Marie Collin (em fotografia de arquivo, junto a cartazes do Festival...) é, desde 1980, directora artística para o teatro e dança do Festival d’Automne à Paris que este ano completa 35 edições. Dirigido por Alain Crombecque, o Festival... tem sido responsável pela apresentação em Paris de nomes fundamentais da criação contemporânea, muitos deles pela primeira vez na Europa. Movimentando cerca de 3 milhões de euros, que se dividem por quase 40 espectáculos, entre teatro, dança, música, artes plásticas e debates, cada edição do Festival d’Automne procura abrir, a uma cidade que parece ter tudo, pistas para a compreensão dos discursos dos criadores, sejam eles consagrados ou newcomers. Por uns visto como uma instituição elitista, por outros como uma verdadeira escola de observação, o certo é que o Festival d’Automne, a cada edição que passa, transforma Paris no epicentro da criação contemporânea. Durante três meses os vários espaços da cidade, da Ópera ao Centre Pompidou, do Thèâtre de la Bastille ao la Colline, do Odéon a espaços fora da capital enchem-se de espectáculos, numa orgia artística na qual apetece reincidir permanentemente. Nesta conversa exclusiva, decorrida no dia em que abria o Festival…, Marie Collin apresenta as linhas fortes da programação, fala do Festival… e da sua relação com os artistas, e dá conta da responsabilidade de gerir um evento tão grandioso que há trinta e cinco anos procura combater a ideia de institucionalização.
"O risco também existe do nosso lado" - uma conversa com Marie Collin
No editorial de apresentação do Festival... recusam a ideia de comemoração. Mas 35 anos de Festival d’Automne à Paris devem dar muitos motivos de celebração.
Porque a ideia de comemoração assemelha-se muito a algo morto, fechado, que não se questiona.
E como é que o Festival… se questiona?
Tentamos encontrar e criar, principalmente, um sentido de conjunto na programação, seja em que disciplina for. E assim elaborar um programa que crie sinergias intelectuais e artísticas - umas vezes mais outras menos, claro.
Cinco anos depois do 11 de Setembro, e ecoando ainda a frase em editorial do Le Monde «Somos todos americanos», não deixa de se poder fazer uma leitura social e política à programação desta ano, que propõe a redescoberta de uma cena artística americana.
Esta história de aniversário pode ser um pouco tola, mas mesmo assim, podemos dizer que trinta e cinco festivais depois quisemos saber onde é que estava a cena americana, que para nós é e sempre foi realmente excitante. Em 1972, a 1ª edição do Festival… trouxe artistas americanos que, nessa época, eram totalmente desconhecidos na França e na Europa. Falo de nomes como Richard Foreman, Merce Cunningham, Bob Wilson, Trisha Brown ou Yvonne Rainer. Trinta e cinco anos depois, podemos pensar neste regresso à América como um acto sentimental e anedótico, e podemos até considerar que a cena americana é hoje menos interessante. Mas mesmo que o seja há sempre personalidades que achamos extraordinárias.
Daí o regresso dos «amores antigos» a que se referem no mesmo editorial, como Bob Wilson, por exemplo [Quartett, Odéon, 28 Setembro a 02 Dezembro].
Quando falamos dos artistas americanos, como é o caso, nós temos orgulho de poder ter acompanhado, ao longo do tempo, o trabalho e as obras de certos coreógrafos e encenadores. Houve momentos em que alguns destes artistas estavam no seu ponto máximo de criatividade, sendo que em cada ano eles estavam cá. Bob Wilson é um exemplo, claro, mas mesmo assim não deixa de ser uma aposta nova, pois são criadores que mudaram qualquer coisa na cena mundial. É sempre interessante ver onde vão, onde estão, o que se passa… E fazer essa análise comparada com outros nomes novos, como Caden Mason/Big Art Group [Dead Set #2, Maison des Arts de Cretéil, 17 a 21 Outubro] ou Richard Maxwell [Showcase, local a indicar 11 a 14 Outubro; Good Samaritans, Centre Pompidou, 11 a 14 Outubro], ambos espectáculos que co-produzimos, e que são propostas implicadas politicamente. Good Samaritans é um espéctaculo que fala da sociedade americana, mas também da nossa, uma vez que se passa num foyer da SDF [serviço aos sem domicílio], um género de organismo que é normalmente dirigido por um “iluminado” religioso, que nos EUA existem bastantes. Em França esse é um debate importante, porque levanta questões sobre o apoio social e o aproveitamento religioso que dele se faz.
