sexta-feira, setembro 22, 2006

Na primeira pessoa: Jérôme Bel


«Está fora de questão ser morto em palco»
- uma conversa com Jérôme Bel


A dança que o coreógrafo francês Jérôme Bel faz está mais interessada no modo como se deve apresentar e inscrever num contexto saturado de símbolos e metáforas, do que responder à necessidade, imposta pela contemporaneidade, de permanente reformulação. A série de espectáculos cujo título tem o nome de quem interpreta [Veronique Doisneau, 2004, Isabel Torres, 2005, Pichet Klunchun & Myself, 2006], é mais um passo na afirmação de um discurso radical, onde corpo e reflexão convivem em propostas nas quais o espectador tem um papel preponderante. É certo que podem ser vistas enquanto segundo tomo de um longo discurso sobre a identidade. Alguns dos espectáculos anteriores, como Nom donné par l’auteur [1994], ou até mesmo Xavier Le Roy [2000], peca feita para aquele coreógrafo francês, eram já a oportunidade para pensar a relação que estabelece entre um coreógrafo, o seu percurso e o público. Nesta conversa sobre os limites da interrogação, Jérôme Bel fala da importância da palavra, da sua relação com o espectador e do prazer da descoberta.


Imagino que seja recorrente, em relação ao teu discurso artístico, dizer-se que buscas a fixação da (tua própria) identidade. «Lá vem ele falar de si, mais uma vez…»…


… pois, e chega dessa conversa. Se eu ponho 20 pessoas em cena, como em Show Must Go on, eles não estão à procura da minha identidade, mas eu sei que cada coisa pode indicar que me representa… Mas não sou eu, isso é certo. Eu só retiro dos outros e organizo.


O que nos leva a considerar que nesta linha de espectáculos começados com «Verónique Doisneau» [Ballet da Ópera de Paris, 2004] não é de ti que estás a falar.


Evidentemente. É é um processo maravilhoso. Alimento-me e aprendo sobre o oposto de mim, a grande tradição, o ballet. Desde o inicio que se trata de um discurso onde são as palavras que estabelecem uma relação com o meu trabalho. A «dança discursiva» é um termo que aceito para descrever o meu trabalho. Ora depois «Veronique Doisneau» [étoile do Ballet da Ópera de Paris] estamos no domínio do discurso: fala-se porque razão? Com ela foi tudo muito claro. A Véronique é directa, ao dizer-me “não gosto de [Maurice] Béjart nem do [Roland] Petit”, isso interessa-me muito. Por exemplo, ela fala do Merce Cunningham, não porque tenha sido para ela uma grande momento na carreira, mas porque eu forcei um pouco esse assunto, dizendo que o que me interessava era o factor de abertura da Ópera de Paris à dança contemporânea. E é muito mais poderoso que seja ela a dizê-lo, do que eu. O interesse deste projecto é que eu não dou nada. Excepto ao Pichet [Klunchun em Pichet Klunchun & Myself, 2005].


Nem ao público? Há uma citação tua, num encontro em Viena com o Jan Ritzema [What is performance?, Tanzquartier 2005], em que dizes que se deve controlar o público ou ele matar-te-á.


Eu digo mais: deve-se foder o público (risos)! Está fora de questão ser morto em palco. A coisa é: eu faço o meu trabalho sobre o palco e vocês fazem o vosso. O que é interessante é esta tensão entre estas duas posições. Não é: vocês olham para o palco e eu [agita os braços e as mãos] … isso é absurdo… isso é o Club Med.


Mas a pergunta que se impõe é: onde é que está o espaço para o público nos teus espectáculos?


Isso depende de quais. Por exemplo em Isabel Torres - eu não estava na estreia [Panorama Rio Dança 2005, Rio de Janeiro], mas vi no vídeo - , ela entra na cena e diz boa noite e as mil pessoas que estão no teatro respondem boa noite. Há essa acção muito mais viva que na Europa, os códigos tem outra força, se tu dizes “bom dia”, eu respondo “bom dia”… Eu não controlo isso, mas cada um dos intérpretes deste projecto é preparado para se dirigir directamente ao público. Já em Pichet Klunchun & Myself, há um meta-discurso no interior disso que não consigo separar do público. E isso diverte-me bastante. Eu tenho que falar directamente para o Pichet, mas é o público que é abordado. Eles são fantasmas nesse momento, são mortos também. Eu sei que eles estão lá e eles sabem que eu estou lá, logo não representamos que estamos a representar… Eu adoro fazer isso, eu explico ao Pichet: “ali esta o público, mas o publico não está lá” [risos] …


E ele insiste, dizendo-te que estamos ali…


Sim, e nós não o ignoramos. Só não olhamos para vocês. E é isso que faz accionar o mecanismo de reflexão sobre as relações que existem nesse espectáculo: eu e Pichet, o público e eu – porque me conhece -, o público e Pichet – que só descobrem naquele momento, … O objectivo é criar uma discussão sobre a dança com artistas.


Ao mesmo tempo fica-se à espera “que algo aconteça”.


Tive alguns intelectuais na Bélgica que ficaram furiosos quando disse que chegava aos sítios onde vou fazer estas peças [Brasil, Índia, Banquecoque…] e como não conhecia nada, pedia para que me mostrassem coisas, “o que há”. E eles dizem: “mas Paris possui das maiores bibliotecas de artes cénicas ocidentais, e você não vai lá?” e eu respondo “não, está calor não se pode trabalhar” mas é essa naïveté que faz com que eu fique à espera que se passe alguma coisa. Eu gosto dessa incapacidade do jogo.


É um percurso solitário?

Não, de todo, há muita gente por exemplo na crítica, que estão bastante próximos do meu trabalho, e que me ajudam a ver coisas que não vejo. Ou seja não tanto com bailarinos, mas com gente mais científica … mas não me sinto só … há também os Forced Entertainment, isso é mesmo íntimo, vemos os trabalhos respectivos… Há coisas que vejo e me estimulam: o Bruno Beltrão, o Xavier Le Roy, o Raimund Hoghe… Não me sinto só, ao contrário, eu espero saber o que digo e tê-lo em conta e creio que conseguimos falar entre nós e isso é muito importante.


Mas não tens receio de poderes estar a criar uma fórmula com estes espectáculos?


É um pouco complicado, sim. E penso muito nisso. A existir uma fórmula, será no sentido “eu habito uma forma”. Mas eu tenho, sobretudo, medo de não ouvir o outro. Este projecto é um documento feito o mais próximo do real, de querer fazer sair o intérprete anónimo da sua realidade. É uma análise do campo – há o coreógrafo que dá entrevistas e fala; o crítico que escreve; e há também o performer que tem muito pouco a palavra, tendo ele, uma das experiências mais íntimas com o trabalho. Falar é muito libertador, a linguagem é um meio por excelência da comunicação e eu necessito disso, é perfeito É exactamente esta a questão por onde o intérprete vai reflectir/dar uma visão do que nós procuramos. É por isso que eu posso fazer isto, porque é verdadeira matéria literária, um comentário, mas passa-se sobre a cena …


A conversa decorreu durante o festival Alkantara 2006
Agradecimentos: Hotel Marquês de Pombal, Mónica Guerreiro


Ler crítica a Isabel Torres e Pichet Klunchun & Myself (jornal Público, 14 Junho 2006)
Ler sobre o processo criativo de Pichet Klunchun & Myself, pelos próprios (www.idanca.net)

Ler artigo sobre Jérôme Bel e o seu percurso a partir da filosofia ( www.dansistan.blogspot.com)

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