Aproveitando o espectáculo La Rose et la Hache, apresentado pelo Odéon-Thèâtre no 22º Festival de Almada, publica-se uma curta apresentação biográfica do actor, encenador, dramaturgo e cineasta italiano que reescreveu Ricardo III, de Shakespeare, o texto que serve de base ao espectáculo de Lavaudant - Garcia Valdès, e que é desconhecido de grande parte do público e dos criadores teatrais portugueses: Carmelo Bene.
Machina Attoriale
por Pedro Manuel
Carmelo Bene nasceu em 1937 em Campi Salentina, na zona de Pouilles, no sul de Itália. Passou a infância num colégio religioso, rodeado de cerimónias e rituais que certamente tiveram uma influência determinante naquilo que Carmelo Bene experimentará no teatro. Entra no Conservatório de Roma aos 18 anos e desiste ao fim de alguns meses para se dedicar, em 1958, à encenação e ao trabalho de actor com Calígula de Camus. As suas primeiras criações incluem um recital de poemas de Maïakovski, que apresentará por diversas vezes até à sua versão final em 1982: Quatro Maneiras diversas de morrer em verso. O seu trabalho de questionamento teatral começa a ser inspirado por Marlowe e pelo Hamlet de Shakespeare, acontecimento cénico onde o actor demiúrgico, ou artifex, se opõe ao autor num corpo a corpo constante. Em vez de apresentar o texto integral, Bene apresenta os seus elementos essenciais, procurando imediatismo e fulgurância (como Antonin Artaud) num espaço visual e sonoro que multiplica as sensações e perturba a linearidade. Carmelo Bene teve um papel primordial na renovação do teatro italiano depois de 1958. As suas peças mudaram o panorama teatral ao nível do trabalho do actor e da encenação: variação contínua da voz (directa, através do microfone e em playback), novas utilizações das cores e do desenho de luz, invenção de uma unidade entre o gesto e o texto, ou pela importância das indicações cénicas interiores das peças, que as multiplicam e alargam.
A partir de 1967, afasta-se do teatro e filma Hermitage, Nossa Senhora dos Turcos, D. Juan, Capricci, Salomé e Um Hamlet a menos, filmes que marcaram a sua época, assim como o seu teatro, pela utilização de velocidades cinematográficas (a Cinemateca Portuguesa apresentou algumas destas obras no ano da morte de Bene). Regressa ao teatro em 1974, abandonando definitivamente o cinema e apresenta, em Itália, os seus espectáculos mais importantes. Ataca os grandes clássicos, Shakespeare em primeiro lugar, do qual irá montar sucessivamente Romeu e Julieta (ao mesmo tempo que S.A.D.E.), Ricardo III, diferentes versões de Hamlet, Otelo e, por fim, Macbeth (Paris, 1983).
Em 1979, as Éditions de Minuit publicam Superpositions, que inclui o texto de Ricardo III, de Bene, e um comentário de Gilles Deleuze, Un manifeste de moins, num dos raros textos de Deleuze dedicados a análise teatral, onde desenvolve a ideia de variação contínua, aplicando sobre o teatro de Bene a perspectiva de uma literatura menor (que retomará com a análise de Kafka) e da redução ao mínimo, por «amputação e subtracção» (havia um exemplar no Instituto Franco-Português). É neste mesmo ano, e a partir de Ricardo III, que Lavaudant e Garcia-Valdès criam o espectáculo A Rosa e o Machado onde o título evoca um aforismo de E.M.Cioran para o qual o teatro de Shakespeare é como o «encontro de uma rosa e um machado»(em All gall is divided).
