Francisco Frazão foi o nome-surpresa na equipa de assessores de Miguel Lobo Antunes, o director artístico da Culturgest que em 2004 entrou para o lugar ocupado durante doze anos por António Pinto Ribeiro, hoje na Fundação Calouste Gulbenkian. Mais conhecido pelo seu trabalho enquanto crítico ou tradutor de Beckett, Jon Fosse ou Stephen Greenhorn para os Artistas Unidos, o cargo parecia estar destinado a um outro nome com mais currículo na área. Mas o discurso firme sobre o que busca no teatro e a aposta em nomes de criadores, companhias e projectos que pudessem cumprir os requisitos que um espaço como a Culturgest exige, granjearam-lhe os elogios da crítica. Em Dezembro de 2005, no final do primeiro ano à frente da programação de teatro do mais coerente projecto de estratégia cultural que Lisboa tem para oferecer (vindo, ainda por cima, de uma instituição bancária), foi indicado pelo Diário de Notícias como uma das boas notícias do ano. Também aqui neste blog foi escolhido como Aposta 2006 nas escolhas de melhores do ano. Francisco Frazão, nesta sua primeira experiência enquanto programador, assume que o que lhe interessa é saber que pode contribuir para uma nova relação entre a criação, a programação e o público, sempre partindo de uma reflexão em torno do texto. Reconhece o peso e a responsabilidade do cargo, mas prefere manter uma programação com linhas definidas que abrir o espaço de forma aleatória. Crítico das recentes mudanças na cultura, que sublinha serem políticas, sabe bem o preço da estabilidade criativa. Numa conversa, que a dada altura foi interrompida (e ainda bem) pelo assessor para a Arte Contemporânea da Culturgest, Miguel Wandschneider, que confrontou as dificuldades de programação de teatro com as das artes visuais , Francisco Frazão fala da casa, do seu método de trabalho, do que pensa sobre o que se anda a fazer e responde às críticas que o acusam de dar prioridade aos espectáculos dos Artistas Unidos.
«Tentamos sempre escolher aquilo que de mais interessante se está a fazer.»
Tu vias-te como programador da Culturgest?
Não. [risos]
E olhavas para este espaço como?
Isto tem um peso arquitectónico que pode afastar e pôr as pessoas de pé atrás. É um espaço com um grau de formalidade acentuado onde eu vinha ver algumas coisas. Tinha uma relação normal de espectador.
Assustou-te o convite?
Sim, claro.
E agora como é que te vês enquanto programador?
Acho que só me vejo como programador aqui e com esta equipa com quem trabalho. É a minha primeira experiência e se não fossem pessoas em quem confiasse seria dificilmente sustentável. Vejo isto como uma tarefa para a qual fui convidado e que não sei quanto tempo durará ou que futura trará. Preocupa-me claro, mas não sei se é aquilo que vou fazer. Há para já um passado que é preciso ter que conta e que são os doze anos de direcção do António Pinto Ribeiro que conseguiu uma série de coisas e não houve um corte em relação ao que já estava feito. Houve talvez algumas preocupações diferentes e que tem a ver com o coordenador desta equipa, o Dr. Miguel Lobo Antunes.
Essas preocupações são o quê?
Têm a ver com uma relação diferente com o público, parece-me. Mantendo uma preocupação com o contemporâneo, que sempre existiu, deixando para outros espaços outro tipo de objectos. Não vejo que seja impossível fazer aqui Shakespeare, mas se calhar preferia que fosse feito noutro local. Mesmo em termos de repertório mais estrito interessa-nos o contemporâneo. Esta equipa nova veio trazer a necessidade de abrir mais a Culturgest às pessoas. Os descontos com menos de 30 anos, as conversas a seguir aos espectáculos, as conferências são exemplos dessa abertura. É um contributo para que o usufruto da arte seja uma coisa mais informada.
Quando foste convidado o que é que te foi proposto e o que é que propuseste?
