sábado, agosto 06, 2005

Equívocos


Análise a Da pele à pedra
Vo'arte
Direcção artística: Ana Rita Barata e Pedro Sena Nunes
Lugar à Dança 05
Lavaria das Minas da Panasqueira, Fundão
30 Julho 2005
19h00


A estrutura de criação e produção Vo'arte, com sede em Lisboa, transferiu o seu espaço de pesquisa e apresentação para a antiga Lavaria das Minas da Panasqueira, no Fundão, para ali apresentar Da pele à pedra, uma proposta classificada como site-specific, no âmbito de uma outra classificação genérica e institucional: transdisciplinaridade. Integrada na programação do Lugar à Dança 05, a equipa coordenada por Pedro Sena Nunes e Ana Rita Barata queria combinar teatro, dança, música, fotografia, vídeo e instalação, procedendo a um trabalho de reflexão performática que, em colaboração com a população local, pensasse a história, a envolvente, o misticismo e agrura associados às minas fechadas no princípio dos anos 90, mas ainda uma das mais importantes jazidas de volfrâmio, bem como uma das minas mais profundas do mundo.

A proposta, que consistia numa distribuição pelo espaço de vários grupos de espectadores (intervenientes incluídos), fazia do local palco para diversas acções, nas quais se combinava o trabalho desenvolvido maioritariamente em Lisboa. Mas tendo sempre como referência o espaço de apresentação, para o qual contribuiu uma primeira visita de reconhecimento em 2004 e uma residência de 5 dias antes da apresentação. Da pele à pedra, sustentava-se no equilíbrio de apontamentos coreográficos e imagens cénicas, envolvendo onirismo e alusão à realidade, num conjunto dramatúrgico que, para além do mais, denunciava uma dificuldade em lidar com a envolvente, bem como integrá-la de modo a evitar a instalação tout court. Na verdade, a pouca narrativa desenhava-se através de breves sequências (quase quadros) que faziam o trajecto de um casal enamorado (limitado par de actores) que se sacrificava, e à família que iriam construir, por uma qualidade de vida que o trabalho na mina só podia roubar.

Do enamoramento à gravidez, das horas passadas no trabalho (ele) aos tempos de espera a tratar da casa (ela), dos malefícios do trabalho árduo (não faltam os ataques de tosse provocados pela silicose, doença pulmonar provocada pela aspiração respiratória de sílica, as partículas que se soltam da rocha) ao nascimento dos filhos e aos acidentes que levam à morte (numa clara alusão ao acidente de 1994 que condenou o fim da mina), procurava-se ali, num retrato algo simplista e figurativo (e por vezes a arriscar o improviso insolente), construir e perceber uma imagética e estrutura social, económica, antropológica e cultural.

Para além disso, a acção teatral era interrompida por seres diáfanos que executavam limitados e constrangedores movimentos coreográficos, no que isso denunciava de falta de preparação, organicidade e à-vontade. Sobretudo, o reconhecimento de um fascínio pelo espaço que oprimia a proposta, numa evidente cedência a um contributo que se achava evolutivo e não limitador. Se o aspecto mais relevante desta proposta residia na presença no público de elementos locais, que participariam nas acções através da evocação de canções tradicionais, ao mesmo tempo que assistiam a histórias comuns, não existia verdadeiramente um pathos e um climax. Muito em virtude de uma descoordenação na organização dos diversos grupos espalhados pelo espaço que eram convidados a caminhar, muitas vezes, sem um objectivo aparente, mas tão somente como hipótese de um reconhecimento e ideia de visita guiada.

Em artigo publicado na revista Artinsite, a investigadora e artista plástica Gabriela Vaz Pinheiro, levanta a questão: 'Como podemos distinguir entre obra e meio circundante se aquela está tão embrenhada neste? Como podemos avaliar o impacto da obra dentro de determinadas comunidades (comunidade artística incluída) se a audiência na circunstância é uma entidade tão incomensurável?' (p. 23). No caso concreto de Da pele à pedra, o que a Vo'arte apresentou não é mais que uma proposta a carecer de fundamento dramatúrgico, que vá para lá do conhecimento de factos, nomes, histórias e contextos. Ao não promover uma verdadeira reflexão sobre o que significam olhares exteriores num espaço imponente e, ao mesmo tempo, forçar a utilização desse espaço como escape cenográfico, os criadores cometem a imprudência de tomarem o todo pela parte. Muito provavelmente por considerarem que a população (e portanto o público imediato) jamais conseguirá enquadrar tal proposta em códigos performáticos, definições teóricas e conceitos contextualizadores, como aqueles que fazem os pressupostos desta intervenção.

Ao procurar inserir esta proposta no conceito de site-specific, a Vo'arte parece fazer tábua rasa de toda uma estrutura teórica que deve sustentar as propostas assim classificadas. E uma teoria que permita fazer das apresentações momentos únicos, inscritos num modelo performático que, ao mesmo tempo que parte do lugar de intervenção, regresse a ele. Ou seja, uma proposta que, limitada metafórica e literalmente por um raio de acção, possa fazer desse espaço um espelho para outras observações. Só assim o impacto da obra poderá ser avaliada, portanto, através da ultrapassagem de instalações cenográficas e manipulação superficial de práticas em nome de um todo criativo. Até porque, e fazendo uma comparação espacial, se nem tudo o que saía da mina era volfrâmio, certamente nem tudo o que se diz intervenção artística o pode ser. Há algumas que não resistindo à superficialidade performática, se anulam em si mesmas.

Da pele à pedra
Direcção Artística: Ana Rita Barata e Pedro Sena Nunes. Com A. Roque, Rui Paiva, Tiago Castro, Magda Novais, Gonçalo Tochas, Didio Pestana, Joana Chandelier, Marta Caneiras,

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