Uma outra peça que Carmelo Bene continuou a revisistar foi Pinóquio, ponto de partida de uma concepção do actor como machina attoriale (actor máquina? máquina actorial?), conceito que se mantém nas obras seguintes: Lorenzaccio, Le Dîner des dupes, Hamlet suite, Macbeth Horror suite (Odéon, 1996). A ideia da machina attoriale parece estar ligada com a noção de Übermarionette, de Gordon Craig, à qual a personagem popular de Pinóquio se aplica exemplarmente. O actor torna-se máquina, por um lado, através dos recursos mínimos e mecânicos:
«La differenza tra Artaud e Bene è la complementarità tra Pieno e Vuoto, se il primo teorizzava per eccesso, il secondo agiva per difetto, per sottrazione, se Artaud voleva un palcoscenico saturo e un attore posseduto da una trance cosmica, Bene svuotava la scena e riduceva il suo corpo a "macchina attoriale", inefficace e inefficiente, attraversata e scossa da significanti impersonali. Carmelo reclamava "un teatro senza spettacolo", una tragicomica ironia del niente. (Andrea Balzola)
Por outro lado, pela utilização de máquinas, desde a amplificação da voz no teatro à imagem em movimento no cinema:
«La macchina attoriale è la voce che attraverso la strumentazione fonica amplificata "si scorpora nell’alone del suono": la risonanza ("voce ascolto") arriva prima del suono ("voce udita"). È il dimettersi di qualsiasi "Io parlante": "la voce non è il dire, è l’ascolto". Il cinema è il prototipo della macchina attoriale, che è macchina antilinguaggio. È "cinema" contro il cinema; iconoclasta, irrelato, vocato all’invisibilità dettata dal doppio movimento della sottrazione-addizione dell’immagine.» (Cosetta G. Saba) (Cosetta G. Saba)
O culminar deste trabalho será a série Achilléide-Penthésilée que celebra à maneira de Artaud, a cerimónia fúnebre e derrisória do vazio do teatro. Carmelo Bene morreu em Roma a 16 de Março de 2002.
Machina Attoriale
por Pedro Manuel
Carmelo Bene nasceu em 1937 em Campi Salentina, na zona de Pouilles, no sul de Itália. Passou a infância num colégio religioso, rodeado de cerimónias e rituais que certamente tiveram uma influência determinante naquilo que Carmelo Bene experimentará no teatro. Entra no Conservatório de Roma aos 18 anos e desiste ao fim de alguns meses para se dedicar, em 1958, à encenação e ao trabalho de actor com Calígula de Camus. As suas primeiras criações incluem um recital de poemas de Maïakovski, que apresentará por diversas vezes até à sua versão final em 1982: Quatro Maneiras diversas de morrer em verso. O seu trabalho de questionamento teatral começa a ser inspirado por Marlowe e pelo Hamlet de Shakespeare, acontecimento cénico onde o actor demiúrgico, ou artifex, se opõe ao autor num corpo a corpo constante. Em vez de apresentar o texto integral, Bene apresenta os seus elementos essenciais, procurando imediatismo e fulgurância (como Antonin Artaud) num espaço visual e sonoro que multiplica as sensações e perturba a linearidade. Carmelo Bene teve um papel primordial na renovação do teatro italiano depois de 1958. As suas peças mudaram o panorama teatral ao nível do trabalho do actor e da encenação: variação contínua da voz (directa, através do microfone e em playback), novas utilizações das cores e do desenho de luz, invenção de uma unidade entre o gesto e o texto, ou pela importância das indicações cénicas interiores das peças, que as multiplicam e alargam.
A partir de 1967, afasta-se do teatro e filma Hermitage, Nossa Senhora dos Turcos, D. Juan, Capricci, Salomé e Um Hamlet a menos, filmes que marcaram a sua época, assim como o seu teatro, pela utilização de velocidades cinematográficas (a Cinemateca Portuguesa apresentou algumas destas obras no ano da morte de Bene). Regressa ao teatro em 1974, abandonando definitivamente o cinema e apresenta, em Itália, os seus espectáculos mais importantes. Ataca os grandes clássicos, Shakespeare em primeiro lugar, do qual irá montar sucessivamente Romeu e Julieta (ao mesmo tempo que S.A.D.E.), Ricardo III, diferentes versões de Hamlet, Otelo e, por fim, Macbeth (Paris, 1983).
