terça-feira, julho 19, 2005

Ocupar o coração - as críticas (VII)


Paris em Lisboa outra vez: A rosa e o machado
La Rose et la Hache
Odeon Thèâtre, França
Teatro da Trindade
12 Julho 2005
21h30

por Rui Pina Coelho

Que o Trindade se engalane para receber uma companhia parisiense e se despeça dela em clamorosa ovação, não é seguramente nenhuma novidade aliás, durante a primeira metade do século vinte foi até prática comum. Mas o que pode surpreender é que, desta vez, a ovação foi para uma encenação que à partida não teria nada de consensual.

A rosa e o machado título pedido emprestado ao ensaísta e aforista romeno Émile Cioran (1911- 1995) quando resume todo o teatro de Shakespeare como o encontro entre uma rosa e um machado é a revisitação de Georges Lavaudant ao Richard III ou l'horrible nuit d'un homme de guerre de Carmelo Bene (1937-2002), escrito em 1977 e publicado em 1979 [Cf. Machina Attorialle de Pedro Manuel]

Com efeito, Georges Lavaudant estreia em Dezembro de 1979 este Ricardo III no palco de Ponatière, em Echirolles, e, cinco anos mais tarde, em Avignon, numa encenação que lhe vai granjear a si próprio e a Ariel Garcia Valdès, uma reputação internacional. Em 2004, por ocasião da homenagem do Festival de Outono de Paris ao actor/ autor/ encenador/ cineasta italiano Carmelo Bene, o agora director do Odéon-Théâtre Lavaudant - recria, de novo com Valdès (que não representava há cerca de dez anos), o monstro de Bene/Shakespeare. E é esta encenação que chega agora a Lisboa.

A abordagem ao texto de Bene é forçosamente diferente, até porque já passaram cerca de vinte e cinco anos. Contudo, e de acordo com o encenador, o espírito é o mesmo. Assim, o que se estabelece aqui é um interessante jogo de fidelidades e traições, terreno legítimo da dramaturgia de Shakespeare, da ideia teatral de Bene e visto assim, do Richard III de Lavaudant/Valdés.

Carmelo Bene, que faz parte da mesma família estética de Artaud, Grotowsky, Kantor ou até mesmo de Bob Wilson, coloca as suas múltiplas valências artísticas ao serviço do teatro, ganhando, desde os anos 60, um lugar na vanguarda teatral europeia. A sua originalidade reside sobretudo no trabalho sobre a voz e corpo, com o intuito de «saisir et rendre en quelques phrases les motivations fondamentales dun auteur, bouleverser la rigiditédes textes en faisant basculer la pièce dans des valeurs imprévues, soustraire le sens au profit dune multiplication des espaces de la visualisation, travaillée elle-même par des fulgurances continues» (Mangararo 2003: 194). Os objectos artísticos que resultam destas concepções, são raramente consensuais, até porque têm muitas vezes o fito de chocar o gosto burguês pelo teatro de texto.

Estamos, contudo, longe de um teatro estritamente visual. O texto é também parte importante. Sobre o autor de Richard III, Bene afirma: «Shakespeare était auteur, acteur et chef de troupe. Dans sa vie lui-même a été un spectacle. A présent il est un texte. Il faut être un beau salaud pour lui refuser l'infidélité qui lui est due». O tão propagandeado (e tão próprio do teatro francês) respeito pelo texto é aqui metamorfoseado num respeito pela feitura de teatro, reclamando Bene a traição como a melhor maneira de servir Shakespeare hoje, tal como Lavaudant 2005 trai Lavaudant/ Bene 1979/1984.

Mesmo traindo o que há 25 anos fez, a encenação de Lavaudant é fiel aos princípios de Bene. Assim, o essencial das motivações da obra de Shakespeare está lá, embora somente em «algumas frases». O texto de Shakespeare é liberto das suas complexidades históricas, estando o ênfase desta dramaturgia na passagem do tempo e no efeito que este tem na dimensão monstruosa do Duque de Gloucester, que reinará como Ricardo III. Condensado, simplificado, tudo se torna ainda mais negro e denso e, esta advertência aos malefícios de líderes pouco escrupulosos, torna-se ainda mais ameaçadora. Contudo, o que nos parece é que os tempos não estão para metáforas, e num momento em que o teatro parece vir a ganhar espaço na res publica como um lugar de debate e denúncia, este Richard III de Lavaudant parece-nos demasiadamente enfeudado na sua própria linguagem.

