Eliane Dheygere é, desde há dez anos, directora do Le Vivat – Scéne Conventionée, um teatro em Armentiéres, França, na região de Lille (cerca de uma hora de Paris). A sua programação tem-se distinguido, sobretudo, no domínio da dança através da apresentação de espectáculos particulares de coreógrafos cujo trabalho circula pouco. Casos como «I wouldn’t be seen dead in that!», de Steven Cohen & Elu, em 2004, ou a mini-retrospectiva que vai apresentar do canadiano Benôit Lachambre na próxima edição do Vivat la Danse, deram-lhe a notoriedade internacional. A tal ponto que a programadora não hesitou em co-produzir, em estreia mundial, a última peça do coreógrafo português Tiago Guedes, naquele que seria o passo decisivo para o convite de uma residência artística de três anos, 2006-2008. Nesta conversa, que decorreu após a edição deste ano do Vivat la danse, Eliane Dheygere fala do Le Vivat como um espaço para uma programação própria e assinada, implicada com a região onde se insere e, sobretudo, interessada em estabelecer laços com os restantes agentes. A conversa prossegue o ciclo temático com programadores, A ponta do Iceberg II, que O Melhor Anjo está a publicar, todas as segundas-feiras, durante o mês de Outubro.
«Mais do que um artista, um programador é um pedagogo» - uma conversa com Eliane Dheygere
Que coordenadas são definidas para o festival Vivat la Danse que se distinguem da programação para o resto da temporada?
Eu nunca tenho linhas directivas. De cada vez que tento trabalhar um tema acabo por abandonar a ideia. A temática faz-se por si e nem sequer tem que existir em todos os espectáculos. Há coisas que são do air du temps. Eu prefiro chamar a equipa com quem trabalho, alguns artistas, alguns jornalistas cujo trabalho aprecio para discutirmos em conjunto o que anda a ser feito. Isto quer dizer que o festival não é necessariamente aquilo que eu gostaria de mostrar exclusivamente.
A programação da temporada funciona da mesma forma?
Há diferenças sim. É muito importante que a par de uma programação tão precisa na área da dança exista uma outra, como no teatro, que é feita por uma companhia local associada, Les Fous à Reaction, que tem um trabalho já desenvolvido no terreno muito importante. E é ainda importante que eu continue a programar música de diferentes estilos.
As escolhas são filtradas pelo teu gosto pessoal ou porque são importantes apresentar-se aqui?
As duas coisas. Creio que não poderia programar um espectáculo de que não gostasse, sobretudo porque não o saberia defender. É claro que às vezes preciso programar algo que equilibre a programação, que seja menos conceptual, que seja menos condicionada no gosto ou levante menos questões, porque tenho que pensar no público. O público de Armentiéres que, ao princípio, não vinha ver dança, foi com o tempo aproximando-se do Le Vivat, por curiosidade. Mas não programo nada que vá contra aquilo em que acredito. Gosto da diversidade. Ou seja, acredito que faço uma programação aberta que é representativa do que se está a passar actualmente e que não depende de um olhar demasiado, digamos, profissional ou preciso. Permito-me a não programar coisas que acho que são mais difíceis de entender, mais inclassificáveis.
Há escolhas que um programador faz.
Actualmente preocupo-me com o poder da imagem e isso certamente que está presente nas minhas escolhas. Eu vejo imensos espectáculos, mais de cem por ano, sigo o percurso de companhias cujo trabalho aprecio. Ainda que eu ache importante programar coisas diferentes, porque há públicos diferentes, sou bastante fiel aos coreógrafos cujo trabalho aprecio. E depois, há um momento em que começo a pensar que é verdadeiramente importante mostrar isto e isto… Há outras condicionantes. Desde logo os espaços de apresentação, não só em termos técnicos mas também pensar que espaços podem ainda ser apresentados de novas formas ao público desta cidade.
Pergunto isto por causa do papel e do poder que um programador pode ter, tanto ao nível do público, como para os artistas.
Eu dedico bastante tempo na gerência do trabalho de equipa, já que é muito importante que a equipa esteja convencia do projecto artístico que vai defender. Isso faz-se com a equipa e com o artista. Tenho um projecto de desenvolvimento artístico cujo objectivo principal é a reunião do maior número de público em torno de um espectáculo. Mais do que um artista, um programador é um pedagogo, porque eu sei que a escolha de um espectáculo vai produzir um determinado efeito. Como sei que não é fácil aceder a um determinado tipo de espectáculos, reflicto sobre tudo o que pode ser feito para tornar possível esse acesso. O poder de um programador deve ser utilizado para mostrar as coisas mais variadas, uma vez que lida com dinheiros públicos que devem ser recuperados. Quando comecei a programar não havia qualquer apoio para a programação de dança e agora há orçamentos específicos para esta área da parte do Estado, da Região, do Departamento, de vários parceiros. Não há só uma forma de dança ou uma só estética. Há programadores que estão permanentemente à procura da próxima novidade, essa “pérola rara” que irá mudar as coisas.
