quarta-feira, janeiro 26, 2005

Pensar e escrever as artes performativas


Sinais de Cena


Artinsite

Os últimos meses de 2004 acrescentaram ao pensamento e reflexão sobre as artes performativas, dois novos espaços no plano editorial. Nomeadamente revistas: Artinsite (Julho 2004), editada pela Transforma - Associação Cultural, uma estrutura de produção e criação sediada em Torres Vedras e Sinais de Cena (Junho 2004), apresentada pela Associação Portuguesa de Críticos de Teatro (APCT).

Estas duas propostas chegam com a vontade de iniciarem um discurso crítico e atento sobre o que se faz e pensa, dirigido não só a quem cria, mas também a quem recebe. As duas revistas, porque permitem diferentes pontos de vista, podem ser lidas em conjunto. Não só porque dessa leitura conjunta resultará uma abordagem mais abrangente do que se vai passando no plano cultural, mas porque permite uma confrontação entre quem faz e quem analisa. Assim, a revista Artinsite propõe um "espaço de confluência de teorias e práticas, oriundas dos mais diversos campos do pensamento e práticas da contemporaneidade" (p.4), procurando "contribuir para fixar discursos e práticas, numa zona de cruzamento entre a criação artística contemporânea, os estudos artísticos e as ciências sociais" (p.6). Já Sinais de Cena aposta num "espaço editorial próprio para o debate teórico, a investigação histórica, o juízo crítico, a problematização da relação do teatro com outras formas de arte e repercursões na própria qualidade das artes cénicas" (p.9).

Ambas funcionam como extensões do trabalho dos seus editores, sendo mais aguda e urgente a necessidade da APCT, já que o espaço para a crítica e o estudo teatral escasseia nos jornais e menos ainda nos outros meios de comunicação social. Sinais de Cena é, assim, e ao contrário da Artinsite, um objecto útil sobretudo para a pesquisa documental e para a compreensão do papel e responsabilidades de quem pensa e observa o teatro. A revista editada pela Transforma funciona mais como um contributo para uma discussão no presente do futuro das artes performativas. Uma e outra completam-se no estabelecimento de pontes entre os objectos teatrais, o quotidiano, a urgência criativa e a procura de linhas estruturais para a compreensão do teatro que se faz em português.

A revista Artinsite procura uma proposta de fixação de projectos ou de processos, no que isso representa de estabelecimento de um diálogo, em primeiro lugar, consigo mesmo enquanto criadores/produtores, mas também com quem observa/reflecte/recebe/participa. Neste primeiro número convêm destacar os casos de "Protocolo", de Vasco Araújo, (pp. 88-99), uma "intervenção visual e literária" (p.5) a partir do livro «A Rapariga Dinamarquesa», de David Ebershoff, que já tinha sido experienciada pelo próprio criador em 2003 numa instalação homónima e toma aqui um formato diarístico; do dossier dedicado ao projecto "Relvinha cbr_x" (pp.30-73), uma intervenção multidisciplinar num bairro social em Coimbra e que com a inclusão na revista Artinsite força um conjunto de regras inerentes ao trabalho de site-specific. Nomeadamente a reflexão no momento e observação dos efeitos imediatos do gesto no local. A aposta neste dossier leva os criadores da revista a porem à prova um dos leit-motivs do site-specific enunciados pelo artista plástico Richard Serra: "to remove work is to destroy work".

Desta forma, a revista funciona como um objecto externo consciente da sua incapacidade de percepcionar todas as dimensões do objecto teatral desenvolvido, propondo antes uma reconstrução baseada num cruzamento entre expectativas e conquistas, como se quisesse ser uma hipótese de agente aglutinador. Não pretende entrar dentro do projecto ou fazer parte dele, mas antes absorver a experiência. Para um futuro tratamento. De salientar ainda a proposta "Mapas" (pp. 127-145), um desafio conjunto da Transforma e da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, centrado no trabalho de um criador. No caso, o coreógrafo/bailarino Miguel Pereira que vê assim o seu percurso artístico contaminado por uma tentativa de "promoção do diálogo entre as diversas disciplinas [...], debruçando o seu olhar sobre as práticas artísticas que, pelo seu carácter experimental, traduzem uma atitude crítica e reflexiva acerca dos diversos contextos com os quais se relacionam" (p.130).

