terça-feira, dezembro 06, 2005

Problemas de espaço

Análise a Julieta – cartas fragmentárias a um amor perdido
de Mónica Calle
Pequeno Auditório da Culturgest, Lisboa
17 a 23 Novembro 2005


Opera-se em Julieta – cartas fragmentárias a um amor perdido, espectáculo de Mónica Calle, apresentado no Pequeno Auditório da Culturgest entre 17 e 23 de Novembro, um estranha deslocação do centro de acção (espaço como metáfora para uma dramaturgia sobre o fazer teatral) para um exercício de verosimilhança. Se o espectáculo não adianta muito ao discurso da encenadora, obriga a uma reflexão sobre o modo como se estruturam propostas carregadas de um imaginário, digamos, reconhecível e de recepção radical, que depois são transferidas para outros espaços, mais formais e menos permeáveis. O que, por isso mesmo, transforma este espectáculo numa espécie de matéria suspensa, entre espaços, tempos, intenções e programa teórico e estético. Se quisermos, inscrevendo-se numa “terra de ninguém”.

“Isolada” na Casa Conveniente, agora a ocupar uma antiga discoteca, mas antes instalada numa loja de artigos de pesca, Mónica Calle tem oferecido um percurso pautado pela secura do discurso, pelo estabelecimento de novas hierarquias cénicas (espaço, espectador, criador, dramaturgia, intérprete, espectáculo) ou pelo rasgar de convenções acerca do modo como pensar um processo criativo. Mas, sobretudo, apostada em construir um percurso onde a honestidade criativa tem mais a ver com a noção de continuidade, e menos com uma urgência performática. O teatro de Calle, que a própria já identificou como “o mais pobre possível”, não deve assim tanto à noção de Jerzy Grotowsky, mas mais a uma procura da essência de representar/projectar inquietações que são validadas pela forma como se apresentam. Razão pela qual os espectáculos por ela apresentados são, normalmente, alvo dos mais apaixonados discursos, sejam eles elogiosos ou depreciativos.

Não é a primeira vez que a encenadora transfere o “ambiente” do seu espaço para um outro lugar, digamos, institucional. Fê-lo no Centro Cultural de Belém (O Bar da meia-noite, 2002 e Esquina de uma rua, 2003), e até numa muito curiosa instalação no terreno agora ocupado pelo novo Teatro Municipal de Almada (A loucura da normalidade, 2001). Ali, ao ar livre e com os pés na terra, Calle construía nas paredes de ar, um novo teatro, o do seu espaço íntimo, onde a comunhão entre fazer e integrar-se na envolvente era potenciada. Teatro do espaço, portanto. E as três propostas ganharam com o regresso à casa de partida, sendo de destacar a elegância cénica e honestidade dramatúrgica de Esquina de uma rua, que inaugurou o novo espaço. Ou seja, verificamos que Calle sabe transportar o seu universo criativo para outros espaços, mais formais, criando imaginários próprios e conscientes da necessidade de ultrapassagem, procurando depois, no regresso à casa de partida, uma organização que equilibre forma, conteúdo e espaço.

Se insisto na importância do espaço no teatro de Mónica Calle, é porque este tem de facto um lugar de destaque, sendo a encenadora a única que alimenta, há anos, um discurso dependente do lugar de apresentação, radicando a Casa Conveniente no lugar de eternas memórias que tendem a contaminar todos os espectáculos nela apresentados. Sobretudo os que lá são acolhidos. Se observarmos outros exemplos geracionais, com as propostas de Lúcia Sigalho, por exemplo, verificamos que esta continua a tentar desenvolver uma poética do edifício da Casa dos Dias da Água, na Estefânia, integrando nesta os seus espectáculos e já não uma poética para os espectáculos, como acontecia quando estava no Armazém do Ferro (na Rua D. Luís I, onde hoje existe um fantasma de feira popular e parque de estacionamento).