Portanto, não é o mapeamento de uma identidade americana que propõem.
Não, nós nunca fazemos isso. São sempre propostas de artistas, projectos artísticos, sempre, sempre… Nesta programação são cinco, seis artistas, coreógrafos, encenadores, escritores, cineastas, que falam da sua América, o seu mundo, é isso. Ora, evidentemente, isto é um olhar crítico pessoal e assinado. É uma nova história, uma nova aventura.
Perguntava-me se a expressão «amores antigos» não seria um eufemismo para dizer valores seguros de programação. E penso em Bob Wilson, mas também William Forsythe [com Peter Welz, Retranslation of Francis Bacon’s Unfinished Portrait, Museu do Louvre, 13 Outubro a 11 Dezembro] ou o Wooster Group [Hamlet, Centre Pompidou, 04 a 10 Novembro].
Não …Ao fim destes trinta e cinco anos há artistas que marcam e que assinam o Festival d’ Automne. É evidente que é menos difícil de encontrar um público, um teatro hoje em dia para Merce Cunningham, Bob Wilson ou todos esses americanos, se falarmos só deles.
Porque trinta e cinco anos passados tem que haver algumas facilidades…
[encolhe os ombros e suspira] Digamos que é mais fácil a relação com os parceiros. Para o apoio mecenático, por exemplo, todos os anos, para cada projecto, buscamos o apoio mais adequado. Estamos sempre a começar…
Há, ainda assim, uma espécie de “marca registrada” que permite trazer certos nomes e encontrar os lugares adequados para os apresentar.
Sim… mas depende dos artistas. Romeo Casteluci por exemplo, que vem ao festival pela 4ª vez [Hey Girl!, Odéon, 16 a 25 Novembro], não é um nome consensual ou fácil de trazer. Temos que encontrar as co-produções certas. E não seria possível fazê-lo de outra forma. Simplesmente não podemos faze-lo de outro modo. Caso contrário teria quatro projectos em todo o festival. E isto inclui tanto as encomendas como os espectáculos já criados. De qualquer forma é essa a tendência generalizada. Talvez com a excepção das grandes óperas que produzem sozinhas, mas que cada vez menos o fazem. E no que diz respeito ao público é muito mais duro porque havendo mil coisas a acontecer em Paris ao mesmo tempo, a escolha nunca é fácil perante propostas sobre as quais o público não sabe nada.
Contudo há pessoas que se formaram com o Festival d’Automne…
Há sim [risos]. Eu sou uma delas.
… e que vos garantem uma base fiel de público. Ainda procuram um público ou…
Oh sim. Como um festival, um público também se constrói… permanentemente. Procuramos, procuramos, procuramos. É por isso que lhe digo ser necessário começar sempre uma vez mais. È de tal forma diferente em cada ano que passa que nunca deixa de ser difícil. Ainda assim, o público constitui 35% das nossas receitas.
Para que público trabalham?
Para todos. Há coisas muito populares e outras menos acessíveis. Há umas feitas por artistas que estão a começar e que procuram um público que também esteja a começar, como é o caso de Les Histrions [Marion Aubert/Richard Mitou, Thèâtre de la Colline, 19 Setembro a 28 Outubro] , onde a idade dos intérpretes é a mesma dos espectadores. E isso é novo em França. Não há mais do que quatro ou cinco grupos assim…
Numa altura em que se questiona, de forma permanente, o papel dos festivais, que tanto podem ser vir de ponte entre o contexto cultural onde se realiza e o exterior, como de espelho desse mesmo contexto, é esse o papel do Festival d’Automne, ser plural mas atento ao que de mais inovador se vai fazendo?
É por isso que nós podemos quase considerar-nos como uma saison. Não há festivais que durem três meses. Por isso procuramos construir um sentido na programação, procurar projectos que sem nós não se fariam. No caso da música, onde estamos praticamente sozinhos a produzir os espectáculos, muitos deles encomendas, temos um papel muito mais evidente a cumprir, já que ninguém o cumpre. Não é por acaso que há artistas que só vem a Paris com o Festival…, seja porque financeiramente os outros festivais não os poderiam apresentar sozinhos, ou porque não concebem que o criador X possa ser apresentado no seu espaço. [O coreógrafo] Boris Charmatz [Quintette Cercle, Centre Pompidou, 29 Novembro a 03 Dezembro], por exemplo, começou no festival. Co-produzimos todas as suas peças, excepto Régi (2006) porque não era nas nossas datas, mas não é um artista consensual. É-lhe mais fácil encontrar apoios para uma soirée de improvisação que para a produção de uma peça.
