quarta-feira, junho 08, 2005

Ligação interrompida

Análise a A Voz Humana
Teatro Baiuca
27 a 29 de Maio 2005
Teatro Municipal de Almada

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Escrita por Jean Cocteau em 1930, a breve peça em 1 acto queria-se uma resposta cruel e directa contra a subjugação feminina face ao homem manipulador e uma espécie de libelo a favor da necessidade de reconhecer que uma relação é feita de uma partilha. Recebida com escândalo, a peça foi com o passar dos anos sendo reconhecida como um violento exercício de exposição não só para quem escreveu, mas sobretudo para quem optava encená-la e interpretá-la. No limite, optar por fazer A Voz Humana era relacionar com um percurso pessoal e biográfico uma história de dor, recusa, traição e abandono. Em suma, abraçar um sequestro emocional.

A história é muito simples: uma mulher está em casa à espera de uma chamada do amante. Essa chamada chega e todo o espectáculo se desenvolve a partir da conversa entre os dois. A ligação cai frequentemente e, entretanto, pela forma como a narrativa sucede, vamo-nos dando conta de que esta é uma história já perdida; que aquela mulher se abandonou em nome de um amor; que aquele homem, mas do que ter pena dela, é um masoquista que não a consegue largar.

Nos dias que correm, em que o telefone fixo foi substítuido por correio electrónico, mensagens escritas, telemóveis e chats, apresentar-se uma história dependente da ligação fixa é forçar a um jogo de crença o espectador já quase distanciado dessa realidade. Por isso a força de uma apresentação de A voz humana não pode residir no 'arqueológico' objecto, mas antes numa procura de universalização dos sentimentos. E será através da manipulação desse conhecimento que a proposta se justificará. Até porque sendo este texto um ícone da dramaturgia mundial, os exemplos são diversos (os mais famosos incluem a ópera de Francis Poulenc e o filme de Pedro Almodovár, A Lei do Desejo) e as comparações inevitáveis.

A voz humana é um difícil exercício de concentração teatral, em que o/a protagonista é forçado/a a uma dupla representação. Para quem fala do outro lado do telefone e para quem o vê na plateia. Será, no entanto, um erro achar-se que as duas exposições são equivalentes, uma vez que a acção se passa, efectivamente do lado do telefone que não vemos. Ou seja, a encenação deverá dar-nos conta (obviamente através do protagonista) da dimensão e poder de quem lhe liga. Esse elemento ausente que faz desencadear toda a acção deverá servir para que o espectador reconheça nos seus gestos toda uma atitude e comportamentos que levam à subjugação da mulher. Portanto, Jean Cocteau procede a uma subtil manipulação das responsabilidades, dando ao espectador a capacidade de perceber a dimensão dos seus actos, logo, do mal que é capaz de fazer a quem ama.

Esta é, ainda, uma proposta de ocupação de um espaço vazio. E um espaço que está vazio por não fazer sentido sem a presença do outro. Por isso, este não é um texto que se permita à observação, mas antes à reflexão. Ou seja, obriga quem vê a fazer da personagem principal uma espécie de motor reflexivo para a sua própria vida. A voz humana procura preencher o imenso silêncio de um fim de relação e, ainda assim, adiá-lo. É uma proposta que se quer urgente, contra o tempo e o mais próxima do real possível. Este não é um texto de ilustração, este é um texto em carne viva.

Nesse sentido, qualquer encenação deverá ter em conta que importa menos a representação para o público mas antes uma para a voz invisível. Como se na verdade 'ele' pudesse ver o que se passa no quarto abandonado. De nada serve por isso uma contextualização para o público ou um trabalho de ocupação de espaço que não compreenda que se está a representar para um ausente. E que esse ausente não é o espectador. No limite, esta é uma proposta que se quer representada de costas.