Se falo em Lúcia Sigalho, e não em Luís Castro (que trabalha na Antiga Escola de Medicina Veterinária) ou João Garcia Miguel (que com o fim do Espaço Ginjal dissolveu a companhia Olho), é porque o teatro de Calle e Sigalho versam, em grande medida, sobre o feminino, sendo Sigalho mais feminista e Calle mais intimista. Uma e outra constroem narrativas de situação, na qual a mulher existe enquanto geradora/agregadora de espíritos. A mulher é o centro, porque é a vida. Porque, no fundo, é a casa. O ponto de onde se parte e ao qual sempre se regressa. Um ponto pessoal e íntimo. É nesse íntimo que se desenvolvem as propostas que a Casa Conveniente tem vindo a apresentar, e é esse íntimo feminino que encontramos no palco do Pequeno Auditório da Culturgest.

A proposta é aparentemente simples, como simples quer parecer o teatro desta encenadora. O texto do qual parte, Romeu e Julieta de Shakespeare, é atravessado por outros tantos autores, “cúmplices” do seu universo criativo: Ruy Belo, Stig Dagerman, Heiner Müller, Marguerite Duras, Baudelaire, Verlaine, Beckett, Emily Brontë ou Rimbaud. Vozes e dimensões que funcionam como fantasmas de outros espectáculos, num exercício teatral falhado e devedor da memória biográfica da companhia. O palco, coberto de um plástico transparente e protector serve de tela para actos mecanizados como seja o fazer cimento, cortar ferro, transportar madeiras, construir novos espaços no espaço. Pelo meio as actrizes, mais voz que corpo: a insegurança de Alexandra Gaspar, a quem cabem as deixas de Julieta, o envolvimento da voz rouca de Calle na escuridão da plateia, que envolve o espectador, ou o monocromatismo de Mónica Garnel, Ana Ribeiro e Rita Só numa constante fragmentação/uniformização da(s) personagem(ns).

Ao “sair” do espaço mutante da Casa Conveniente, mas não abandonando o método de composição (essa metáfora do espaço, a montagem de textos de terceiros a servirem a referida metáfora), Calle parece procurar uma transferência do seu discurso, que, numa primeira leitura passará sempre como tentativa de legitimação do mesmo. Ora, a suspensão a que me referia anteriormente, e a que dei o nome de “terra de ninguém”, aparece-nos como deslocada no formalismo e frieza institucional da Culturgest. Há ali uma ideia de transformação de território inimigo em território reconhecível, como se um bicho vindo de uma caverna fosse viver para um palácio e em vez de usar a cama se escondesse dentro do armário, pintando depois as paredes com as mãos e recusando aos novos hábitos. Todos os mecanismos utilizados aparecem-nos impostos, uma vez que se forçam, inevitavelmente a um diálogo com os significados que têm na Casa Conveniente, mas também com os outros espectáculos lá apresentados: a porta da garagem aberta para vermos os empregados a passar, a escuridão do palco, com as reconhecíveis lâmpadas cobertas, as portas, as caixas, os baldes, as roupas molhadas, o cimento… e os gestos, os diálogos, as frases, as sequências. E essa falsidade, aliada a uma desnecessária extensão do espectáculo, leva-nos à recusa.

Tudo isto se relaciona com uma falsidade comovedora, sobretudo porque desejamos regressar ao “conforto” da inacabada e sempre mutável Casa Conveniente, mesmo que existam dúvidas sobre o sucesso desse regresso a casa. Poderá o bicho voltar a adaptar-se à gruta? No fundo, neste espectáculo a falsidade resume-se a uma complexa e, diria, inevitável impossibilidade de alheamento da memória que construímos ao longo do percurso de Mónica Calle. Defeito de espectador ou alerta contra o conformismo, a verdade é que Julieta, desta vez, parece estar a escrever só para si. Não seria mau, se, contudo fosse menos frágil.

Julieta - cartas fragmentárias a um amor perdido será reposto a partir de janeiro na Casa Conveniente

Outros espectáculos de Mónica Calle analisados neste blog:

A missão, ou porque as raparigas continuam a querer ir para Moscovo

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