Houve uma série de reuniões iniciais onde fomos discutindo a questão do contemporâneo como marca da Culturgest. E também pensar um pouco o slogan “uma casa do mundo”. Ou seja, a relação com as outras praticas artísticas que não passam tanto por cá. E a conclusão a que se chegou foi que depois do trabalho da Culturgest isso começava a chegar cá mais facilmente. Ou seja, já não teria que ser a Culturgest a continuar a assegurar a apresentação de companhias da China ou da África do Sul. Passou-nos a interessar repensar esta relação do centro e das periferias de outra forma. Nós estamos numa periferia especial que tem relações privilegiadas com alguns centros mas tanto nesses centros como cá existem presenças de mundos muito afastados. Não é preciso ir procurar o outro do outro lado do mundo porque ele está aqui. Isto como orientação global das áreas.
Consideravam que anteriormente não havia essa preocupação ou tem a ver com o nível de excelência que estava criado e que era necessário fazer evoluir?
Eu não gosto muito da palavra excelência porque é uma palavra que não quer dizer nada. Diz o que cada um quer que diga e o que uma determinada corrente dominante quer que diga. Uma programação de excelência não faz muito sentido. Há objectos mais conseguidos e outros menos. Têm é que ser desafiadores, pôr problemas de uma maneira nova, originais. Mas não tem que ter um selo de qualidade inquestionável. Isso já havia na programação anterior. Agora se calhar há é coisas mais focadas porque há uma pessoa diferente para cada área. Obviamente que parte de um diagnóstico sobre o que se passava antes mas construindo sobre isso e não destruindo.
E o teu contributo enquadrou-se como?
No teatro tem-me interessado trabalhar o texto como problema. Não quer dizer que seja sempre esse o fio condutor. Não é o teatro de texto no sentido convencional mas um teatro que ponha de facto a questão do texto como lugar central da sua reflexão e da sua prática. Para mim o texto não tem que estar no princípio de tudo, mas se há texto é uma das coisas que ligo mais. Custa-me perceber um espectáculo em que o texto não jogue com os outros elementos.
E quando falas em texto falas numa dramaturgia “visível”?
Não, pode partir da improvisação. É a diferença entre texto teatral e texto literário. São coisas diferentes. A minha preocupação com o texto tem a ver com uma certa moda que tem ocupado os palcos estrangeiros e que é a redução do texto ao mínimo, porque é exportável. Enquanto a dança tem cada vez mais texto, o teatro tem cada vez menos. A mim apetece-me muito contrariar isto nos espectáculos estrangeiros. Eu gosto de ouvir outras línguas. Gosto de ouvir espectáculos em italiano, em húngaro... É muito interessante. Essa tónica do texto tem a ver com isso, escolher o caminho mais difícil nesta relação com os espectáculos estrangeiros. Isto passou por exemplo por espectáculos o ano passado de Foucault, Serge Daney… textos filosóficos ou de cinema. Passa também pelos clássicos mas vistos pelo presente, ou seja uma reescrita dos clássicos como «A Gaivota» do Tcheckov, a «Julieta…», da Mónica Calle com o [Nunca-Terra em vez de] Peter Pan dos Primeiros Sintomas. Essa revisão, esse refazer de textos que existiam. Há uma preocupação com a nova dramaturgia, estrear textos em Portugal.
Isso vem da tua formação como tradutor…
Sim da minha experiência nos Artistas Unidos [AU] onde fiz algumas traduções e trabalhei na revista. Acho que os AU tiveram esse papel importante que foi dedicarem-se, quase exclusivamente, aos novos textos de teatro tanto estrangeiros como nacionais. E no caso dos textos nacionais com mais cautela não entrando em grandes demagogias de que há uma dramaturgia em formação. Há algumas coisas interessantes mas era importante primeiro dar-se a conhecer o que se estava a fazer em alguns sítios que não são propriamente os grandes centros. Isso foi uma descoberta saber que há autores muito interessantes na Flandres, na Escócia, a Sicília, na Noruega e não só em Paris ou Londres.
O que se vai notando na tua programação é que vão sendo estabelecidas relações especiais com determinados criadores. Isso tem a ver com a ideia de uma programação de teatro não poder ser só ter as portas abertas ou por outro lado um acompanhamento e tentativa de estabelecimento de uma base com o publico também?
Tentamos isso.
