terça-feira, maio 03, 2005

Ser mulher, mas não assim

Análise ao espectáculo 12 mulheres e 1 cadela
encenação de São José Lapa
Teatro da Trindade, Lisboa

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Ao observarmos o espectáculo 12 mulheres e 1 cadela, facilmente podemos enquadrá-lo numa lógica que procura pensar o teatro (no) feminino. Esta classificação não se prende com uma necessidade de arrumar as propostas cénicas em compartimentos fechados, mas antes uma hipótese de abordagem que parte do espectáculo e do contexto em que se insere. E sobretudo com a tendência generalizada para se procurar uma representação da mulher actual.

O espectáculo permite tecer considerações sobre que papel as mulheres têm, efectivamente, no teatro em português. Lê-se, por exemplo, o ensaio/estudo preparatório de Eugénia Vasques «Mulheres que escreveram teatro no século XX em Portugal» (Edições Colibri, 2001) - e o único que promove uma leitura (ainda que condicionada por um ponto de vista demasiado concentracionário) sobre a história do teatro português de um ponto de vista feminino - e apercebemo-nos que para as mulheres, e durante muito tempo, a dramaturgia se resumiu às peças em um acto e ao teatro infantil. É claro que não foi só este o papel das mulheres, basta pensar, por exemplo, em Amélia Rey-Colaço, também como formadora e directora artística, mais do que actriz e encenadora, para perceber que às mulheres lhes é devida uma parte significativa do teatro que se fez (e faz) em Portugal.

Não há em Portugal uma tradição de teatro (no) feminino. Existem sim exemplos de companhias ou criadoras que podem propor um estabelecimento de relações, mas nem todas se podem considerar propostas que reflictam sobre o género (isto se excluirmos o trabalho noutras áreas, como o de Vera San Payo Lemos, à frente da dramaturgia do Novo Grupo/Teatro Aberto e o de Cristina Reis, na cenografia e co-direcção do Teatro da Cornucópia). O caso mais paradigmático (pela sua persistência e afirmação) é, sem dúvida, o da Escola de Mulheres, dirigido por Fernanda Lapa e Isabel Medina, que foi criada precisamente para combater uma omnipresença masculina no teatro português. Um combate que se faz mais pela afirmação feminista que feminina e que resulta numa procura de autores (portanto homens e mulheres) que pensem a falaciosa questão da existência de fórmulas diferentes para a desconstrução do género.

Nesse sentido, esta companhia tanto promove Aristófanes (Mulheres ao Poder, a partir de Assembleia de Mulheres, Teatro Maria Vitória, 1999), como Caryl Churchill e David Lan (Uma boca cheia de pássaros, Teatro Nacional D. Maria II, 1998), ou o mais recente Bernardo/Bernarda, a partir de Bernardo Santareno (Convento das Bernardas, Abril 2005). Apostando numa linha que se quer de coerência, a Escola de Mulheres tem, com mais ou menos dificuldade (não só criativa, mas também estrutural e circunstancial) procurado desenvolver esse trabalho de pesquisa num universo pouco dado a resgatar os espectáculos da efemeridade a eles inerente. Podemos discordar do método, da prática, do registo ou da forma, mas deve considerar-se que a linha que escolheram assume os riscos da mesma e obriga a uma redefinição das estéticas e opções das estruturas. O que, num país de tão poucas afirmações é sempre uma mais valia.

Na verdade, tudo o resto que possa cumprir uma ideia de teatro (no) feminino (propostas feitas de um ponto de vista feminino, não só de e para mulheres, mas sobretudo em que se sinta uma diferença de abordagem extra-estereótipo), resume-se a alguns exemplos de criadoras, nem sempre assumindo o papel da mulher, mas pensando as relações humanas numa perspectiva feminina, seja essa por inerência ou opção. No teatro Mónica Calle e Lúcia Sigalho, na dança Sónia Baptista, Vera Mantero ou Cláudia Dias. Depois, existem alguns exemplos que ou estão a surgir ou não se lhes reconhece uma continuidade que permita definir um perfil

Esta realidade é, apesar de pobre, um passo à frente na afirmação de reconhecimento do papel da sexualidade na criação artística. Basta aliás pensar, por exemplo, em grande parte do teatro feito por homens, na maioria gays, mas para os quais a questão ou é subliminar ou nem sequer abordada. Dizer que é por pudor e receio de falta de público, num país que vive de costas voltadas para o que se cria é uma falácia. Mais, é recusar o desenvolvimento de dramaturgias que pensem e reflictam a realidade ausente de metaforizações. E, no limite, amputar um ponto de vista nada dispiciendo.

