terça-feira, agosto 24, 2004

Espelho deformado (1ª parte)

Análise ao espectáculo TÍTULO do Teatro Praga
Lisboa, Hospital Miguel Bombarda
18 Agosto 2004, 21h30
“público verdadeiro”



Eles são os primeiros a dizê-lo: o espectáculo ou é «puramente formal, desprovido de sentido» e «nada nos diga sobre o mundo» ou é «essencial tal como as tautologias o são no domínio da lógica». Ou seja, mais do que parecer verdadeiro ou falso fica na mão dos espectadores envolverem-se com o espectáculo. Ou melhor, implicarem-se ou não no espectáculo. No fundo, levar mais longe a premissa de Cocteau «é preciso uma certa dose de imaginação e inocência para o que se segue».

Para levarem a cabo esta reflexão, os criadores propõe ao público uma participação activa no desenvolvimento do espectáculo e avisam que «cada lugar escolhido, cada ângulo de visão, cada movimento accionado e cada palavra proferida estão sujeitas a um carimbo taxativo de verdadeiro e falso». Conduzem, para isso, o público a dois lugares: um dentro do espaço cénico para o qual são encaminhados os que optam por serem “público falso” (já que isso implica a entrada gratuita no espectáculo a troco da celebração de um contrato onde ficam à disposição dos criadores) e uma plateia ordeira, às escuras e com direito a cortina, tal como num teatro convencional, para o “público verdadeiro” a funcionar como «pano de fundo». O objectivo é «dar provas inequívocas da verdade num terreno minado de mentiras».

Supostamente, o espectáculo começa quando a cortina que separa a plateia “verdadeira” do espaço cénico é erguida. Supostamente, porque somos avisados que o espectáculo começou há 33 minutos e 39 segundos. E então será necessário voltarmos ao início.

Na verdade, o espectáculo que já começou não é outro senão a representação da peça «A Menina Júlia» de August Strindberg, que já decorria quando chegámos. Será tarde demais para a acompanharmos? Um novo aviso: «não foi para esta peça que se sentaram aí». Descansados, podemos assistir ao conjunto das acções sem isolarmos um ou outro aspecto. Ou seja, a multiplicidade de acontecimentos deve ser vista como um só acontecimento. Esta noção só está disponível para o “público verdadeiro”.

A utilização desta peça de August Strindberg funciona para o Teatro Praga como «um contraponto dos momentos reais» que o resto do espectáculo quer dar conta. Essas «peças falsas» levam-nos a questionar a capacidade de convocar coisas reais num espaço teatral. Até onde é a convenção teatral mais forte que a realidade? Por exemplo: podemos imaginar que o frango que os “terroristas” (os outros criadores) lançam sobre os actores é um prenúncio da morte do pássaro de Júlia, e estes “terroristas” serem uma alusão ao sub-texto demoníaco que a levará ao suicídio? Mas eis que podemos estar no plano da falsidade e não passar de um frango assado normal preso por fios entre actores a fingirem-se concentrados numa representação de «A Menina Júlia».

Mas vamos por partes:

a) «A Menina Júlia»

Há quatro momentos em que somos alertados para a existência de um “falso-teatro-verdadeiro”:

1) quando entramos – mas não sabemos do que se trata;

2) quando somos informados que a peça já começou – mas a primeira coisa a pensar é que a peça que começou não é a que está a ser representada ao fundo, mas aquela em que tomamos parte;

3) quando os “terroristas” (os outros criadores) a invadem – o que propõe duas leituras:

i. uma dentro da peça (que representarão aqueles “terroristas”?);

ii. outra fora da peça (assente na ideia de que aquela representação não vive isolada do conjunto que se chama TÍTULO )

4) Quando é destacado do conjunto do dispositivo e se fazsilêncio para se ouvirem os diálogos. Curiosamente o momento escolhido para ser destacado é aquele em que a peça «A Menina Júlia» retoma o seu sentido simbolista, e as personagens abandonam o realismo que firmavam desde o início (o início que não vimos).

b) O cinema é sempre mais verdadeiro que o teatro

No texto de apresentação de TÍTULO, os Praga escrevem que o teatro é «o espaço da falsidade por excelência que, em regra, se situa nos antípodas da percepção e do entendimento hiper-realista do cinema», (da ideia de real que os espectadores têm). Ou seja, procuram reflectir o efeito "bomba-relógio" que é o teatro ao contrário da depuração que é o cinema. Portanto, de um lado temos uma emoção em bruto, falseada, irrealista, encenada e do outro uma emoção vintage. Será por isso que nos envolvemos mais com um filme que com uma peça de teatro?