Há críticas que são feitas por exemplo à presença dos Artistas Unidos ou de projectos que nascem dos Artistas Unidos e encontram na Culturgest um espaço para se apresentarem. Percebeu-se que há essa relação privilegiada.
Tentamos sempre escolher aquilo que de mais interessante se está a fazer. Tentar encontrar e identificar o que se vai fazendo. É daí que partem os convites ao Teatro Praga, à Mónica Calle, à Assédio, aos Primeiros Sintomas, estabelecendo uma relação forte e séria com essas estruturas. Depois há uma preocupação com tentar não repetir demasiado, não ter o mesmo grupo duas vezes no mesmo ano. Tentamos que não haja repetições, mas não temos uma carta deontológica. Vamos tentando dar oportunidade a outros grupos.
Com a vantagem de fazeres parte da mesma geração de alguns criadores que programas.
Eu acho que sim. Se essa coisa da geração existe pode ser útil que haja essa coincidência. Acho que facilita o diálogo e a discussão sobre as propostas mas poderia fazer-se de outra maneira. O risco é ficar uma coisa de uma geração para a mesma geração. Ou seja, eu convidar pessoas que fazem coisas só para a mesma geração. Acho que isso não é muito interessante. Interessa-me é a fase de reflexão em que essas pessoas estão. Isso tem não só a ver com o processo artístico mas também com questões de produção. São pessoas que também não tem os meios de produção que um artista mais velho tem. Não faz sentido convidar o João Lourenço, o João Mota ou o Luís Miguel Cintra porque eles não precisam da Culturgest. A menos que seja uma coisa muito precisa.
É uma política de gosto?
A maior parte dos criadores eu não conhecia pessoalmente. Partem do meu maior ou menos conhecimento daquilo que se passa. Tenho a obrigação de ir acompanhando, não faço tanto quanto devia se calhar. Mas não é uma política de gosto. Acho que é possível separar aquilo que é relevante. A ideia de relevância é importante porque não tem a ver com excelência, qualidade ou gosto pessoal. Tem a ver com uma interpretação ou um juízo sobre aquilo que se está a fazer de importante, de válido. É um pouco essa avaliação que faço quando falo com alguém.
Interessa-te mais pegar em coisas que já estão feitas ou lançar propostas?
Isso acontece um pouco na divisão entre espectáculos portugueses e estrangeiros. Nos espectáculos estrangeiros integram-se na linha que procuro. Mas nos espectáculos portugueses raramente aconteceu não terem sido co-produzidos por nós e estreados aqui. Há essa preocupação de pensar as coisas desde o início para aqui. Isso tem, por exemplo, a ver com o espaço. Não é possível no caso do pequeno auditório criar uma coisa que não seja para aqui porque é um espaço complicado com características técnicas e físicas muito especiais, uma coluna no meio, um tecto muito baixo. Ao nível do espectáculo é um espaço que se presta a ser subvertido. Com os portugueses há essa preocupação. O espectáculo da Mónica Calle era um exemplo disso. Quer as pessoas venham ter comigo ou que eu vá ter com ela, pensar uma coisa desde o inicio.
Essa ideia segue a linha do que vinha sendo programado aqui?
Esse trabalho com o texto vem daí, não querendo impor uma visão. Acho que os programadores não são artistas. É uma relação delicada com os criadores porque se está numa posição de domínio da qual convêm não abusar.
Não abusar porquê? O que é que isso pode provocar?
Pode provocar os artistas que convido a não fazerem o que querem fazer. Eu posso ter esta ideia e preocupação com o texto, mas se convido o Teatro Praga para fazer um espectáculo, eles podem partir disto mas tem outras ideias. A minha proposta tem que ser suficientemente vaga para que eles possam trabalhar.
Dizias que o programador não era artista…
Miguel Wandschneider [MW]: Claro que é [risos]. É um mau artista.
Mas tu impões a tua visão acerca do teatro que se vai fazendo.