12 mulheres e 1 cadela pode, no entanto, ser observado de uma outra forma, se quisermos, situacional. Ultimamente tem sido recorrente a apresentação de espectáculos feitos por mulheres e que pretendem pensar (com mais ou menos seriedade, mais ou menos superficialidade) a mulher como objecto (para os que só conseguirem ler a palavra pejorativamente, substituam-na por "entidade", mas pense-se sempre num duplo sentido, porque é essa a intenção): Confissões de mulheres de 30 (Casa do Artista, Janeiro 2005), O ABC da Mulher (Teatro Ginásio, Janeiro 2005), Celadon (Teatro Municipal S. Luiz, Fevereiro 2005), A Partilha (Teatro Tivoli, até Maio 2005) ou Shakers(Casino do Estoril, desde Abril 2005).

Contudo todas elas são propostas que carecendo de uma estrutura de produção que as sustente, permitem-se a uma relação de dependência face ao espectador, podendo até, e se quisermos, fazer disso uma razão (perfeitamente válida, aliás) de existência. Mas essa opção pode implicar uma outra: a recusa de uma afirmação feminina (e feminista). Ou seja, o facto de ser teatro com mulheres pode redundar numa circunstância. É o caso de Shakers, por exemplo, uma nítida resposta a Os Portas (Casino do Estoril, até Janeiro 2005). E em resumo nestas propostas salientam-se dois aspectos: um elenco de nomes mais ou menos sonantes e propostas simples, imediatas e a devolver ao teatro um lado menos complexo e psicologista. Logo, propostas que se querem do lado dos "problemas" das mulheres. Homens incluídos.

Razão pela qual um espectáculo como 12 mulheres e 1 cadela, mesmo não o desejando, se torna numa proposta-convocatória de relações e contextos. No limite, para compreender a fundo ao que vêm. E também porque, ao contrário das propostas recentes mencionadas anteriormente, 12 mulheres e 1 cadela serve-se de uma mecânica de produção que se obriga a um destaque e relevância a que não podemos ser alheios. Sobretudo pelo facto de estrear no Teatro da Trindade e dentro de uma lógica que combina grandes produções com um contexto. Basta pensar nas propostas sobre as relações entre a matemática ou a física com o teatro (mais recentemente Proof, 2003, ou Picasso e Einstein, 2005), ou o ciclo de peças sobre a liberdade e a revolução (O Magnífico Reitor, 2002, O Navio dos Rebeldes, 2003, Viriato, 2004).

Ou seja, o Teatro da Trindade vive o difícil equilíbrio de um espaço com condições únicas de produção, mas uma deficiente capacidade de afirmação (que é histórica e justificável), razão pela qual (e considerando que o público-primeiro são os beneficiários do INATEL), aposta em espectáculos que não ousam uma afirmação radical, e que, se quisermos, apenas cumprem uma função de entretenimento com a sua dose recomendada de consciência social. É Carlos Fragateiro, director do Teatro da Trindade que o afirma no programa: "este texto de Inês Pedrosa é mais um passo no sentido de mostrar que é possível contar histórias que tenham capacidade de chegar ao grande público, e, ao mesmo tempo, tratar temas do nosso tempo".

Pensando neste historial e contexto, seria de prever que 12 mulheres e 1 cadela funcionasse como um passo em frente nessa relação de aproximação entre o interior e o exterior, ou seja, "uma abordagem para que o teatro assuma o seu papel de espaço privilegiado de revelação dos movimentos e dinâmicas sociais que atravessam, a cada momento, o nosso mundo" (idem). Sobretudo porque parte de um conjunto de textos da autoria de Inês Pedrosa, suficientemente reconhecida para se poderem detectar linhas fortes e coerentes (ainda que nem sempre de fácil concordância).