Mesmo que TÍTULO não fale de realidades «porque estas são subjectivas», este é um «espectáculo com intervalos (o mais possível) de verdade». E esta verdade acontece porque se trata de um teatro em directo. Significando isso que aplica técnicas que jogam com as noções individuais de verdadeiro e falso. Tudo depende da interpretação de cada um.

O colectivo dá como exemplo máximo o movimento Dogma 95 e apresenta, tout court , uma entrevista de Lars von Trier ao crítico Peter Ovid Knudsen, na altura da estreia de "Os Idiotas". A concepção do realizador, no que respeita ao realismo, considera fundamental a tomada de opções ao vivo através de um dispositivo dramatúrgico informal e menos de uma formalidade que condicione as emoções. O resultado fica à vista. O teatro, se não quiser anular a sua condição de espelho da sociedade deverá perceber a fundo a implicação destas questões.
Por isso, a relação entre Strindberg e Lars von Trier não é inocente e muito menos superficial e é essa a escolha dos criadores de TÍTULO.

c) a audição

Uma das «peças falsas» de TÍTULO é uma audição verdadeira a actores para um espectáculo da companhia a decorrer em 2005 na Culturgest. O texto utilizado para essa audição é de uma outra peça verdadeira já feita pelo Teatro Praga em 2002, "Um mês no campo" do russo Turgueniev. Ao candidato - dois por noite - é dado a escolher um papel de uma determinada cena que efectuará com uma das actrizes da companhia.

A coisa é séria e profissional. Não se trata de um jogo, de um gag, de uma brincadeira ou de um momento falso. É o momento mais dramático do espectáculo já que o(s) candidato(s) é o único a ser avaliado sem rede e de forma instantânea. Trata-se de uma demonstração violenta e catártica de um processo de trabalho descarnado de emoções. É de facto uma audição feita em frente a um público que imediatamente a pode julgar sem saber ainda se daqui a um ano a pessoa foi escolhida. Esta "falsa audição" é, por isso, verdadeira já que implica uma escolha real e efectiva e mais tarde conduzirá a outra peça verdadeira. Só se pode chamar falsa a esta audição, porque, de facto, ela funciona como um elemento a ter em conta na dramaturgia do espectáculo TÍTULO. O candidato escolhido sentir-se-á a fazer parte de dois espectáculos: TÍTULO e o outro. Ou seja, é falso que seja uma "falsa audição" mas é verdadeiro que o seja. Os candidatos são o verdadeiro "público falso" de TÍTULO.

d) a participação do público

Entre a graça e o fascínio de fazer parte de um espectáculo está a ideia de que os criadores não controlam a cena se ela for entregue a terceiros desprevenidos. O público que, babado, se deixa seduzir pelo jogo/convite/proposta dos criadores não sabe que são a parte menos livre de um espectáculo, já que a partir do momento em que são disponibilizadas todas as liberdades, rapidamente se perdem as referências. "Se não quisessem que eu me comportasse como num teatro, não chamariam a isto 'teatro', certo?". Errado.

Ao "público falso" é solicitado que se disponham nas cadeiras de teatro verdadeiras colocadas ao longo das paredes laterais do espaço cénico. Na verdade, os criadores só necessitariam de um "voluntário", mas na noite de 18 de Agosto eram mais de 10. Quase tantos como os que fizeram de "público verdadeiro". A primeira questão que se coloca quando apresentado este dispositivo é saber se o "público falso" não será também "público verdadeiro". Sim e não.

