quarta-feira, março 23, 2005

O lugar das coisas

Análise ao espectáculo Why can I be me
Murmuriu
encenação John Romão
Auditório Fernando Lopes Graça
9ª Mostra de teatro de Almada
25 Fevereiro
21h30

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Why can I be me apresenta-se como um jogo de espelhos que mais do que querer reflectir sobre a urgência criativa e as condições de criação antes apresenta contradições e confunde. A proposta da murmuriu está assim mais para espelho de feira que para um espelho revelador da alma. Nesse sentido, o espectáculo desenvolve-se através de sequências aparentemente fragmentadas e cujo resultado final (ou objectivo/mensagem) aparece enublado. Ou seja, da depência do espectador. Não é uma proposta conclusiva ou apostada em se projectar no futuro, mas antes pretende reequacionar o caminho que levou os criadores ao ponto em que se encontram. Ponto esse pleno de enganos, ilusões e crenças disponíveis (ou talvez não) a serem questionadas.

O espectáculo apresenta-se ao espectador como se já tivesse começado no momento em que este entra na sala. Os dois actores (John Romão e Maria João Machado) dispõem-se a uma exposição crua e descarnada, recusando assim um tempo que todos reconhecem como lhes pertencendo. O que quer que se possa passar nos bastidores do palco, os dois intérpretes apresentam em cena. Dessa forma, o espectador é levado a concluir que a proposta a que assiste pertence a um outro tempo que não o teatral e a uma outra realidade que não a da ilusão cénica. Talvez à da fotografia, que assenta num desejo de partilha nunca consumado (é essa uma das hipóteses de discurso que os dois propõem). Afinal, intérpretes e espectadores serão sempre duas forças em confronto.

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A aposta em mostrar a preparação aproxima-se de uma recusa da ideia de que quem cria não se projecta no que apresenta. Os intérpretes estabelecem assim uma cumplicidade com quem também se prepara. No caso, para assistir ao espectáculo. Uma e outra parte, iguais em nome de uma experiência que se quer partilhada, mais do que apresentada. Assim, o espectáculo reclama a presença e a atenção de quem vê de formas nem sempre evidentes, mas que pretendem questionar as razões que levam alguém a optar ver um espectáculo de teatro. E, no limite, perceber que importância esse espectáculo têm. Why can I be me aparenta, por isso, ser construído em função do espectador, uma vez que os criadores se batem pela ideia de um público activo, manifestante e actuante. Um público que perceba que não existe criação sem uma audiência e vice-versa.

Why can I be me é um projecto de questionamento que resulta de uma investigação feita por dois estudantes de teatro. Esta condição é vincada pelos próprios que insistem assim numa contextualização do seu trabalho, logo das referências que os atravessam no momento em que se apresentam. E o facto de o afirmarem (ou centrarem) permite enquadrar Why can I be me num universo de teorias nem sempre ajustadas à realidade ou quanto muito a necessitar de porém à prova os seus limites/fronteiras.

E não o faz de forma simples ou a querer protecção, mas antes num explicitar da violência, fruto não só da necessidade de levar à abstracção os movimentos em nome de uma verdade do 'gesto' (o corpo, mais do que a palavra é o primeiro "objecto" teatralizável) mas também de desenvolver um discurso crítico e pensado sobre o peso de cada uma das teorias. Estas duas linhas de força apresentam-se em Why can I be me através de dispositivos cénicos que confundem cultura pop com classicismo criando assim um universo próprio que tem tanto do folclore de Kusturica como da agrura de João César Monteiro.

Logo no início os dois actores envolvem-se numa coreografia sexualmente ímplicita e cujas interpretações permitem viajarmos entre danças tribais, peixes fora de água, necessidades de equilíbrio, pura abstracção e, devido ao leite no qual escorregam, uma desesperante necessidade de reconhecerem no mundo 'de fora' o conforto do útero. Por isso, quando mais à frente do espectáculo e após algumas discussões sobre o peso do teatro e das convenções, regressam a essa sequência, quase que é possível afirmar que a leitura mudou e agora dizem 'cresce e aparece'.

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É, por isso, uma proposta barroca e exagerada que procura a forma concreta das coisas. Em última instância, a verdade. E essa, entendem os criadores, só pode vir com a saturação. O espectáculo é, dessa forma, uma espécie de grito dentro do espartilho que é o pensamento a ser formatado. E não há movimento, gesto, acção ou intenção que se resigne a ser o que querem que seja.

Este exercício de estilo trabalha uma erotização do acto criativo, no sentido em que quanto maior for a liberdade de criação, maior será o prazer (e o retorno). Why can I be me é, portanto, uma proposta de busca do prazer, o que , em dois estudantes de teatro é, não só um bálsamo mas uma preocupação. Significa, tão somente, que o universo em que se preparam para entrar é já demasiado denso, formatado, regulado e, no limite, recusável. Mas porque o querem perceber (só assim o podem combater/comtaminar/invadir/envenenar), John Romão e Maria João Machado 'oferecem-se ao sacrifício'. E sujeitam-se, por isso, a tudo aquilo que possam vir a considerar uma afronta.

Why can I be me é um espectáculo eminentemente teórico já que se desenha sobre a forma de um pensamento solto e em busca de definição. O que pode ser considerado angustiante deve, no entanto, ser visto como uma proposta que não permite a extinção. Porque dela derivaria a cedência ao formato, à regra e a tudo aquilo que impede o teatro e as artes de uma maneira geral de se comportarem como um espaço de questionamento sobre o mundo. É por isso que os criadores não pretendem fazer esta busca sozinhos e apostam num processo de sedução junto do espectador. Sedução essa que passa pela surpresa. Nomeadamente quando projectam um vídeo acabado de gravar que mostra as reacções do público a um número de playback feito por um travesti (Óscar Reis)

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Durante a actuação deste travesti - distante da imagem de glamour que normalmente reconhecemos -, o público é levado a sentir que aquele limite de exposição é o que John Romão e Maria João Machado procuram, uma vez que mais do que se confundirem sexos, histórias e universos referenciais, o travesti é uma espécie de símbolo máximo da 'personagem'. Contudo, o jogo teatral está colocado na plateia, já que é ela que se expõe. E durante o mesmo tempo da canção utilizada, somos confrontados com o nosso comportamento. Deixamos, portanto, de ser anónimos espectadores para passarmos à condição de decisores. O que, em última instância, somos sempre que escolhemos ir ver um espectáculo.

Why can I be me é, portanto, sobre o que fazer com o acumular de referências e sobre as opções que se devem tomar. Tudo em nome de um cruzamento entre dois universos que se querem cúmplices e influenciáveis. Esta proporta que não apela à facilidade é, por isso, o mais honesta possível se considerarmos que parte de uma vontade de questionar a razão de ser de determinados gestos e atitudes. Mais do que uma proposta sobre o quotidiano (teatral ou não), Why can I be me é uma busca de um sentido para saber a importância que as coisas têm. E, em última instância, nada é inocente. Como no princípio.

Outros espectáculos da 9ª Mostra de teatro de Almada analisados neste blog:

The Scum Show, Inestética - Companhia Teatral
Punchwork, Ninho de Víboras

Próxima produção Murmuriu
Saia Daqui, de Maria João Machado
Casa Conveniente, Lisboa
28 Março
Semana da Juventude da Câmara Municipal de Lisboa

1 comentário:

Anónimo disse...

Para mim o espectáculo não passa de um exercício escolar e a cena final, com o nu, absolutamente gratuita. Falta muita maturidade mas sente-se vontade em trabalhar e questionamento. Mas o teatro não é isto.