Há uma escolha, mas é uma escolha de um criador a partir de algo que nele me interesse mas também posso ser totalmente convencido por algo que ele me propõe. A minha grande intervenção é convidar determinada pessoa ou aceitar determinada proposta. Por exemplo convidei os Praga, ou a Mónica ou os Primeiros Sintomas, para fazerem uma coisa aqui e perguntei-lhes que ideias e que projectos é que eles tinham em cima da mesa. E cada um deles disse-me duas, três, quatro coisas. E eu disse: olha essa pode ser interessante para se fazer aqui. Tem a ver com esta troca.
Sentes-te com poder?
Com poder? [pausa] Eu pessoalmente não, mas sinto que a Culturgest tem uma imagem de poder que eu depois tento contrariar no contacto com os artistas. É uma questão de personalidade não querer impor.
As pessoas esperam de ti determinada coisa. Nunca sentiste que estavam a fazer algo para te agradar?
Não [risos] Isso nunca senti. [Pausa] Seria muito estranho.
Mas há uma relação de poder entre os programadores e os criadores, em que programadores escolhem determinados criadores e criadores que trabalham para cumprir gostos de programadores. É também disso que se trata quando falas do facilitismo e dos espectáculos exportáveis?
Há coisas que eu sei que só eu faria e outras que outros fariam de outra maneira. Isso é normal. Eu prefiro uma atitude de low-profile, sem assinatura.
MW: Essa questão coloca-se de maneira diferente dependendo das áreas. No caso de um programador de exposições, em que escolhes as obras, o peso simbólico que ganhas é brutal.
Mas porque é mais controlável?
MW: Não, porque tem a ver com as lógicas de autoria. O Francisco quando convida um grupo de teatro tem esse gesto de convidar.
FF: Que é 80% do trabalho.
E não tens interferência no trabalho?
FF: Posso ter.
MW: Podes sugerir, propor situações. Mas um curador tem uma intervenção brutal na construção de um objecto expositivo. O curador não intervém no processo criativo. Uma exposição é suposto apresentar obras que estão feitas e o objecto expositivo é radicalmente moldado pelo curador. Por isso é que o curador pode estar uma no a pensar a exposição. Como é que se articulam as obras, o que se introduz nessas relações, que obras se escolhem...
FF: É uma relação diferente com o artista. Até na relação com um artista estrangeiro não é complicado comprar um espectáculo. No caso das artes plásticas é difícil um artista de determinado estatuto vir fazer uma exposição aqui.
MW: É um problema terrível de valor simbólico.
Isso tem também a ver com a periferia?
MW: Tem a ver com a Culturgest não ter um capital simbólico que lhe permita chegar lá fora. Esta discussão é muito interessante porque o desvio entre o que o Francisco quer fazer e aquilo que realmente faz é infinitamente mais pequeno que o meu. Eu tenho uma listagem de 40 artistas que poderia contactar agora, mas só posso atacar um. E se ele aceitar eu já posso invocar esse artista como um trunfo da minha colecção.
FF: Mas depois cada conquista é muito mais saborosa.
MW: Eu estou literalmente à caça. O teatro e a dança circulam. Tu produzes um espectáculo e queres que ele vá a um número de países e se apresente no maior número de palcos. Uma exposição apresenta-se uma vez e quando as coisas correm bem há uma co-produção. Nas artes plásticas a defesa do estatuto simbólico é cerrada.
O capital que a Culturgest tem pode ser colocado ao serviço de quê?
Acho que a mais valia depende da interpretação dos espectadores. A Culturgest não permite trazer tudo.
Como por exemplo?
Há espectáculos que são demasiado caros. Houve um aumento de orçamento este ano mas é um orçamento muito inferior ao de outros espaços. Há limitações técnicas…
… e estéticas?
Há estas orientações de que falei. Por exemplo, eu via-me a trazer o Picollo mas preferia que não fosse com um Shakespeare mas com um Brecht.
Poderias programar o Rodrigo Garcia ou o Romeo Castelluci?
Sim, podia. O Castelluci conheço menos bem, vem agora ao CCB no festival Alkantara. O Rodrigo Garcia tem trabalhos muito diferentes. Vi um espectáculo encenado a partir de um texto dele sobre o Borges que me interessou muito. Mas se calhar aquele lado mais performático interessar-me-ia menos. Mas ele é um autor dramático. Não é o exemplo daqueles autores que não se preocupa com o texto.
