sexta-feira, abril 22, 2005

Pontos de vista

Análise ao espectáculo A Partilha
Teatro Tivoli, Lisboa

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A Partilha é uma proposta muito simples que não quer mais do que entreter o espectador que assiste. Durante cerca de duas horas, um texto leve, descomprometido e eficaz promete fazer abstrair o espectador da realidade dura "lá de fora", mesmo tratando por tu temas delicados como a perda de um familiar e as divergências entre quem fica. Teresa Guilherme (Selma, a irmã mais velha, de casamento amargurado e vida perdida), Rita Salema (Maria Lúcia, que vive em Nova Yorq, entre o fascínio e a solidão), Silvia Rizzo (Regina, irmã esotérica e eminentemente prática) e Patrícia Tavares (Laura, a irmã mais nova, lésbica e com dificuldade em enquadrar-se na família) são as irmãs que se encontram no funeral da mãe e se obrigam a uma convivência que, naturalmente, resultará na evocação dos dramas que as afastaram. A estrutura da peça acompanha o dia do funeral e seguintes, através de um humor que vive da cumplicidade das actrizes que transformam momentos de dor e mágoa em hilariantes recordações que aproximarão as irmãs. E ao espectador, por comparação.

Podemos considerar que existem determinados factores que contribuem para uma relação de desconfiança permanente com este espectáculo. Desconfiança essa que é partilhada por objectos ditos comerciais (como se todos os espectáculos não o fossem). Para lá de uma por vezes confrangedora ausência de rigor nas mutações (mudanças de cenário) da responsabilidade dos contra-regras, assiste-se também a um certo descontrolo nas marcações, com entradas e saídas de cena que acusam um desenho de movimento que mais do que exprimir uma rede de tensões das personagens (que poderia ajudar a compensar a fragilidade das suas personalidades), antes as prende a um artificialismo que só a capacidade individual de cada uma em manipularem o que lhes é proposto consegue contrariar.

Razão pela qual se destaca o trabalho de Teresa Guilherme que, ciente das suas fragilidades, evolui de uma tensão inicial para uma cada vez mais confortável manipulação dessas superficialidades. Coisa que nitidamente é mais problemático no caso de Patrícia Tavares que não consegue ultrapassar uma figura estereotipada, tornando-se uma caricatura entre personagens já de si pouco trabalhadas. Percebe-se, aliás, que Teresa Guilherme se coloca a um nível de exigência bastante mais elevado, uma vez que o público está apostado em perceber os seus limites. E, entre o histrionismo das outras interpretações (às quais não são alheias dificuldades acrescidas de percepção em virtude de um uso abusivo do som dos microfones) e a ausência de uma encenação mais criativa, Teresa Guilherme abandona uma posição bidimensional - conferida pela televisão e 'revistas do social' - para se tornar, se quisermos, tão frágil quanto qualquer pessoa que acredita no que está a fazer. Se a essa "verdade" associarmos o facto de à personagem de Teresa Guilherme estarem destinadas praticamente todas as deixas com asneiras, provocações e humor mordaz, podemos considerar que a apresentadora não só ganha a aposta como justifica a ida ao espectáculo.

Para além disso sente-se que A Partilha ganharia em ser apresentada num espaço mais pequeno e, mesmo no Teatro Tivoli, mais perto do palco. É que a cumplicidade que aproxima público e actrizes- razão que levou o público ao espectáculo - é contrariada pela distância entre a plateia e o cenário. Mesmo os momentos íntimos e de confissão individual (alicerçados num esquema de difícil sustentabilidade: quase um momento individual dentro do próprio espectáculo, com música apropriada e foco de luz direccionado) perdem por acusarem uma relação de medo e confronto com o espectador. Ora, isto é não reconhecer que o público que vai ver A Partilha é um público ganho desde o início.

Mas estes factores - ou outros que denunciam uma forte presença do factor produção (product placement, por exemplo) -, provavelmente passam despercebidos ao público-alvo de A Partilha, mas que contribuiríam para um engrandecimento do espectáculo e, se quisermos, numa ponte entre duas realidades artísticas e de público.

A verdade é que A Partilha podia ser observada de diferentes pontos de vista: na sua relação com o público, nas razões de criação ou na partilha de um espaço criativo com outras propostas. Mas por onde quer que o observemos, este espectáculo será sempre visto como aquele em que Teresa Guilherme, apresentadora e produtora de televisão, se estreia como actriz.