Isso significa que vocês mais do que os apresentarem, estabelecem laços de confiança com os artistas?
Precisamente porque há artistas que nós ajudamos a criar e que se nós não estivéssemos lá, com as nossas redes de comunicação, o apoio financeiro, os contactos europeus, não existiriam. Por isso, nós temos um papel importante para esses artistas. Talvez seja esse o grande papel do Festival.... Se olharmos para a programação, nos mais de quarenta espectáculos, e sobretudo no domínio da dança, não são muitos os espectáculos apresentados que seriam programados em França se não fossemos nós. Estão aqui alguns dos artistas mais relevantes da cena contemporânea. Charmatz circula muito pouco em França, por exemplo, e é uma das figuras mais brilhantes dos últimos anos. Steven Cohen, por exemplo, só apresentou esta peça, I wouldn’t be seen dead in that! [Centre Pompidou, 20 a 23 Setembro], duas vezes [La Rochelle e Armentiéres]. Mesmo nós demorámos dois anos a programar a peça. Não são peças fáceis de apresentar. Nós escolhemos os espectáculos e os artistas, depois procuramos os lugares adequados para os apresentar.
Verifico que no caso da dança, por exemplo, há apenas um nome francês de entre os 8 espectáculos programados. É uma opção ou é fruto da conjuntura?
Isso depende dos anos. O ano passado tivemos vários nomes franceses, Mathilde Monnier, Júlia Cima… Para o ano teremos muito provavelmente o novo projecto de Alain Buffard que não ficou pronto para este ano. Às vezes trata-se mesmo de uma questão de agendas. Por exemplo, no caso de Vera Mantero [até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza, Centre Pompidou, 15 a 18 Novembro], que estreia em Brest a 8 de Novembro, as datas de apresentação em Paris são perfeitas tanto para ela como para nós. Ela tem tempo de trabalhar… é óptimo. Isso não me incomoda muito. Já prefiro menos quando estreiam em Bruxelas, vão a Avignon, a Montpellier, e depois é que vem ao Festival…. Isso já evito, mas somos um pouco obrigados a uma coordenação de agendas. Mas no teatro, por exemplo, através de um projecto chamado Adami [uma instituição que presta apoios e trabalha no domínio dos direitos autorias], foi possível dar um apoio forte a jovens companhias teatrais francesas. Cem mil euros que não poderiam ser dados aos projectos independentemente e que, no âmbito do Festival, se apresentam como uma força importante na nova encenação francesa [ver na programação de teatro os espectáculos de Bruno Geslin, Louis-Do de Lencquesaing, Joel Jouanneau, Rodolphe Dana e Marcial di Fonzo Bo].
No caso de jovens criadores, há um peso que pode intimidar um artista que, tendo-se apresentado no Festival…, a seguir não esteja à altura do que dele se esperava?
Às vezes acontece sim. Há artistas que só vieram uma vez. Mas é raro. Mas quando as apostas são ganhas isso deixa-nos muito orgulhosos, porque significa que houve um trabalho bem feito. O risco também existe do nosso lado. Programar uma jovem companhia num teatro nacional como o Thèâtre de la Colline durante um mês é um esforço enorme, financeiro e de visibilidade. Por isso, nunca nada está ganho.
Absolutamente. Falamos de uma geração de criadores entre os vinte e os trinta anos que se juntam em grupos e não tem medo de dizer: On y va! [vamos!] E o público, assim espero, segue-os.
Não haverá, contudo, um paradoxo entre essa demanda pela liberdade e o peso legitimador que o Festival sugere?
[risos] É verdade que eles podem perguntar que terão feito de errado para terem o Festival dAutomne a querer programá-los, mas ainda assim, não me parece que se tenham sentido melindrados. No caso de uma outra companhia, [da encenadora Sylvain Creuzevault], que apresentará a peça Baal, de Brecht, no Odéon [05 a 28 Outubro] – e que é outro dos exemplos geracionais a que me referia -, eles próprios me disseram que iriam fazer o espectáculo, mesmo se o Festival… não tivesse aparecido. Ou seja, ninguém se está aqui a moldar a coisa nenhuma.