É contudo uma preocupação para muitos programadores garantir que a estreia de um espectáculo que co-produziram aconteça no seu festival ou no seu espaço.
Eu prefiro ter espectáculos. Já ao longo do ano é diferente, pois tanto posso ter estreias como ter simples apresentações. Acho que não é confortável para um artista fazer uma estreia num festival. De qualquer forma não tenho nem os meios nem os espaços para o fazer. Posso sim fazer isso numa outra altura, quando não estão a acontecer tantas coisas, mas não durante um festival. Posso, às vezes, fazer uma estreia mas não posso monopolizar o teatro quinze dias antes de um festival para uma companhia.
Há, da parte da Mairie [Câmara Municipal], algum tipo de directrizes que condicionem a programação?
Não é sequer justo que tal aconteça. Fazer concessões é querer transformar uma programação num acumular de espectáculos que não se assemelha a nada. Mas quando crês naquilo que fazes, acabam por perceber a importância do teu trabalho. No início foi duro porque tínhamos 60 pessoas na sala mas agora há um maior equilíbrio e uma muito maior procura. Por isso, a aposta está ganha. Temos a confiança dos políticos Eu tenho linhas orçamentais para cada área que me dizem quantos espectáculos de dança, de música ou de teatro posso apresentar. Digamos que cerca de 40% vai para a dança, 30 % para o teatro e 30% para o resto.
Essa é uma preocupação a pensar na concorrência, já que estando a 15 minutos de Lille, e a uma hora de Paris a escolha do público é mais variada?
Na Região [Nord-Pas-de-Calais] os teatros são complementares uns dos outros. Há espaços, como a Ópera que apresenta peças mais emblemáticas de coreógrafos mais conhecidos, e outros que tendo artistas residentes, como o de Carolyn Carlson [Centre Corégraphique Roubaix Nord-Pas-de-Calais] que apresentam as suas próprias criações. O Danse à Lille apresenta espectáculos de dança de pequeno formato e nós apresentamos espectáculos de criadores e companhias com notoriedade média. Creio entre a Ópera, o Danse à Lille e o Latitudes Contemporaines, somos reconhecidos por uma programação pertinente e precisa. Não temos concorrência directa. Eu tive a iniciativa de propor encontros anuais, uma ou duas vezes ao ano, onde trocamos informações sobre o que vamos apresentar. Sobretudo para evitar estreias ao mesmo tempo. Às vezes tentamos fazer coisas em conjunto.
A imagem do Le Vivat é mais facilmente reconhecida na dança que nas outras áreas.
Sim, é um pouco assim. A imagem do Le Vivat, sobretudo fora da cidade, na área metropolitana e a nível internacional, está muito mais ligada à dança. Cá dentro a imagem inclui o teatro, especialmente por causa da companhia que connosco trabalha, Les Fous à Reàction.
As preocupações são as mesmas nas escolhas de teatro e dança?
Não, sobretudo porque no que diz respeito ao teatro há muito mais concorrência na Região e na área metropolitana de Lille e nós não temos os meios para apresentar uma programação tão precisa como na dança. No teatro tento mostrar coisas mais variadas e que me possam diferenciar do que se possa passar no Thèâtre du Nord, por exemplo. Faço escolhas que recaem num “teatro familiar”, teatro de objectos, um pouco de circo, teatro político/militante…
E qual a reacção do público à programação?
Na maioria é um público entusiasta e dinâmico. Cerca de 50% é da cidade e a outra metade da Região e de fora de Região. No caso da dança talvez seja 60-40, com predominância para os de fora da cidade. Mas já é o inverso para os outros géneros. Muitas vezes é o próprio público que, no fim do festival, me aborda e diz que eu notou uma certa tendência ou uma certa temática, algumas vezes coisas que eu própria nem vi ou nem me apercebi. Às vezes queixam-se de que há demasiada dança, ou dizem que não vão ver porque não conhecem este ou aquele nome e gostavam mais de ter outra “variedade”. Creio que é diversificado. Mas eu tenho a confiança da Mairie e, ao mesmo tempo, eu presto muita atenção ao equilíbrio da programação. E depois há um trabalho de formação de públicos. Muitas vezes, quando me apercebo que um espectáculo de dança ou de teatro funciona com as escolas, tratamos de trabalhar em conjunto.