A romancista e cronista assume que 12 mulheres e 1 cadela "não é uma peça sobre esse ser mítico, abstracto, frágil, floral, chamado "a mulher". É sim, uma peça sobre o modo como mulheres concretas e contemporâneas vivem o inactual e o intratável, o amor, o sexo, a maternidade, o medo a transcendência, a morte." (in programa) Logo, uma peça que se quer como um libelo libertador de estereótipos. No fundo, mais do que uma proposta fechada, antes uma que seja o mais plural possível, de forma a contrariar a ideia de que quando as mulheres "não correspondem aos modelos vigentes, chamam-lhes cadelas" (idem).

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12 mulheres e 1 cadela propõe fazer uma história da mulher através de uma história da dor. Uma dor que represente procura, dádiva, abnegação e busca de um lugar na sociedade/realidade. Estabelecem assim três pontos fortes: sexo, religião e família. Contudo, estas três linhas de força parecem servir um só propósito, a classificação da mulher em duas categorias: a subjugação ao masculino e a competição com outra mulher (nos casos apresentados, sempre a filha).

O espectáculo desenvolve-se assente numa estrutura fragmentada (e fragmentária) onde os contos de Inês Pedrosa são trabalhados e organizados com o aparente objectivo de construir um pensamento comum sobre a condição da mulher, mas, e sobretudo, uma condição que a apresente mais como vítima (voluntária ou não) de um conjunto de circunstâncias que a impedem de ser plena. Esse pensamento comum é, no entanto, contrariado pela própria estrutura do espectáculo, pois a dramaturgia parece recusar-se a assumir uma visão própria (e autoral) sobre os contos.

A proposta perde-se entre a tentação de sair dos textos, dando-lhe um corpo próprio (o conto atribuído a Jó Bernardo, por exemplo) e a ilustração gratuita de certas frases (folhas que caem e cordões umbilicais, para mencionar os mais óbvios). Algumas frases acusam ainda um certo pendor literário que quando ditas por personagens que procuram representar exemplos femininos, não passam de chavões pouco eficazes e demasiado psicologistas (para não dizer "teatrais"): "todos os dias o tempo desfaz mais uns milhares de corpos", "contra ninguém, só a favor do mundo", "um divórcio é um triplo salto mortal em câmara lenta" ou "o amor eterno é uma ditadura pós-militar".

Estes exemplos de imagens poéticas e a redução a modelos não parecem fazer correspondência com aquilo que se defende ser o espectáculo: "com mais ou menos panos, da burqa ao biquini, as mulheres continuam a ser resumidas e compactadas na mesma ideia feita sobre "a mulher". Contra esse estático lugar-comum, erguemos, na perfeita estrutura de simulacro que é o palco, um vendaval de ideias. Com cadelas, procurámos ir até ao osso." (Inês Pedrosa, idem).

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O espectáculo perde aliás, a oportunidade de questionar o pressuposto por detrás da divisão masculina e feminina, fórmulas que não deveriam servir para mais do que a desconstrução do género. Uma desconstrução que serviria para criar e promover a igualdade, sem que isso significasse a morte de um dos pares. Veja-se o caso do conto atribuído a Jó Bernardo ("A sombra das nuvens no mar" in «Fica comigo esta noite»), uma transexual que se presta a um trabalho de exposição emocional nada fácil e que, pelo facto de sair do dilema da mulher subjugada ao homem, não só comove como amplifica o sentido de mulher plena, conquistadora de si mesma e do seu espaço, sem pedir meças a ninguém. Mas mergulhado numa estrutura frágil e pouco evolutiva, o trabalho de Jó Bernardo (descontadas as fragilidades de quem não tem uma prática de palco) é abafado pela incapacidade de construção/definição de uma solução.

Pena é que os restantes contos, em virtude da ausência de um trabalho dramatúrgico coerente, se percam num bucolismo gratuito, ao qual não são alheios os confrangedores momentos coreográficos que, em vez de contribuírem para um sentido de real, antes insistem num onirismo já de si discutível, porque hiper-metafórico. E quando tudo quer dizer alguma coisa, perde-se sempre o significado primário e o objectivo essencial. Que, no caso de 12 mulheres e 1 cadela se prendia com uma convocatória de momentos femininos. A construção de um todo universal e complexo, portanto.