O Teatro Baiuca aposta numa dupla alteração da sexualidade do protagonista. De mulher passam para homem e de homem para transsexual. Pode levantar-se todo um discurso sobre a diferenciação de géneros e a representação dos mesmos em palco. Não tanto por uma questão de comparação no nível da cedência, mas mais na uniformização que se falava atrás. Até porque basta recordar o espectáculo homónimo feito por Pedro Assis há alguns anos atrás, para percebermos que A voz humana é um texto eminentemente homossexual e cuja estrutura o denuncia constantemente. A opção do Teatro Baiuca radica-se noutro ponto, menos preocupado em definir o género, até porque é assumida a relação com o transsexual interpretado por Carmen Maura em A Lei do Desejo. O que não é um problema em si mesmo (as influências cinematográficas são inevitáveis), mas antes um desafio. Como reconhecer a influência e partir dela?

Tendo como ponto de partida uma paleta de emoções, a opção radica na exploração da comicidade. O trabalho de direcção do espectáculo aposta numa figura que arregala os olhos, mas se esquece que tem um corpo que pulsa de desejo; preenche o espaço de adereços (cama, canapé, biombo, cadeirão, mesa, quadros, mala, cabide...) mas não os utiliza; e sugere uma provocação do público que, pelas razões apontadas atrás não funciona. E no entanto, durante o espectáculo vai denunciando outros níveis de leitura (as breves 'coreografias chinesas'), mas não os explora. Ou seja, parecem não compreender o potencial à sua disposição, antes preferindo concentrar-se numa versão feita de medo e pouca audácia.

O que o Teatro Baiuca faz não é tanto uma leitura de A voz humana, mas mais uma ilustração que recusa esta ideia de sobreposição de planos para apostar numa caricatura do sequestro emocional. Tal deve-se a uma completa ausência de percepção do que é a ocupação de um espaço, no que esse espaço representa de vazio e silencioso abandono. As duas encenadoras limitam-se a colocar Fernando Marques em determinadas posições, para nelas fazer pouco mais que estar. E um estar que não é inquietante, que não é sufocante, que não é apreensivo. Um estar que não reconhece o peso de cada gesto e que recusa a ideia de observação. Um estar feito para quem vê e não para quem ouve. O actor é assim abandonado a uma frágil e ineficaz direcção, cabendo-lhe sustentar-se naquilo que são os poucos recursos que tem. Fernando Marques sujeita-se a um exercício de exposição inconsciente, fazendo valer a proposta pela forma como (mesmo com dificuldades próprias) consegue cativar o espectador. Não por pena, mas porque, às vezes, denuncia essa dimensão biográfica que sustenta A voz humana.

Outros aspectos fragilizam a proposta (anacronismo de som, inexistente desenho de luz, fotografia a fazer as vezes de paisagem) que, se for vista como um exercício paródico sobre a cedência amorosa pode até encontrar junto do público momentos de pura diversão. Tal deve-se ao trabalho do actor que, consciente do caos que o rodeia vai ganhando confiança ao longo da apresentação, incluindo um procurar desse 'estar' no espaço vazio. Em resumo falta a esta proposta um outro nível de credibilidade, que passe por um equilíbrio entre a distância e a ansiedade e, no limite, resgate aquela mulher do masoquismo do amante. Ou seja, que reconheça naquela mulher a tomada de consciência do que já fez por aquele homem e assuma que a indiferença de algumas passagens não é mais que uma tentativa de devolução de amor-próprio.

A voz humana
a partir da obra de Jean Cocteau Interpretação: Fernando Marques Direcção de actor: Filipa Moraes, Rita Camarinhas Adaptação e Dramaturgia: Irene Rodrigues Maquilhagem e Cabelos: AlecKs Rodrigues Concepção gráfica: Hélio Catarino
27 a 29 de Maio 2005
Teatro Municipal de Almada

2 comentários:

David Santos disse...

parabens pelo Blog está fantástico

David (Matiné)
http://www.matine.blogspot.com

João Amaro Correia disse...

tembém eu dou os meus parabéns por este blog! serviço público! e do bom!
http://hardblog.blogspot.com/