Ou espectáculos cuja violência física ou exposição do corpo fosse controversa.
Esse tipo de auto-censura não faço. Se são espectáculos que já estão feitos parto sempre da minha reacção aos espectáculos. Não há limitações desse tipo. Eu sei que há esta imagem de bem comportados. Mas seja do Miguel Lobo Antunes ou do presidente da Culturgest e da própria Caixa, não há interferências. É um bocadinho carta branca.
A tua programação portuguesa é também uma reflexão sobre o que se está a fazer actualmente. O conjunto de vozes que apresentas é, na sua maioria feito de discursos individuais sobre a contemporaneidade. Discursos que facilmente se destacam no meio. É uma preocupação?
Há outra questão que é importante, para além do lugar do texto e do contemporâneo, que é a dos criadores que já estão em processo e que ainda não chegaram a uma súmula de um trabalho. É uma preocupação que passa também pela dança e pelas artes visuais. Esta ideia do jovem encenador tem sido uma preocupação minha, tanto nos espectáculos portugueses como estrangeiros. Por exemplo, o Arpad Schilling da Hungria, o António Latella que vem da Itália em Maio, o Tim Crouch que volta, o Bruno Bravo, a Mónica Calle, os Praga, o Ricardo Aibéo, que em Novembro vem cá com a Gata Borralheira do Robert Walser. Ou seja, encenadores que já fizeram alguma coisa e que estão em processo.
Isso tem a ver com o lugar de cada um dos espaços no discurso colectivo. Qual é que pode ser o discurso da Culturgest?
A Culturgest tem que cumprir várias funções consoante os destinatários. Para os artistas tem que ser um lugar que lhes permita ter meios de produção que eles se calhar não têm. Pode passar do número de projectores ou técnicos ou dar-lhes mesmo a nível de visibilidade algo que não teriam facilmente. E da minha parte fazê-los pensar de uma maneira que se calhar não tinham pensado. É importante que seja um momento especial para os artistas. Para o publico é dar a ver artistas que estão no seu auge criativo é fundamental. Não ter a preocupação da qualidade artística mas antes do interesse artístico. Há uma coisa interessante enquanto programador que é pensar o modo como isto vai funcionar.
Quando tu trabalhas para uma programação não estás a pensar no público que já existe, mas antes como é que trabalhas para um público maior que tem acesso a outras coisas?
Sim. Eu não sei se há um público da Culturgest. Para mim é difícil pensar em termos estatísticos. O público da Culturgest não difere muito do público do CCB, ou dos Artistas Unidos, ou da Cornucópia ou dos Praga. Há uma série de cruzamentos e não me aprece que para o teatro não há uma fidelidade à Culturgest. Se calhar por problema da programação que eu ainda não resolvi solucionar. Não sinto isso, Se calhar para a dança existe. Mas ainda há muitas flutuações. Por exemplo um dos mais bem conseguidos espectáculos do ano passado foi o da Assédio, [Um número] da Caryl Churchill, e foi dos que menos público teve. Portanto não vejo também uma relação entre a qualidade das propostas e o publico. As críticas correram bem, a imprensa também. Mas o facto de ser uma companhia do Porto, de uma autoria que se calhar as pessoas deviam conhecer mas não conheciam, se calhar ajudou a que não tivesse muito público.
Isso para ti resulta como, uma aposta que corre menos bem, sabendo que a Culturgest não tem que ter grandes preocupações quanto à bilheteira, não estando dependente desta para apresentar espectáculos, logo, há uma margem de risco maior?
