação e a precisão física. Portanto, a necessidade de testar o controlo sobre a cena, não para a personagem, mas para o actor. Em entrevista aquando da estreia, diziam: «O teatro é um combate de forças [...] a personagem é uma mentira: o actor não vai fazer coisas que não sejam ele. Para quê dizer que é outra coisa?» (1).

E é nesta medida que PL pode reclamar uma certa herança nihilista, essa morte de Deus (não o Criador, mas o Deus-teatro, Diónisos). O actor depois do resto, o que é? Depois de se ter preparado, que pode receber de novo? O actor, sozinho, com a sua bagagem, faz o quê com ela? Deixar, portanto, o acaso contaminar a representação: «É trágico o actor ter que lidar com aquilo que não está nas suas mãos», dizem (2).

A outra linha estrutural (que atravessava já espectáculos como La Ronde ou Um mês no Campo, mas que se impôs definitivamente em Título) é assumir a contaminação da convenção teatral por si mesma, num processo biofágico que não só procura provocar um re-nascimento como testar os limites do que é a norma. Assim, "que espectáculo é que se está aqui a fazer afinal? Para onde é que está a ir o espectáculo? Onde é que ele está? Para onde foi a personagem? Estou a ser?" (3). Utilizando um texto perfeitamente mecânico e de difícil ultrapassagem, o TP reutiliza as formas teóricas nietzschianas («Não há factos, apenas interpretações» (4)) para conceber uma estrutura dramatúrgica que mais do que incorporar o texto de Noël Coward, antes o utiliza naquilo que lhes convêm. Daí se poder reagir epidermicamente à confissão de que tiveram uma má relação com o texto (5). Essa "má relação" é, sobretudo uma resposta directa à concepção de Herbert Blau (6) quanto à representação dos clássicos que, no caso do TP não é tanto uma leitura contemporânea mas antes um "virar do avesso" dos textos. Ou seja, "fará sentido a apropriação de textos para testar as nossas teorias"?



Private Lives, o texto, não é, de forma alguma, um texto assim tão original. Só que é brilhante. Afinal, relações amorosas que começam e acabam e voltam a começar sempre existiram. Enganos, descuidos, trocas, suposições, crenças, dúvidas e suspensões fazem parte do acto amoroso e se não servirem para mudar, pelo menos servem para amar mais "sabiamente". Dizem. Portanto, o texto aqui pouco importa, mas antes o que se faz com ele.

E o que nos encanta em PL é a violência com que nos é apresentado. Um registo feroz e masoquista, que não deixa qualquer convicção intacta. Antes baralha o que já tínhamos por certo. E se...? E ainda assim, sabe respeitar as regras. PL é um divertimento em estado puro. Daqueles divertimentos que só quando terminam é que nos apercebemos do que estava em causa. Como os amores perdidos, provavelmente.

São perfeitamente claras as linhas traçadas na construção do espectáculo e a forma como se vão apresentar ao espectador. A introdução ao espectáculo começa não com a explicação da mecânica do jogo que se seguirá, mas com uma plateia invadida pela música estridente que sai do palco e pelos actores a olharem para os espectadores, em pose descontraída. Como se fossem espectadores. Também o serão. Alguns deles, pelo menos. O facto dos intervenientes/actores aceitarem expôr-se à chegada dos intervenientes/espectadores permite elevar a um enorme expoente a noção de improviso tão cara ao TP. Ou seja, o improviso é útil quando se sabem os limites a que se pode chegar. Caso contrário já é outro espectáculo. E o espectador veio ver PL.

PL desenvolve-se então a partir de um jogo de crença e acaso. Os actores propõem ao espectador determinar o que irão ver (7), partilhando assim a responsabilidade do sucedido. É uma forma de derrubar a 4ª parede, essa entidade castradora/protectora da relação espectáculo/espectador. No fundo, fazer depender o espectáculo de um esforço colectivo implicando todos os agentes no resultado final. Neste aparente aniquilar das relações de força que se estabelecem num objecto teatral, subsiste, contudo, o respeito pelo lugar de cada uma das partes. Esta "falsa relação aberta" com o público não implica a inexistência de definições. Estamos, portanto, longe de Título, em que os espectadores poderiam, de facto, "perverter" o espectáculo (ainda que controlados pelas regras dos criadores). E é nesta aparente cláusula irrevogável que assenta a desconfiança de alguns espectadores. Terão sido eles responsáveis pela escolha dos actores, ou no frenesim do lançamento dos dados, o TP aplicou um truque de ilusionismo? A verdade é que a dúvida permanece, mas a vontade de ser um "jogo honesto" é maior.