Assistimos a um espectáculo feérico, eminentemente visual, de provocação aos sentidos. A iluminação - espaço onde Lavaudant prova, se preciso fosse, a sua mestria - é sublime. Ilumina estados de alma, ilumina uma ideia dramatúrgica de negritude, de inquietação interior, e ilumina também os delirantes quadros visuais que vão sendo apresentados como fragmentos de uma história maior, como bocados de imagens roubadas a uma mente (que pode ser) perturbada (e que é seguramente perturbante).

Os figurinos inscrevem-se neste mesmo quadro: o kitch mistura-se com o gótico e o barroco, em tudo desafiando o entendimento da obra como um contínuo, obrigando recorrentemente a uma análise fragmentária. A figura de Ricardo III écomposta por elementos clownescos e góticos, como se de um filme de terror saísse; Marguerite assemelha-se a um inquisidor espanhol, é uma dama-negra, assustadora, de voz seca e cortante; Elizabeth aparece como uma figura renascentista, de gola folhada; o Rei negro aparece na fragilidade de uma roupa interior e de uma capa, onde a sua tosse (patética) é o elemento estruturante.

O desenrolar da acção é frequentemente interrompido por momentos coreográficos (tais como as mulheres que atravessam várias vezes a cena, o par que dança, marcações soltas que respondem a estímulos sonoros...) que não parecem ter nenhuma relação com o resto de tão despropositados são. Instalam, é certo, um ritmo de atenção no espectador que contraria o esperado. Estabelecem, de facto, um contraste significativo entre diferentes momentos da acção, mas não contribuem em nada para a unicidade do espectáculo.

Toda esta espiral de loucura remete para a noção medieval de mundo às avessas, de subversão de valores, criando-se aqui um espaço visual que pode remeter, por exemplo, para uma criação de Hieronymus Bosch. Esta referência a um mundo às avessas e a este modo fársico, é sublinhada por uma característica muito vulgar neste tipo de teatro: o travestimento que neste espectáculo está presente na personagem feminina Marguerite interpretada por Georges Lavaudant.

Aquilo que parece ser (dizemos parece porque sentimos que o espectáculo cada vez que nos aproximamos dele com um olhar, escapa...) o registo que confere o tom geral desta abordagem a Richard III é o paródico. Paródia que se deixa sobretudo descobrir de duas maneiras: nas citações directas do texto de Shakespeare, e no uso da música. Assim, no primeiro caso, cada vez que as personagens usam a língua inglesa, citando ou fazendo alusão a Shakespeare, fazem-no de uma maneira risível, lembrando os vícios do chamado teatro declamado e das tiradas cabotinas dos grandes actores clássicos. Ainda dentro deste ponto, sempre que a complexidade da intriga de Shakespeare é referida, é feita de uma maneira paródica. Lembramo-nos da cena em que duas personagens fazem a contabilidade das mortes e assassinatos decorridos até esse ponto. A segunda maneira pela qual a paródia se manifesta é pelo uso da música. A música aqui vai desde um recorrente e saturante O sole mio, em som de fundo, até a temas de Stevie Wonder, pop italiana ou segmentos rock, sendo que os originais são descontextualizados e usados como um recurso de distanciação cómica.

Sendo a paródia, um traço estruturante daquilo que é geralmente entendido como o pós-modernismo, facilmente se pode inscrever este espectáculo numa estética pós-moderna. Contudo, assalta-nos uma pergunta: será lícito falar de pós-modernismo em 2004/05? É certo que se trata de uma reinvenção de uma encenação de 1979, mas, mesmo assim, estamos perante um original de 2004... Deste modo, hesitamos em trazer para aqui esta noção de pós-modernismo. E é por isto mesmo que esta encenação de Lavaudant nos soa anacrónica: apesar de todas as suas virtudes, parece-nos que o tom provocatório, de surpresa, de ruptura não pode acontecer, em 2005, desta maneira. A provocação que este Richard III encerra sofreu a erosão da passagem do tempo dos últimos vinte e cinco anos. E o que sobra dela é a alusão a uma revolução estética e uma devida homenagem a Carmelo Bene.



Referencia bibliográfica
MANGANARO, J. P., «BENE, Carmelo» in Michel Corvin, Dictionaire encyclopedique du théâtre. ParisLarousse, 2003.


Sobre o espectáculo neste blog:

Machina Acttorialle, por Pedro Manuel
Reacções do público

Outras críticas aos espectáculos do 22º Festival de Almada ver dossier OCUPAR O CORAÇÃO - O MELHOR ANJO NO 22º FESTIVAL DE ALMADA