Essa ideia de resistência das novas companhias não pode deixar de ser associado às lutas dos intermitentes [termo usado em França para designar os trabalhadores do espectáculo independentes que nos últimos anos têm exigido melhores condições de trabalho, tendo para isso feito greve em festivais como Avignon, o que levou a vários cancelamentos]. Que papel pode ter uma instituição como o Festival d’Automne nessa discussão?
Não há escolha possível. Nós damos trabalho aos intermitentes, apesar de não termos um teatro. Se virmos a programação, percebemos que há muitas co-produções com companhias e teatros franceses que trabalham com intermitentes de várias áreas. Nós participamos na economia do espectáculo. Nós não somos como uma estação de televisão que filma um espectáculo e a programa na sua grelha. Eu sei que em todos os teatros com os quais trabalhos, incluindo no Panteão onde instalámos a exposição de Ernesto Neto [Leviathan Thot, 15 Setembro a 31 Dezembro], damos trabalho aos intermitentes. Sobretudo aos profissionais, definição assaz importante. A questão é, contudo, outra. Eu acho muito bem que existam pessoas que saiam à a rua de punho erguido, porque de facto há problemas. Mas se olharmos com atenção para o apoio à cultura em França, verificamos que esse apoio é enorme. Há condições de trabalho. Somos um dos poucos países no mundo onde a cultura e a criação são dos mais apoiados pelo Estado. Não o podemos negar. Veja o vosso caso, em Portugal, que conheço bem através de criadores como a Vera Mantero ou o João Fiadeiro, entre outros. É bastante diferente da França. Não é por acaso que eles co-produzem espectáculos com a França, os elaboram e estreiam aqui. E eu só falo de nomes já reconhecidos. Sei bem que a situação para outros que começam agora é ainda mais difícil.
É, de facto, e por isso mesmo não comparável. Até pela relação com o poder político. Por isso, considerado enquanto instituição cultural, este é o festival oficial da cidade de Paris?
Não, o que é estranho. É verdade que somos bastante apoiados pelo Estado e é também verdade que somos uma instituição, para usar a sua expressão. Mas como trabalhamos muito nas margens da criação, com artistas pouco conhecidos, ou que rompem ao lado de algumas estrelas, nem o estado, nem a Ville de Paris, nem a Région de France nos reivindicam o que seja. [o sistema de apoios em França permite que as estruturas possam candidatar-se a apoios a quatro instituições: à Ville, Departamento, Região e Estado que, por aproximação mesmo que com defeito equivalem, respectivamente à Câmara Municipal, à Área Metropolitana, ao Governo Civil e ao Ministério]
Há então uma liberdade em relação ao poder político.
Se é certo que estamos dependentes de apoios, também é certo que se só fizéssemos o festival com o dinheiro que nos dão, teríamos um terço da programação. É claro que gostaríamos de ter mais apoio da Ville de Paris, pois se o nome do Festival... inclui Paris. Mas eles são reticentes e dizem que com as criações nunca se sabe o que vamos ver.
O que é que há de Paris neste festival?
É sobretudo uma noção geográfica já que o festival permite viajar pela cidade, e até mesmo fora da cidade, dos espaços mais marginais às grandes instituições. Para dar um exemplo da programação veja-se o caso de Ernesto Neto, que ocupa, com as suas esculturas, “o” lugar emblemático de Paris, o Panteão Nacional, num evento-farol de toda a programação. Sei que se o festival fosse «Primavera em Paris», faríamos muitas coisas em jardins, parques, nas ruas, porque há lugares ainda por explorar nesta cidade. Mas nesta altura não podemos arriscar.
Quanto pesa a responsabilidade conduzir um festival como este?
Uff!!... [risos]
A viagem a Paris contou com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbekian. Agradecimentos: Rémi Fort, Paulo Guerreiro.
A conversa com Marie Collins inaugura o 2º ciclo de entrevistas a programadores A ponta do iceberg, cuja 1ª parte decorreu em Março deste ano. Desta vez dedicada à programação em França, O Melhor Anjo apresentará, sempre às segundas-feiras, outras três entrevistas. A saber: Olivier Bertand, assessor para a programação de dança do Thèâtre de la Bastille (Paris), Eliane Dheyére, directora do teatro Le Vivat – Scéne Conventionée, Armentiéres, e Frédéric Flamand, coreógrafo e director do Centre Coregraphique National de Marseille/Ballet National de Marseille.
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