Procedem, portanto, a uma segunda anulação do espaço teatral como território sagrado para os "escolhidos". A primeira a ocorrer quando o espectador entra na sala de espectáculos e se depara com o ambiente de festa, o segundo, no momento da escolha. A partir daí, as escolhas/reacções ao acaso cabem aos actores. Afinal, são eles que precisam provar a sua tese.

PL insere-se numa linha de propostas a que gostaria de chamar intra-espectáculos. Ou seja, exercícios teatrais cujo efeito prático resulta primeiro para quem faz, sendo que para a aplicação desse efeito necessitam da manipulação de todos os elementos convencionais: espaço, actores, texto, público. E ainda espectáculos que constantemente apelam ao sentido de memória do espectador, convidado a identificar os sinais de contacto entre o passado e o presente (até a adivinhar o futuro). Este "baralhar e voltar a dar" produz efeitos que poderão não se sentir de forma imediata no espectáculo a que se assiste, mas certamente farão parte da estrutura dos seguintes. Nessa medida, PL pode ser considerado uma espécie de 1º parte de uma trilogia sobre a contaminação teatral, que teve o seu climax em Título e o opus final no espectáculo a apresentar em 2005, baseado na obra de Agatha Christie (8). Talvez não sejam visíveis (ou estejam assumidas) estas linhas no processo de construção de um espectáculo, mas estão na sua génese e influenciá-lo-ão.

«Qual é o valor dos valores», então? A pergunta lançada em forma de repto no início da apresentação do espectáculo, aposta na consciencialização do acaso como parte integrante do ser humano. E assim, a escolha dos actores (três homens e três mulheres) sujeita-se a um exercício de adivinhação. A acreditar (como se acredita) que o acaso tomou conta do espectáculo, a distribuição na noite em que se assistiu foi a seguinte: Actor 3 (Pedro Penim): Elliot, Actriz 1 (Sofia Ferrão): Amanda, Actor 2 (André Teodósio): Victor, Actriz 3 (Cláudia Jardim, em substituição de Paula Diogo): Sybill. Aos outros dois actores (Carlos Alves, Actor 1 e Patrícia da Silva, Actriz 2) são reservados papéis meta-teatrais.



O pressuposto é simples e nisso Noël Coward é exímio: Elliot e Amanda não podem viver um com o outro/um sem o outro, estão em segundas núpcias com Sybill e Victor ("esses pinos de bowling que só servem para serem derrubados", como definiu o autor) mas inevitavelmente cruzam-se na 1ª noite e decidem voltar a tentar a sorte. Sybill e Victor conhecem-se, apaixonam-se, confrontam os noivos e seguem o mesmo destino. Tão simples como o amor. Tão difícil como as certezas. O resto o TP não mostra.

Desta comédia tão fatal como o destino, o TP concebe um espectáculo teórico sobre a convenção teatral e os limites da sua aplicação. Afnal, a comédia é a tragédia com tempo, Woody Allen dixit. Assim, depois da apresentação das regras do jogo (que logo ali se finda), segue-se o 1º acto tout court num palco que remete ainda para Brecht e a cena vazia, com apontamentos de cenário a fazer as vezes de arquitectura teatral (e nesse aspecto, a utilização do palco aberto, sem cortinas ou pernas e uma iluminação a deixar o público completamente exposto pemite leituras óbvias sobre a dimensão do que se discute: o teatro acontece onde?) e uma representação acelerada, como se de um combate de boxe em cima de brasas se tratasse. Os pares vão alternando numa aparente improvisação, estando os actores sujeitos à avaliação dos seus colegas. Todos se expõem.

Contudo, esta abordagem ao texto de Noël Coward é aplicada através de um sistema de acção/reacção baseado na confrontação do outro através de um impasse emocional. A contra-cena não sabe em que registo será apresentada a sua deixa, o que a obriga a assimilar o acaso e fazer algo mais que improvisão. Não se trata, portanto, de reagir "na mesma moeda" (que rapidamente poderia levar o espectáculo para os limites do absurdo), mas antes construir no momento a emoção própria do espectáculo. Teatro ready-made, portanto.

