Crítica de teatro
O mundo que há-de vir...
encenação de Richard Mitou
Théâtre de la Colline, Paris
até 28 Outubro 2006, Festival d'Automne à Paris
A palavra histrions significa algo aproximado a bufões, figuras míticas do imaginário teatral, comummente associadas à corte e ao divertimento. Caracterizando-se por um excesso de representação, onde defeitos e virtudes se extremavam, estas figuras, serviram, ao longo dos anos para expor os outros ao ridículo.
Não é por acaso que a peça de Marion Aubert – jovem autora francesa que com este texto se estreia no institucional Théâtre National de la Colline, no não menos institucional Festival de Outono em Paris, que começou ontem com esta peça - usa esta ideia de representação para falar do mundo. Do mundo que há-de vir, já que Les Histrions quer dar conta de uma realidade ainda longínqua, 2067. Mas uma peça sobre o futuro não deixa de ser, também e sobretudo, uma peça sobre o presente. Temas como a descrença, a perda de fé e a busca por um Messias, convivem, de perto com o terror da solidão, do alheamento, da busca de um sentido.
O sentido, neste texto, busca-se na vontade de um jovem rapaz que quer saber o que o espera, mas se vê “isolado” no seio de uma companhia de teatro que sobrevive, em misteriosas condições, na cave de um teatro (Kusturica anda por aqui, certamente, mas Ray Bradbury e Orwell também). Por isso, e como em todas as histórias sobre o mundo contadas por uma companhia de teatro, esta é também uma história do mundo do teatro. Não faltam referências e piscar de olhos a histórias, memórias e imagens-fortes do imaginário teatral. Desde logo, e as mais evidentes: uma carroça que carrega todos os adereços, como em Mãe Coragem, de Brecht; uma árvore, como em À espera de Godot, de Beckett; um rei e uma rainha que são espelhos de outras figuras menos fictícias, como em Hamlet, de Shakespeare…
Está dado o mote para uma revisitação histórica, vista por um grupo de fantasistas mais dados à imaginação que ao confronto com a realidade. Todos eles vão narrando ao jovem rapaz como chegaram ao teatro. Há a história do homem que nasceu dentro de um ovo de Páscoa, a de outro que veio de uma meia de Natal, há um ministro do Interior que quer alvar o mundo (e a plateia delira com a referência depreciativa a Sarkozy), há famílias que vivem em armários e putas que julgam saber cantar… O mundo lá de fora deixou de ser importante. E passam-se os dias entre ilusões para matar o tempo, cuja bonomia só é quebrada pelos ataques que o teatro sofre e cujo pó cai em cima dos actores.
O enérgico (e longo, quase três horas) texto de Marion Aubert – publicado nas edições Actes Sud - encontra na encenação de Richard Mitou, o veículo perfeito para se apresentar como libelo esperançoso, onde não falta uma mensagem de resistência (c'est la france, alors!) . As palavras finais – Alons, jusqu’au soleil! – gritadas por toda a trupe em posição de combate, dão bem conta da vontade de fazer do teatro – do espaço, das formas e dos objectivos – a última fronteira de um universo já derrotado.
Para quem tudo isto puder parecer algo datado, convém recordar que não faltam, ainda hoje, exemplos (inclusive, e sobretudo, nas criações contemporâneas a partir de colagens de textos) de uma ideia da criação e dos criadores como uma espécie de reserva moral da sociedade. Isto é tanto mais relevante se considerarmos que o mundo (seja o que sofre os ataques, como na peça de Aubert; como o que realmente sofre os ataques, como aquele em que vivemos), precisar, desesperadamente, de pontos de fuga que o alheiem desse confronto.
Assim, não é por ser evidente e imediatamente reconhecível que aquele mundo ali representado é o nosso, que Les Histrions é menos interessante, mas antes, é no modo como ficciona uma realidade – numa angustiante ficção sobre a ficção – que reside aquilo a que o encenador quer chamar de «teatro explosivo». Um teatro que vive de um permanente questionamento sobre a função do teatro – e a relação com o espectador é muito perversa, sendo este tanto cúmplice dos actores (duplamente actores) como culpado dos ataques -, onde o Homem existe para ser questionado nas suas acções, onde o jogo teatral serve para denunciar a dura realidade.
Não é possível, por isso, deixar de ler em Les Histrions uma influência do mundo pós-11 de Setembro. Para mais, numa altura em que o cruzamento das artes tende a iludir e alimentar uma ideia de “vale-tudo”, é reconfortante encontrar um texto que não tem receio de parecer panfletário sem ser extremista e uma encenação que insiste na desmontagem dos códigos teatrais, sem procurar reinventá-los.
Uma nota final para o elenco de quase vinte intérpretes, entre actores e músicos, que resistem a uma permanente mudança de personagem, sem nunca vacilarem e muito menos formatarem a interpretação.
Outros textos sobre o 35º Festival de Outono em Paris a publicar brevemente no blog:
Entrevista a Marie Collin, programadora de teatro e dança no festival
Críticas a: I wouldn't be seen dead in that!, de Steve Cohen e Elu; Showcase, de Richard Maxwell; Dead Man Set #2, de Caden Mason/Big Art Group; até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza, de Vera Mantero; Quintette Cercle, de Boris Charmatz; Quartett, encenação de Robert Wilson.
O Melhor Anjo está em Paris com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian
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