Esta conversa decorreu em Fevereiro 2006, no âmbito de uma residência de observação no Le Vivat. O texto foi escrito com o apoio do Roberto Cimetta Fund.
Ler crítica à 9º edição do festival Vivat la Danse publicada no site da revista Mouvement
«Mais do que um artista, um programador é um pedagogo» - uma conversa com Eliane Dheygere
Que coordenadas são definidas para o festival Vivat la Danse que se distinguem da programação para o resto da temporada?
Eu nunca tenho linhas directivas. De cada vez que tento trabalhar um tema acabo por abandonar a ideia. A temática faz-se por si e nem sequer tem que existir em todos os espectáculos. Há coisas que são do air du temps. Eu prefiro chamar a equipa com quem trabalho, alguns artistas, alguns jornalistas cujo trabalho aprecio para discutirmos em conjunto o que anda a ser feito. Isto quer dizer que o festival não é necessariamente aquilo que eu gostaria de mostrar exclusivamente.
A programação da temporada funciona da mesma forma?
Há diferenças sim. É muito importante que a par de uma programação tão precisa na área da dança exista uma outra, como no teatro, que é feita por uma companhia local associada, Les Fous à Reaction, que tem um trabalho já desenvolvido no terreno muito importante. E é ainda importante que eu continue a programar música de diferentes estilos.
As escolhas são filtradas pelo teu gosto pessoal ou porque são importantes apresentar-se aqui?
As duas coisas. Creio que não poderia programar um espectáculo de que não gostasse, sobretudo porque não o saberia defender. É claro que às vezes preciso programar algo que equilibre a programação, que seja menos conceptual, que seja menos condicionada no gosto ou levante menos questões, porque tenho que pensar no público. O público de Armentiéres que, ao princípio, não vinha ver dança, foi com o tempo aproximando-se do Le Vivat, por curiosidade. Mas não programo nada que vá contra aquilo em que acredito. Gosto da diversidade. Ou seja, acredito que faço uma programação aberta que é representativa do que se está a passar actualmente e que não depende de um olhar demasiado, digamos, profissional ou preciso. Permito-me a não programar coisas que acho que são mais difíceis de entender, mais inclassificáveis.
Há escolhas que um programador faz.
Actualmente preocupo-me com o poder da imagem e isso certamente que está presente nas minhas escolhas. Eu vejo imensos espectáculos, mais de cem por ano, sigo o percurso de companhias cujo trabalho aprecio. Ainda que eu ache importante programar coisas diferentes, porque há públicos diferentes, sou bastante fiel aos coreógrafos cujo trabalho aprecio. E depois, há um momento em que começo a pensar que é verdadeiramente importante mostrar isto e isto… Há outras condicionantes. Desde logo os espaços de apresentação, não só em termos técnicos mas também pensar que espaços podem ainda ser apresentados de novas formas ao público desta cidade.
Pergunto isto por causa do papel e do poder que um programador pode ter, tanto ao nível do público, como para os artistas.
Eu dedico bastante tempo na gerência do trabalho de equipa, já que é muito importante que a equipa esteja convencia do projecto artístico que vai defender. Isso faz-se com a equipa e com o artista. Tenho um projecto de desenvolvimento artístico cujo objectivo principal é a reunião do maior número de público em torno de um espectáculo. Mais do que um artista, um programador é um pedagogo, porque eu sei que a escolha de um espectáculo vai produzir um determinado efeito. Como sei que não é fácil aceder a um determinado tipo de espectáculos, reflicto sobre tudo o que pode ser feito para tornar possível esse acesso. O poder de um programador deve ser utilizado para mostrar as coisas mais variadas, uma vez que lida com dinheiros públicos que devem ser recuperados. Quando comecei a programar não havia qualquer apoio para a programação de dança e agora há orçamentos específicos para esta área da parte do Estado, da Região, do Departamento, de vários parceiros. Não há só uma forma de dança ou uma só estética. Há programadores que estão permanentemente à procura da próxima novidade, essa “pérola rara” que irá mudar as coisas.
É contudo uma preocupação para muitos programadores garantir que a estreia de um espectáculo que co-produziram aconteça no seu festival ou no seu espaço.
Eu prefiro ter espectáculos. Já ao longo do ano é diferente, pois tanto posso ter estreias como ter simples apresentações. Acho que não é confortável para um artista fazer uma estreia num festival. De qualquer forma não tenho nem os meios nem os espaços para o fazer. Posso sim fazer isso numa outra altura, quando não estão a acontecer tantas coisas, mas não durante um festival. Posso, às vezes, fazer uma estreia mas não posso monopolizar o teatro quinze dias antes de um festival para uma companhia.