Em 1979, as Éditions de Minuit publicam Superpositions, que inclui o texto de Ricardo III, de Bene, e um comentário de Gilles Deleuze, Un manifeste de moins, num dos raros textos de Deleuze dedicados a análise teatral, onde desenvolve a ideia de variação contínua, aplicando sobre o teatro de Bene a perspectiva de uma literatura menor (que retomará com a análise de Kafka) e da redução ao mínimo, por «amputação e subtracção» (havia um exemplar no Instituto Franco-Português). É neste mesmo ano, e a partir de Ricardo III, que Lavaudant e Garcia-Valdès criam o espectáculo A Rosa e o Machado onde o título evoca um aforismo de E.M.Cioran para o qual o teatro de Shakespeare é como o «encontro de uma rosa e um machado»(em All gall is divided).
Uma outra peça que Carmelo Bene continuou a revisistar foi Pinóquio, ponto de partida de uma concepção do actor como machina attoriale (actor máquina? máquina actorial?), conceito que se mantém nas obras seguintes: Lorenzaccio, Le Dîner des dupes, Hamlet suite, Macbeth Horror suite (Odéon, 1996). A ideia da machina attoriale parece estar ligada com a noção de Übermarionette, de Gordon Craig, à qual a personagem popular de Pinóquio se aplica exemplarmente. O actor torna-se máquina, por um lado, através dos recursos mínimos e mecânicos:
«La differenza tra Artaud e Bene è la complementarità tra Pieno e Vuoto, se il primo teorizzava per eccesso, il secondo agiva per difetto, per sottrazione, se Artaud voleva un palcoscenico saturo e un attore posseduto da una trance cosmica, Bene svuotava la scena e riduceva il suo corpo a "macchina attoriale", inefficace e inefficiente, attraversata e scossa da significanti impersonali. Carmelo reclamava "un teatro senza spettacolo", una tragicomica ironia del niente. (Andrea Balzola)
Por outro lado, pela utilização de máquinas, desde a amplificação da voz no teatro à imagem em movimento no cinema:
«La macchina attoriale è la voce che attraverso la strumentazione fonica amplificata "si scorpora nell’alone del suono": la risonanza ("voce ascolto") arriva prima del suono ("voce udita"). È il dimettersi di qualsiasi "Io parlante": "la voce non è il dire, è l’ascolto". Il cinema è il prototipo della macchina attoriale, che è macchina antilinguaggio. È "cinema" contro il cinema; iconoclasta, irrelato, vocato all’invisibilità dettata dal doppio movimento della sottrazione-addizione dell’immagine.» (Cosetta G. Saba) (Cosetta G. Saba)
O culminar deste trabalho será a série Achilléide-Penthésilée que celebra à maneira de Artaud, a cerimónia fúnebre e derrisória do vazio do teatro. Carmelo Bene morreu em Roma a 16 de Março de 2002.
La Rose et la Hache é apresentado hoje e amanhã às 21h30 no Teatro da Trindade, Lisboa.
Quinta feira, às 16h00, decorre, no salão nobre do Teatro da Trindade uma conversa com o encenador do espectáculo Georges Lavaudant, moderada pela crítica de teatro e ensaísta Maria Helena Serôdio.
Todas as informações sobre o 22º Festival de Almada podem ser consultadas aqui.
Ver dossier OCUPAR O CORAÇÃO - O MELHOR ANJO NO 22º FESTIVAL DE ALMADA
1 comentário:
Estava eu a procurar notícias sobre o Carmelo Bene e o seu UM HAMLET A MENOS, e acabei por chegar aqui. Gostei da matéria. Tenho uma pergunta/pedido: - Você, por ventura teria uma cópia deste texto (um hamlet a menos)? Em caso de resposta positiva, como eu poderia ter acesso? Fico, desde já grato pela vossa atenção.
Vavá Schön-Paulino.
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