Por um lado, como anteriormente referido, são agentes activos no desenvolvimento do espectáculo mas são-no sem a pressão dos que se inscreveram nas audições. E porque lhes falta o objectivo, perdem também a referência. Colocam-se à mercê dos criadores sem aprofundarem as implicações dessa participação.

A "perversidade" dos criadores de TÍTULO é subtil. Comportam-se como se nada fossem solicitar a esse "público falso" deixando-os suspensos na sua apreensão. O dispositivo criado permite o abandono total das convenções teatrais. Mas sabe-se que tal indicação leva mais à inibição que à real mistura entre objecto teatral e objecto quotidiano. Se no quotidiano não acontecer nada, não nos importamos. Se no teatro não acontecer nada estamos a perverter a noção de teatro. É suposto acontecer alguma coisa e essa coisa não pode ser quotidiana, já que quando o é se torna falsa, logo teatro. Ou seja, TÍTULO é "teatro dentro do teatro" não por causa da representação de «A Menina Júlia» mas pela noção que temos de teatro.

Para o "público verdadeiro" o espectáculo TÍTULO funciona como um todo. Nesse todo, sujeita-se à apreciação o "público falso" que procura uma naturalidade que não tem. E não a tem porque se obriga a ela. Ou seja, ao lhe serem dadas condições para fazer avançar o espectáculo apercebe-se que não sabe que diferenças entre "verdadeiro" e "falso" estão em jogo e aposta na artificialidade. O "público falso" sente que se não reagir o espectáculo não acontece. O que seria um falso momento quebra-se já que trocaram de lugar com os actores, que não se mostram disponíveis para ajudar.
Como se o pudessem prever, os criadores de TÍTULO seleccionam dois "falsos" para um jogo de crença em que subvertem as questões-matrizes da falsidade: "Se pudesse mudar alguma coisa no mundo, o que seria?" e "O que é mais importante para si?". Como em qualquer jogo de ilusão, as respostas (da Miss Universo ao Presidente da NATO) são invariavelmente de plástico: "Acabar com a guerra" e "Ser feliz". Para uma pergunta falsa, resposta duplamente falsa. E de plástico. O "público falso", consciente ou não, permite assim a continuação da farsa. Torna-se cúmplice e acredita ter enganado os autores do espectáculo.

O que este momento de verdade (o mais verdadeiro de todo o espectáculo) dá conta é do jogo entre verdade e mentira no qual assenta TÍTULO, já que a diferença assenta na convicção com que são feitas as afirmações. Ao fazerem acreditar que o espectáculo depende do que o "público falso" está disposto a fazer, criam a ilusão de pertença e de partilha. Ora, os autores de TÍTULO sabem que são as suas noções que estão em jogo, não as do público "falso" ou "verdadeiro". Serão eles a evoluir e não o público, já que este crê ter encontrado a chave que lhe permite compreender a dimensão abtracta do espectáculo. A chave não existe porque não existe fechadura. Não se está à procura de uma resposta certa. Está a levar-se mais longe (a «esticar a corda») aos conceitos e não a criar novos conceitos. Esse será um dos objectivos da arte: obrigar a novas leituras a partir dos mesmos objectos.

E se houver parte mais apta a "ler" esta dimensão, será o "público verdadeiro", aqueles para quem o espectáculo todo está a ser feito.

TÍTULO não é, por isso, um espectáculo interactivo nem performático. Não é interactivo porque cumpre um programa pré-estabelecido com uma margem de segurança que lhe permite enquadrar as diversas cambiantes da prestação dos espectadores. O que quer que aconteça está controlado e previsto. E não é performático porque, precisamente, a performance implica um rasgar sem retorno dos conceitos. E os conceitos de TÍTULO querem-se moldáveis e não substituídos. «Substituir velhos deuses por falsos novos deuses como explica Arno Gruen [em Falsos Deuses] , significa uma libertação de 'submissões antigas' por 'autoridades novas'», escreve o Teatro Praga no flyer do espectáculo.

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