Neste jogo entre a «vontade que ordena e a vontade que obedece», o TP parece obedecer a dois critérios: anula o aparente anacronismo que se poderia criar com a apresentação de um texto cheio de códigos morais, signos e referências datadas e a técnica em que é apresentado, e desenvolve ainda um artifício que aproxima PL de qualquer coisa ao nível do cinematográfico, já que se crêem mais nos acasos fílmicos que nos da vida. Este desmantelamento da cena e da convenção teatral permite-lhes investigar a fundo o que há de verdadeiro na interpretação que possa justificar a utilização deste texto.

E a justificação surge no 2º acto quando o texto é interrompido por leituras de outros textos (desde citações filosóficas ao «Manual de Civilidade para Meninas»), feitas por Patrícia da Silva. Se já durante o 1º acto algumas punchlines eram povoadas por excertos musicais escolhidos por Carlos Alves, o significado de tais acções tomam verdadeiro sentido com esta aplicação do conceito de book-crossing. A entrada das músicas e das leituras podem até funcionar como realidade paralelas. Uma espécie de exposição dos sub-conscientes das personagens. A música perfeita, a frase perfeita, a razão que não se sabe explicar mas que as fez agir de determinada forma. Ou seja, o acaso afinal pode ser a própria personagem. Por outro lado, ao sobrepor o teatro com a literatura e a música, o TP testa a finitude das artes. Afinal, quer o livro quer a música são artes mortas, que dependem totalmente do leitor/ouvinte para funcionarem. E são, sobretudo, unilaterais. O teatro (pelo menos aquele em que o TP parece acreditar) depende do que o público estiver disposto a dar.

E é neste momento que a dimensão trágica de PL toma forma. De acordo com a definição aristotélica de tragédia, a representação da violência deveria ser feita longe do olhar do espectador, de forma a provocar o pensamento e a reflexão. Levando mais longe (na verdade "cuspindo" sobre essa reflexão), o TP rebenta com a convenção teatral, destrói o texto (na verdade, recusa-o) e assume a vitória dos agentes do acaso. Ou seja, ao longo da representação (que funcionou a dois níveis: a do texto propriamente dito e a forma como foi feito) fomos sendo introduzidos a diversas formas de contaminação do acaso no quotidiano. Fosse através de livros, músicas, conceitos, gestos, frases, intenções ou ausências. A partir de agora assiste-se à materialização do culto dionísico. Nietzsche, de novo. Já não existem actores e as personagens foram abandonadas à sua sorte (como se o TP dissesse: "resolvam-se se quiserem, nós já temos o que precisamos"). Aliás, a noção de tragédia estava já subjacente ao longo do texto. Amanda afirma: «Vamos pagar bem caro no futuro». Elliot suspira: «Vamos ser superficiais». Utiliza-se aqui a metáfora bacantiana para assumir que estivemos sempre a ser manipulados por agentes do acaso. E que o delírio é um estado tão próximo da consciência que deve ser utilizado para perceber melhor o racional. Daí ter dito que PL é teatro de marionetas. Não só as personagens, mas também os actores que se deixam invadir pela presença dos outros. Da inocência característica dos cartoons e dos fantoches, alia-se a sapiência dos que são eternos. Marionetas-deuses, portanto. Mas com corpo de humanos. Porque a estes é permitido errar.

Como no amor aliás.


(1) Carlos Alves citado in Vidas Privadas, Joana Gorjão Henriques, Suplemento Y do jornal PÚBLICO, 01 Agosto 2003, p.11
(2) Idem
(3) Pedro Penim in A responsabilidade máxima do actor, entrevista a Mónica Guerreiro, Maria Helena Serôdio, João Carneiro, Sinais de Cena n.º1, Junho 2004, Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, p. 52
(4) Friedrich Nietzsche in Nachlass
(5) In Vidas Privadas, idem
(6) Herbert Blau, Theatrer: A Manifesto, New York, 1964
(7) Na altura da estreia, o jogo começava na compra do bilhete, podendo o espectador lançar os dados e pagar entre 2 a 12 €.
(8) Este espectáculo incluirá um actor escolhido por audições que decorreram dentro do espectáculo Título.



Outros espectáculos do Teatro Praga analisados neste blog:

Título (1ª parte, 2ª parte)