Claro. No caso da Assédio o que me preocupa é que achava que era um espectáculo que deveria ter sido visto por mais pessoas e não foi. Em vez de ser visto por mil e tal foi visto por duzentas, não sei de cor. A minha preocupação é pensar o que é que estamos a fazer que pode ser melhorado para virem mais pessoas. Não tenho esta ideia dos records, mas fico contente quando um espectáculo que é bom e é valido é visto por muita gente. Não tenho a preocupação de fazer um espectáculo para o grande público nem programo a pensar que este espectáculo vai trazer muita gente. Até porque isso nem sempre corre como esperávamos. Por exemplo, n' «A Gaivota» do Teatro Krétakör não sabia se viria alguém a um espectáculo húngaro de quatro horas e tradução simultânea por imposição do encenador. À posteriori consigo reflectir: é um clássico. Não só é Tcheckov como é «A gaivota». Se fosse o «Platonov» se calhar não vinham. Antes é difícil saber. Nós temos carreiras curtas e isso é um problema. Porque os espectáculos estreiam aqui com a confiança que depois tenha uma carreira mais longa. São carreiras muito curtas para que se crie uma corrente de publico.
Mas há uma marca Culturgest…
«Tentamos sempre escolher aquilo que de mais interessante se está a fazer.»
Tu vias-te como programador da Culturgest?
Não. [risos]
E olhavas para este espaço como?
Isto tem um peso arquitectónico que pode afastar e pôr as pessoas de pé atrás. É um espaço com um grau de formalidade acentuado onde eu vinha ver algumas coisas. Tinha uma relação normal de espectador.
Assustou-te o convite?
Sim, claro.
E agora como é que te vês enquanto programador?
Acho que só me vejo como programador aqui e com esta equipa com quem trabalho. É a minha primeira experiência e se não fossem pessoas em quem confiasse seria dificilmente sustentável. Vejo isto como uma tarefa para a qual fui convidado e que não sei quanto tempo durará ou que futura trará. Preocupa-me claro, mas não sei se é aquilo que vou fazer. Há para já um passado que é preciso ter que conta e que são os doze anos de direcção do António Pinto Ribeiro que conseguiu uma série de coisas e não houve um corte em relação ao que já estava feito. Houve talvez algumas preocupações diferentes e que tem a ver com o coordenador desta equipa, o Dr. Miguel Lobo Antunes.
Essas preocupações são o quê?
Têm a ver com uma relação diferente com o público, parece-me. Mantendo uma preocupação com o contemporâneo, que sempre existiu, deixando para outros espaços outro tipo de objectos. Não vejo que seja impossível fazer aqui Shakespeare, mas se calhar preferia que fosse feito noutro local. Mesmo em termos de repertório mais estrito interessa-nos o contemporâneo. Esta equipa nova veio trazer a necessidade de abrir mais a Culturgest às pessoas. Os descontos com menos de 30 anos, as conversas a seguir aos espectáculos, as conferências são exemplos dessa abertura. É um contributo para que o usufruto da arte seja uma coisa mais informada.
Quando foste convidado o que é que te foi proposto e o que é que propuseste?
Houve uma série de reuniões iniciais onde fomos discutindo a questão do contemporâneo como marca da Culturgest. E também pensar um pouco o slogan “uma casa do mundo”. Ou seja, a relação com as outras praticas artísticas que não passam tanto por cá. E a conclusão a que se chegou foi que depois do trabalho da Culturgest isso começava a chegar cá mais facilmente. Ou seja, já não teria que ser a Culturgest a continuar a assegurar a apresentação de companhias da China ou da África do Sul. Passou-nos a interessar repensar esta relação do centro e das periferias de outra forma. Nós estamos numa periferia especial que tem relações privilegiadas com alguns centros mas tanto nesses centros como cá existem presenças de mundos muito afastados. Não é preciso ir procurar o outro do outro lado do mundo porque ele está aqui. Isto como orientação global das áreas.
Consideravam que anteriormente não havia essa preocupação ou tem a ver com o nível de excelência que estava criado e que era necessário fazer evoluir?
Eu não gosto muito da palavra excelência porque é uma palavra que não quer dizer nada. Diz o que cada um quer que diga e o que uma determinada corrente dominante quer que diga. Uma programação de excelência não faz muito sentido. Há objectos mais conseguidos e outros menos. Têm é que ser desafiadores, pôr problemas de uma maneira nova, originais. Mas não tem que ter um selo de qualidade inquestionável. Isso já havia na programação anterior. Agora se calhar há é coisas mais focadas porque há uma pessoa diferente para cada área. Obviamente que parte de um diagnóstico sobre o que se passava antes mas construindo sobre isso e não destruindo.