Mas enquanto a Artinsite propõe reflexões que correspondem a uma série de novas questões (ou apropriação de outras ciências) para o estudo e abordagem das artes performativas, a Sinais de Cena promove uma fixação de práticas e discursos, centradas, sobretudo, nos objectos teatrais e dando-lhes uma dimensão finita. Ou seja, aborda o teatro numa perspectiva de análise e crítica, organizando um universo e um tecido, nem sempre visível. Apostanto num equilíbrio entre os estudos de teatro, o levantamento de bibliografia recentemente editada ou a crítica de alguns espectáculos, a revista serve ainda como um novo fôlego para o relançamento da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro (APCT). Por isso, uma grande parte da revista é ocupada com os ensaios críticos sobre o percurso artístico dos distinguidos pelos prémios da crítica em 2003 e atribuídos no final do 1º semestre do ano passado (pp. 11-37). Dá-se, assim, em casa própria, espaço para a compreensão das razões, motivos e linhas estruturantes que compõem o discurso de alguns dos membros da APCT. Logo, as abordagens com que poderemos contar nos números seguintes.

Podemos considerar como hipótese de um certo diálogo entre as duas revistas, o caso dos novos projectos que vão surgindo no plano teatral, no que isso reflecte de afirmação (ou tentativa de) desses projectos. De alguma forma o texto de Cláudia Madeira sobre a hibridez performativa (Artinsite, "E no céu, de hoje, que nuvens há?", pp. 102-107) observa essa necessidade de se começarem a identificar e fixar alguns comportamentos e discursos, não em nome de uma catalogação, mas antes um lançar de propostas de discussão. Nesse aspecto atente-se, nomeadamente, a análise crítica de Mónica Guerreiro ao trabalho de Rogério Nuno Costa (Sinais de Cena, "A Dramaturgia do eu na vida de todos os dias", pp.84-86) e a reflexão deste criador (Artinsite, "Objecto sensível em 9 partes", pp. 118-127) acerca de uma das suas linhas estruturantes: o regime de criação site-specific como "leitura entre o lugar, o objecto e o espectador" (Artinsite, p.6). Oferece-se ao espectador-leitor uma hipótese de reforço de crença na ilusão teatral, nomeadamente através do estabelecimento de alguns fios condutores na obra de Rogério Nuno Costa, não como sentido de perda de inocência, mas capacidade de reconhecimento dos vários níveis de leitura propostos pelo criador. O mesmo se passa com o caso do trabalho de Miguel Pereira ou a entrevista feita por Maria Helena Serôdio, João Carneiro e Mónica Guerreiro a Pedro Penim sobre o Teatro Praga (Sinais de Cena, "A responsabilidade máxima do actor", pp.49-59), todos eles citados por Cláudia Madeira.

O exemplo destas duas revistas (ambas a procurarem ainda o seu modelo, no que isso revela de frágil mas estimulante) serve bem a necessária discussão sobre o sentido da existência de suportes formais para a fixação de objectos inerentemente efémeros. Contribui-se, assim, (espera-se) para uma real discussão do papel e responsabilidade de todos na construção de um imaginário cultural colectivo. Sobretudo se quisermos considerar que a utilização de um suporte não efémero pode implicar uma contradição nos processos criativos dos próprios objectos (a questão da efemeridade, por exemplo) e a imposição dos discursos de quem observa/recolhe/edita/pensa a arte performativa. Mas devem, ainda assim, proceder à observação de um tecido teatral e performativo, nem sempre atento aos pontos comuns que procedem à urgência criativa. Em parte responsabilidade dos próprios criadores, presos a uma individualidade nada benéfica. E é através dessa "armadilha" desenvolvida pelos criadores que quem edita revistas deve saber perceber o que é uma influência (ou relação de dependência) entre quem produz um discurso criativo e quem fixa uma realidade teórica. Mais não seja para evitar as desvantagens frágeis de propostas epigonais. Mesmo que isso implique o sacríficio de quem as faz. Que é bastante atendendo ao mercado em que se inserem.

Título: Artinsite nº 1 - verão 2004
Edição: Transforma - Associação Cultural, 216 pág.
Preço: 7.50€

Título: Sinais de Cena nº1 - Junho 2004
Edição: Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, 138 pág.
Preço: 12 €


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