Há, da parte da Mairie [Câmara Municipal], algum tipo de directrizes que condicionem a programação?
Não é sequer justo que tal aconteça. Fazer concessões é querer transformar uma programação num acumular de espectáculos que não se assemelha a nada. Mas quando crês naquilo que fazes, acabam por perceber a importância do teu trabalho. No início foi duro porque tínhamos 60 pessoas na sala mas agora há um maior equilíbrio e uma muito maior procura. Por isso, a aposta está ganha. Temos a confiança dos políticos Eu tenho linhas orçamentais para cada área que me dizem quantos espectáculos de dança, de música ou de teatro posso apresentar. Digamos que cerca de 40% vai para a dança, 30 % para o teatro e 30% para o resto.
Essa é uma preocupação a pensar na concorrência, já que estando a 15 minutos de Lille, e a uma hora de Paris a escolha do público é mais variada?
Na Região [Nord-Pas-de-Calais] os teatros são complementares uns dos outros. Há espaços, como a Ópera que apresenta peças mais emblemáticas de coreógrafos mais conhecidos, e outros que tendo artistas residentes, como o de Carolyn Carlson [Centre Corégraphique Roubaix Nord-Pas-de-Calais] que apresentam as suas próprias criações. O Danse à Lille apresenta espectáculos de dança de pequeno formato e nós apresentamos espectáculos de criadores e companhias com notoriedade média. Creio entre a Ópera, o Danse à Lille e o Latitudes Contemporaines, somos reconhecidos por uma programação pertinente e precisa. Não temos concorrência directa. Eu tive a iniciativa de propor encontros anuais, uma ou duas vezes ao ano, onde trocamos informações sobre o que vamos apresentar. Sobretudo para evitar estreias ao mesmo tempo. Às vezes tentamos fazer coisas em conjunto.
A imagem do Le Vivat é mais facilmente reconhecida na dança que nas outras áreas.
Sim, é um pouco assim. A imagem do Le Vivat, sobretudo fora da cidade, na área metropolitana e a nível internacional, está muito mais ligada à dança. Cá dentro a imagem inclui o teatro, especialmente por causa da companhia que connosco trabalha, Les Fous à Reàction.
As preocupações são as mesmas nas escolhas de teatro e dança?
Não, sobretudo porque no que diz respeito ao teatro há muito mais concorrência na Região e na área metropolitana de Lille e nós não temos os meios para apresentar uma programação tão precisa como na dança. No teatro tento mostrar coisas mais variadas e que me possam diferenciar do que se possa passar no Thèâtre du Nord, por exemplo. Faço escolhas que recaem num “teatro familiar”, teatro de objectos, um pouco de circo, teatro político/militante…
E qual a reacção do público à programação?
Na maioria é um público entusiasta e dinâmico. Cerca de 50% é da cidade e a outra metade da Região e de fora de Região. No caso da dança talvez seja 60-40, com predominância para os de fora da cidade. Mas já é o inverso para os outros géneros. Muitas vezes é o próprio público que, no fim do festival, me aborda e diz que eu notou uma certa tendência ou uma certa temática, algumas vezes coisas que eu própria nem vi ou nem me apercebi. Às vezes queixam-se de que há demasiada dança, ou dizem que não vão ver porque não conhecem este ou aquele nome e gostavam mais de ter outra “variedade”. Creio que é diversificado. Mas eu tenho a confiança da Mairie e, ao mesmo tempo, eu presto muita atenção ao equilíbrio da programação. E depois há um trabalho de formação de públicos. Muitas vezes, quando me apercebo que um espectáculo de dança ou de teatro funciona com as escolas, tratamos de trabalhar em conjunto.
Esta conversa decorreu em Fevereiro 2006, no âmbito de uma residência de observação no Le Vivat. O texto foi escrito com o apoio do Roberto Cimetta Fund.
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Ler entrevista ao coreógrafo Tiago Guedes, artistas residente do Le Vivat
Ler artigo sobre o processo criativo de Dido & Eneias – uma aproximação, criado em Armentiéres, em Fevereiro 2006
Ler outras entrevistas a programadores franceses incluídas no dossier A ponta do Iceberg II: Marie Collins, directora artística para o teatro e dança do Festival d’Automne à Paris; Olivier Bertrand, assessor artístico do Thèâtre de la Bastille. Este dossier conclui-se na próxima segunda-feira com uma entrevista ao coreógrafo Frédéric Flamand, director do Ballet National de Marseille/Centre Coregraphique de Marseille
Ler dossier A ponta do Iceberg I com entrevistas aos programadores Diogo Infante, Francisco Frazão, Giacomo Scalisi, Jorge Salavisa e Marta Furtado.
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