Esta forma de abordagem ao espectáculo é o reflexo de uma ausência de tradição ou prática de apresentação de espectáculos com figuras conhecidas do grande público e que dificilmente são encaradas como actores, como acontece frequentemente noutras cidades. Ora, isso é tanto uma falácia quanto dizer-se que os apresentadores de televisão, pivôs de noticiários e mesmo outras profissões tão quotidianas como padres, advogados, juízes, professores ou médicos, não estão, quando em funções, a representar um determinado papel. Seja esse papel atribuído pela sociedade ou imposto pela função que ocupam.

E esse factor promove uma certa relação ambígua com o espectáculo, uma vez que dificilmente o espectador consegue alhear-se do facto de estar a ver figuras cujo nome e presença são, até certa medida, bidimensionais. Mas é essa aposta na cumplicidade que cria energia no espectáculo e o sustenta.

Ou seja, e conforme defende a teórica alemã Erika Fischer-Lichte (Performance e Cultura Performativa - O Teatro como modelo cultural, 2000), assume-se que o processo de interacção com o público - que no teatro é desenvolvido de forma regular, coordenada e definida permitindo assim uma identificação com signos, significados e significantes de referência - permite a criação de um meio de 'libertar' os espectadores, na sua própria percepção nos actos de constituição de significados.

Logo, A Partilha é, se assim quisermos, um difícil e pertinente jogo sobre a crença, a dúvida e a capacidade de olharmos para um objecto como reflexo de uma realidade social menos elitista e mais abrangente. Mas isto é se quisermos ver o espectáculo para lá da imagem de Teresa Guilherme, considerando-a como actriz e não a figura que se conhece pela televisão. A actriz agradece, parece-me.

Ora, por ausência ou perda de tradição (ou um radicalismo de opções artísticas malgré elles- mêmes), estes espectáculos não encontram espaço num discurso que os pense e integre no contexto em que se inserem, antes preferindo fazer-se deles propostas descartáveis, voláteis e efémeras. Razão pela qual uma análise deve, também, ser pensada nestes termos: que lugar para estas propostas?

A Partilha é o tipo de proposta que exerce um fascínio em circuitos intelectuais que tendem a justificar uma ida ao espectáculo como uma investigação antropológica. Ou seja, fingem observar esse epifenómeno que é o 'teatro de entretenimento' e o seu público. Mas afinal não é esta convivência de propostas o reflexo de um tecido criativo (também económico e social) que se quer amplo, plural e discutido?

Parece-me que A Partilha se reserva ao direito de reclamar um espaço de apresentação que esteja liberto de pruridos intelectuais e vá ao encontro da necessidade primária do espectador e do criador: o prazer. Isto não é um problema em si, mas antes uma questão pertinente para um contexto cultural demasiado fechado e acusado de elitismo.

Se percebermos que A Partilha é uma proposta consciente das exigências e responsabilidades dessa escolha, logo da forma como isso se pode virar contra si, seremos mais capazes de a apreender e, se assim quisermos, reconhecer que se trata de puro entretenimento sem pudores. Mesmo que frágil, efémero e superficial. No fundo, como as reacções provocadas pela tese da personagem de Patrícia Tavares: de que serve pensar o riso? Não se ri e pronto?



A Partilha de Miguel Falabella Encenação Joaquim Monchique Direcção de Actores Alfredo Brissos Direcção Técnica e desenho de luz Paulo Sabio Cenografia Decor Laranja Guarda-roupa Fátima Tristão e Paula Sousa Produção Teresa Guilherme S.A. Interpretação Patrícia Tavares, Rita Salema, Sílvia Rizzo, Teresa Guilherme
Teatro Tivoli, Lisboa
até 08 de Maio
Quarta a Sábado (21h30), Domingo (19h00)

1 comentário:

reparador disse...

Há coisas neste pequeno país,que me deixam de 4....
Desde quando uma apresentadora de televisão é um a actriz?
Isto é o mesmo insulto a um Arquitecto, se um trolha(sem desprestígio para a profissão) assinar um projecto.
Basta ver as novelas portuguesas, onde um básico só tem de saber dizer o nome sem se enganar, estar inscrito numa agência de modelos... e anda cá que és actor. è o que se vê.....
Ok...e o que fazem os inúmeros estudantes do Conservatório? Abrem portas? Servem cafés?
Portugal é um pequeno lugar, mal frequentado....
As 3zas Guilhermes da vida, têm o seu lugar, mas não é de certeza no palco.
Eu nem sou de Artes Dramáticas, porque dramático mesmo, é o estado na nossa Arte Dramática.
Fiquem bem, sem 3zas Guilhermes a alucinar....