sábado, julho 02, 2005

Não apenas por prazer (II)

Análise às propostas do 5º Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas de Lisboa

continuação

Hachioji Kuruma Ningyo Puppet Theater
Hachioji Kuruma Ningyo Oshu Koen
Teatro da Trindade
04 Junho 2005
22h00

Sthephen Morram's Animata
Organillo
Teatro da Trindade
08 Junho 2005
22h00

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Hachioji Kuruma Ningyo Puppet Theater

A proposta trazida pelo grupo japonês Hachioji Kuruma Ningyo Puppet Theater para o FIMFA Lx 05 consistia na reunião de pequenas peças trabalhadas com a técnica Kuruma Ningyo, que consiste, essencialmente, na manipulação de uma marioneta (Ningyo) a partir de um banco (Kuruma) onde o marionetista se senta. Importa nestes espectáculos de tradição milenar a capacidade de concentrar a atenção na marioneta, uma vez que estas funcionam como uma extensão do ser humano, por exemplo, nas oferendas aos deuses. O boneco serve de ligação entre a divindade e o homem, sendo que a manipulação permite promover a individualidade da marioneta e fortalecer a relação com o espectador.

Por isso mesmo, o espectáculo (4 de Junho, Teatro da Trindade) começava com uma purificação simbolizada por um contínuo e cronometrado bater dos pés no palco. Essa purificação procurava também estender a felicidade de representação ao público. E porque se trata de um ritual, a apresentação do Hachioji Kuruma Ningyo Puppet Theater revestiu-se de particular simbologia e fascínio, uma vez que o conjunto de peças apresentado depositava na marioneta e na disponibilidade de crença do espectador a razão de funcionalidade da proposta.

Tendo sobretudo em conta que um espectáculo de marionetas pode facilmente ser lido como um exercício de virtuosismo algo infantil e de alcance imediato, a apresentação foi pontuada por explicações acerca do modo de funcionar das marionetas, das técnicas utilizadas e das intenções do espectáculo. Bem como no modo como reflectiam tendências milenares através da passagem de testemunhos, fosse nas moralidades dramatúrgicas ou na apresentação de especializações. Relaciona-se isto com a intensa produção de espectáculos na técnica Kuruma Ningyo, uma vez que existem no Japão mais de 200 companhias que a trabalham.

Do conjunto de peças («Ninin-Sanbanso», «Sagui-Musume», «Hidagawa Iriazakura-Amadazutsumi, Watashibanodan»), realça-se o rigor coreográfico dos movimentos que fortalecia a ideia de anulação do marionetista (sobretudo quando este é bem visível, mas num autismo facial irrepreensível), a disposição cenográfica minimalista (apenas na última peça havia uma mudança de cenários feita à vista do espectador através de contra-regras completamente vestidos de negro que revolviam o cenário, modificando-o consoante as necessidades cénicas e dramatúrgicas) e a precisão dos figurinos das marionetas (onde se escondiam diversos figurinos que eram retirados à frente do espectador e entre movimentos de uma beleza coreográfica que impressionavam pela delicadeza), bem como a sua quase invisível dimensão artificial, uma vez que por serem pintadas com pó de concha e passadas com resina denunciavam uma eteriedade. O que, por sua vez, realçava as transformações faciais, algumas delas assustadoras (como no caso da peça «Hidagawa Iriazakura-Amadazutsumi, Watashibanodan», em que a princesa Amada se transforma de mulher em serpente).

O que parece querer provar-se nesta apresentação é a necessária classificação de espectáculos de marionetas como outra coisa que não um espectáculo infantil. Há aqui uma nítida aposta na individualização e autonomia da marioneta no que isso representa de exercício de ilusão continuado. Mesmo que possamos considerar que as alegorias e lendas japonesas funcionam como um livro de indicações (e não instruções) para a vida, fazendo depois o público (ou as marionetas no lugar do homem) a sua própria escolha e arcar das consequências. Há naturalmente uma distanciação do público ocidental a estas realidades(e significados), o que faz do espectáculo do Hachioji Kuruma Ningyo Puppet Theater um exercício de contemplação que, se não for assimilado na sua dimensão quase-mitológica corre o risco de ser mal interpretado.

Há no conjunto de valias desta proposta suficiente material para uma abordagem mais complexa que a simples observação de um exercício de rigor e austeridade, mesmo que seja totalmente incompreensível o que cantam ou dizem. Trata-se aqui da promoção de metáforas em nome de um teatro que tem como função a passagem de valores. Daí ser necessário ao espectador ocidental um sobre-atenção para com a proposta, vendo para láda emocionante coreografia e do envolvente trabalho de coordenação motora. A austeridade emocional dos marionetistas permite concentrar atenções na ampla paleta de emoções promovidas pelas marionetas, mesmo que os padrões dos tecidos, os objectos utilizados, as palavras e músicas cantadas não estabelecem uma outra relação que não seja a do inerente fascínio pelo desconhecido.

