Há duas formas de abordar as propostas que Carlota Lagido, Miguel Bonneville e Rafael Alvarez apresentam, hoje e amanhã, no âmbito do 6º NÚMERO Festival – Festival de Multimédia, Filme e Música de Lisboa. Ou buscamos nos seus discursos uma relação com o tema do festival, Jogos Neurológicos, ou tentamos perceber como se cruzam discursos individuais que, em comum, têm a partilha de um mesmo espaço de ensaio (Eira 33), algumas influências temáticas e a pertença, não só ao mesmo universo criativo, a dança, mas também ao local de trabalho e investigação mais facilmente reconhecível, a estrutura EIRA, da qual são os três membros do núcleo artístico.
Para os três performers, a resposta a esta dúvida é simples: coincidência. Nenhum dos trabalhos foi uma encomenda do festival, e menos ainda teve como base o tema escolhido. Mesmo que, para o programador do NÚMERO, Dinis Guarda, algumas relações sejam óbvias, revela Rafael Alvarez sustentando que “nem todos os jogos neurológicos desembocam na tecnologia”. São, por isso, propostas que vão mais ao encontro daquilo que são as questões dos criadores, que propriamente uma resposta à vontade da programação.
Alvarez fala na utilização de objectos, dando-lhes diferentes backgrounds, de modo a que o espectador possa ‘criar’ o seu próprio universo. Há em Última Chamada (Teatro Taborda, 10 Novembro, 22h00) uma vontade de manipular o quotidiano individual, de modo a transformá-lo numa base comum referencial. No fundo, “procurar um modelo mais básico de trabalho em palco, mais rudimentar. Fugir à forma e ao virtuosismo”. O performer, colaborador habitual do NÚMERO Festival, com instalações ou trabalho de cenografia, fala da dificuldade em apresentar ao público conceitos como work-in-progress, laboratório ou experimentação, já que há o hábito de encarar cada apresentação como um objecto finalizado. “Faz falta pensar”, diz.
É também essa uma das ‘lutas’ de Miguel Bonneville, que com Minnie Mouse/Concepto House (Teatro Taborda, 09 Novembro, 22h00), numa tentativa de aproximar o seu universo ao tema do festival, volta a abordar a questão da formatação das recepções, dos modelos convencionais nos quais os espectáculos se organizam, e, sobretudo, na desmedida rotulagem que coloca os criadores em “caixinhas”. Bonneville desenvolve três conceitos “frios” (Minnie Mouse/Concepto House/Perhaps) para reflectir sobre os espectáculos existentes dentro deles, pegando “nas modas e no que me irrita. Gozar com elas, desta vez sem saltos altos”, diz o performer mesmo que assuma não se sentir muito preocupado com a forma como está a ser recebido pelo contexto criativo.
Uma recepção que tem sido feita de sobre-exposições que, à medida que prosseguem numa tentativa de encaixe, mais não fazem que circunscrever o campo de acção de um criador. Sobretudo porque este performer se apresenta isolado naquilo a que se pode chamar de ‘novíssima geração’, ao contrário do que aconteceu com outros nomes há alguns anos atrás, que, por hipótese de confrontação, foram poupados ao name-dropping de conceitos. “Se estou isolado, posso fazer o que quiser. Preocupar limita-me”, diz. Quase que se poderia dizer que se fosse político, assinaria o célebre imperativo “deixem-me trabalhar”. Mas Miguel Bonneville não é político e para ele o seu trabalho enquanto criador que experimenta é mais importante. “Eu não tenho que propor nada. Chamem-me videasta, da dança, do teatro, da performance… quero lá saber…”.
Carlota Lagido também ‘não quer saber’, mas para esta criadora, da geração anterior a Bonneville e Alvarez, a rotulagem é algo com a qual lida muito bem. “Mas porque ‘eles’ [os críticos] não sabem como me catalogar. A melhor que conseguiram foi dizer que sou híbrida. O que é ser híbrida?” Lagido lança a pergunta, enquanto se prepara para decidir se vai participar em B.B.2 (Teatro Taborda, 09 Novembro, 22h00), ao lado da sua irmã Bárbara. É que ainda lhe custa enfrentar o palco, depois de um acidente no qual se lesionou. E o seu trabalho tem vindo a reflectir esse lugar do corpo enquanto pertença de um indivíduo e não a uma máquina. Razão pela qual o corpo que se apresenta no palco do Taborda representa um discurso sobre o corpo, a dança e o movimento, sem que seja tudo explícito. Esta criação, criada em 2000 para o agora extinto Encontros ACARTE, da Fundação Calouste Gulbenkian, foi desenvolvida, e mesmo que a imagem de Betty Boop continue lá, está já longe da origem. Ainda assim, mantêm-se o puritanismo e a revolta, o feminismo e o discurso contra “uma certa América” opressiva.
Como aliás continua nos trabalhos de Alvarez e Bonneville uma forma de construção comum, referencial e solitária, ou mesmo uma reivindicação sobre o lugar do género na criação. Mas se Bonneville tende a recusar a classificação como ‘criador de espectáculos sobre o género’, já Alvarez assume que um percurso criativo reflecte uma tipologia. Mas mais importante que isso, diz, é que “as leituras devem ser feitas por quem vê e não por quem mostra”. Por isso mesmo, o conforto em se enquadrarem num festival com um tema específico, mesmo que aquilo que apresentam seja menos sobre isso e mais sobre uma urgência.
Sejam eles criadores de artes performativas, de ‘artes do corpo’ ou “simplemente criadores”, em Carlota Lagido, Miguel Bonneville e Rafael Alvarez, há a consciência de que trabalham em relação directa com o público e no momento exacto da apresentação. É esse momento e o que nele se cria que importa. Porque é aí que o trabalho se legitima e valida. Mais do que isso são hipóteses e especulações que, por vezes, não dizem nada sobre o espectáculo.
2 comentários:
coincidência?!
não é uma coincidência...
a coincidência está no facto de as três propostas existirem para lá do festival, não serem uma encomenda e estarem presentes só por escolha do programador. não foi intenção dos criadores apresentarem-se assim.
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