Um universo que, por exemplo, está pertinentemente pensado na imagem mais forte do espectáculo: o momento inicial em que as doze atravessam o palco em fila e de burqa, dizendo pedaços de um discurso por identificar. Essa imagem é uma nítida afirmação de que há mulheres que não podem ir ver teatro, quanto mais representar. E que o neo-feminismo deve passar por uma educação de massas que permita integrar e não segregar. Uma evolução que permita libertar essas mulheres das burqas, sejam elas metafóricas ou não.

Mas 12 mulheres e 1 cadela não comove, não convence e não constrói a reflexão pretendida, sobretudo porque não sabe ultrapassar a estrutura convencional e burguesa dos contos de Inês Pedrosa. Não faltam as meninas abusadas aos quatro anos de idade, os futebolistas devenu símbolos sexuais, os pobres a citarem filósofos, as mulheres do povo que são boas almas, as executivas sem tempo para o amor e dificuldade em agendarem um aborto, as lutas pelo mesmo homem, os homens superficiais e parvos e brutos, os serões de fados, as filhas ingratas, as amigas invejosas, os maridos traidores, as mães possessivas, a frigidez, a menopausa, a morte, o sexo como arma... enfim. Mais do que realidade, 12 mulheres e 1 cadela é um bestiário transvestido de burqa. E disruptivo.

Porque, no fundo, o problema não está na utilização dos clichés para pensar e proceder a uma reflexão sobre o lugar da mulher, se efectivamente se considerar que às mulheres só resta a competição com outras e a subjugação ao homem. O problema está na incapacidade de provocar uma ultrapassagem sobre a ideia de libertação feminina pela imolação. Seja ela exterior ou interior. Em 12 mulheres e 1 cadela as mulheres estão tão presas quanto as premissas que deram origem ao texto.

Podemos ainda considerar que o espectáculo corre o risco de procurar uma justiça, no sentido em que atribui a cada uma das intervenientes um momento individual, sem que se perceba de que serve o cruzamento de histórias se não promove uma poupança de tempo e economia que daria ao espectáculo um ritmo de que carece. Se quisermos, contribuiria para esse discurso colectivo preconizado na confusão de vozes iniciais.

12 mulheres e 1 cadela confunde ainda ficção e realidade, dando a entender que tanto pode ser uma coisa como outra. Se assim não fosse, como se justificaria a utilização de dados estatísticos (ainda por cima mal grafados) sobre iliteracia, violência doméstica e afins numa cena plenamente metafórica, como acontece quase no fim do espectáculo. De salientar ainda a fragilidade da interpretação de Alexandra Leite, em claro constrangimento pela dificuldade em manipular uma mãe plena de ciúmes pela filha

Em resumo, o espectáculo encenado por São José Lapa peca por um excesso de virtuosismo (cenário austero, luzes imensas e adereços a pontuarem e sugerirem espaços) e uma ausência de sentido de finitude ou objectivo. Deixa-se de saber que mulher pensam e promovem. Sabe-se que deverá estar relacionado com uma ideia de mulher plena, mas certamente ausente de um futuro consciente e individual. O espectáculo termina com uma cadela a ladrar e todas as actrizes a levantarem as camisolas, deixando ver o peito. Mesmo sabendo que ao peito se associa uma ideia de simbolo-máximo feminino, este espectáculo escusa-nos a uma procura. A verdadeira mulher está por fazer. E, provavelmente, o teatro não a saberá representar. Ou este teatro não o soube representar.

12 mulheres e 1 cadela textos Inês Pedrosa adaptação dramatúrgica As doze e Inês Pedrosa encenação São José Lapa cenografia e adereços Inês Lapa Lopes desenho de luz Alexandre Coelho coreografia e trabalho de corpo Victor Linhares sonoplastia Alberto Lopes styling Sandra Pereira interpretação Carmen Santos, São José Lapa, Paula Guedes, Alexandra Leite, Lucinda Loureiro, Ângela Pinto, Jó Bernardo, Gracinda Nave, Alexandra Freudhental, Inês Lapa Lopes, Rita Rodrigues, Joana Manaças

até 22 de Maio, Teatro da Trindade


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