E é aí que se opera a delicadeza desta proposta, uma vez disponibilizada uma vontade de observar sabendo (querendo) ver. Trata-se, por isso, de uma experiência ao nível do sensorial e metafísico, onde importa mais o modo como apreendemos os ensinamentos nela contidos.

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Organillo Foto: David Fisher

O caso do espectáculo Organillo (08 Junho, Teatro da Trindade), da companhia Animata do inglês Stephen Mottram é um nítido exemplo de promoção da ideia de recusa de um espectáculo de marionetas como uma proposta infanto-juvenil. A revista Time Out descreveu-o como 'um cruzamento entre as pinturas de Max Ernst e as interpretações sexuais de Freud, submersas num reino aquoso (...) [com] um par de cortinas de peepshows à volta' (in programa). E o que encontramos neste universo retro-futurista não é mais do que uma envolvente e delicada manipulação dos objectos (marionetas de fios e autómatos), na qual o marionetista promove um cruzamento entre a ilusão e fixação de imagens que resultam de uma memória colectiva.

Ou seja, como se se tratasse de um exercício de ficção científica disfarçado de alegoria animada, Organillo procura o desenvolvimento de sensações através da apresentação de uma história (enfim...) bastante linear: o processo de formação e gestação de um ser híbrido. Há aqui lugar para relações sexuais, passeios românticos, lutas de sobrevivência animal, fantasia e onirismo. Este espectáculo parece funcionar como um encontro entre o filme de Stanley Kubrick «2001- Odisseia no Espaço», e o livro de Júlio Verne «20 mil léguas submarinas», tal é a profusão de elementos estranhamente clássicos, mas crentes numa leitura semiótica nada imediata.

O trabalho de manipulação das marionetas utilizadas sustenta-se numa reduzida cenografia, composta por uma caixa redonda de onde sai o manipulador que move as peças numa delicada operação de concentração e rigor, o que contribui para acentuar a atmosfera sub-aquática em que se passa a história. Aliada a isso está uma banda sonora do argentino Sebastian Castagna, em que se confundem os habituais sons do mar com instrumentostradicionais como o realejo. Às vezes o som parece conduzir a acção e as próprias marionetas (como no arfar sexual dos pais), proporcionando assim uma envolvência ao nível do sensorial, uma vez que não existem quaisquer palavras.

Este universo espesso é palco para um jogo de sombras, reflexos e suspensões, onde as marionetas recusam a habitual posição bípede para se construírem assentes em três pontos: pescoço, pés e cintura. Feitas com dois bocados de madeira e um engenho mecânico, os estranhos seres (mergulhadores, peixes de várias espécies, etc.), cruzam-se numa profusão coreográfica na qual o espectador se deixa envolver, sobretudo por saber tratar-se apenas de um manipulador para o conjunto imenso de marionetas, esquecendo até a fragilidade de alguns dos autómatos (é o caso da ostra, por exemplo). Nesse sentido, Organillo funciona como um espectáculo onde a magia impera, também por causa dos exercícios de prestidigitação feitos pelo manipulador.

Trabalhando com vários níveis de acção, todos os elementos formam um estimulante quadro dramatúrgico no qual o espectador é envolvido, sentindo-se, no entanto, uma certa lentidão no desenvolvimento da narrativa. A certa altura, as imagens em Organillo tornam-se vazias de sentido e passam a funcionar como elementos de contemplação, o que anula uma ideia de experiência meta-simbólica.Os objectos deixam de funcionar como integrados numa linha condutora para aparecerem como disposições cénicas, o que afasta a envolvência do espectador entretanto já conseguida.

Não obstante, Organillo é uma muito eficaz combinação de elementos cenográficos e banda sonora, imersos numa imensa escuridão onde se dá margem de manobra ao espectador para completar o vazio. Radica na minimal ocupação de espaço e inerente concentração de meios uma leitura deste espectáculo como um objecto feito de disponibilidades e hipnoses. Esta é, por isso, uma proposta cuja ligação entre as artes visuais, a prática teatral e disponibilidade do espectador se faz através de uma relação feita de pequenas e subtis variações ao modo como são construídos os espectáculos de marionetas.

Continua

Ler aqui a 1ª parte de Não apenas por prazer - Las Tribulaciones de Virginia


Ver aqui site de A Tarumba - Teatro de Marionetas, organizadora do FIMFA Lx 05

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