E o teu contributo enquadrou-se como?
No teatro tem-me interessado trabalhar o texto como problema. Não quer dizer que seja sempre esse o fio condutor. Não é o teatro de texto no sentido convencional mas um teatro que ponha de facto a questão do texto como lugar central da sua reflexão e da sua prática. Para mim o texto não tem que estar no princípio de tudo, mas se há texto é uma das coisas que ligo mais. Custa-me perceber um espectáculo em que o texto não jogue com os outros elementos.
E quando falas em texto falas numa dramaturgia “visível”?
Não, pode partir da improvisação. É a diferença entre texto teatral e texto literário. São coisas diferentes. A minha preocupação com o texto tem a ver com uma certa moda que tem ocupado os palcos estrangeiros e que é a redução do texto ao mínimo, porque é exportável. Enquanto a dança tem cada vez mais texto, o teatro tem cada vez menos. A mim apetece-me muito contrariar isto nos espectáculos estrangeiros. Eu gosto de ouvir outras línguas. Gosto de ouvir espectáculos em italiano, em húngaro... É muito interessante. Essa tónica do texto tem a ver com isso, escolher o caminho mais difícil nesta relação com os espectáculos estrangeiros. Isto passou por exemplo por espectáculos o ano passado de Foucault, Serge Daney… textos filosóficos ou de cinema. Passa também pelos clássicos mas vistos pelo presente, ou seja uma reescrita dos clássicos como «A Gaivota» do Tcheckov, a «Julieta…», da Mónica Calle com o [Nunca-Terra em vez de] Peter Pan dos Primeiros Sintomas. Essa revisão, esse refazer de textos que existiam. Há uma preocupação com a nova dramaturgia, estrear textos em Portugal.
Isso vem da tua formação como tradutor…
Sim da minha experiência nos Artistas Unidos [AU] onde fiz algumas traduções e trabalhei na revista. Acho que os AU tiveram esse papel importante que foi dedicarem-se, quase exclusivamente, aos novos textos de teatro tanto estrangeiros como nacionais. E no caso dos textos nacionais com mais cautela não entrando em grandes demagogias de que há uma dramaturgia em formação. Há algumas coisas interessantes mas era importante primeiro dar-se a conhecer o que se estava a fazer em alguns sítios que não são propriamente os grandes centros. Isso foi uma descoberta saber que há autores muito interessantes na Flandres, na Escócia, a Sicília, na Noruega e não só em Paris ou Londres.
O que se vai notando na tua programação é que vão sendo estabelecidas relações especiais com determinados criadores. Isso tem a ver com a ideia de uma programação de teatro não poder ser só ter as portas abertas ou por outro lado um acompanhamento e tentativa de estabelecimento de uma base com o publico também?
Tentamos isso.
Há críticas que são feitas por exemplo à presença dos Artistas Unidos ou de projectos que nascem dos Artistas Unidos e encontram na Culturgest um espaço para se apresentarem. Percebeu-se que há essa relação privilegiada.
Tentamos sempre escolher aquilo que de mais interessante se está a fazer. Tentar encontrar e identificar o que se vai fazendo. É daí que partem os convites ao Teatro Praga, à Mónica Calle, à Assédio, aos Primeiros Sintomas, estabelecendo uma relação forte e séria com essas estruturas. Depois há uma preocupação com tentar não repetir demasiado, não ter o mesmo grupo duas vezes no mesmo ano. Tentamos que não haja repetições, mas não temos uma carta deontológica. Vamos tentando dar oportunidade a outros grupos.
Com a vantagem de fazeres parte da mesma geração de alguns criadores que programas.
Eu acho que sim. Se essa coisa da geração existe pode ser útil que haja essa coincidência. Acho que facilita o diálogo e a discussão sobre as propostas mas poderia fazer-se de outra maneira. O risco é ficar uma coisa de uma geração para a mesma geração. Ou seja, eu convidar pessoas que fazem coisas só para a mesma geração. Acho que isso não é muito interessante. Interessa-me é a fase de reflexão em que essas pessoas estão. Isso tem não só a ver com o processo artístico mas também com questões de produção. São pessoas que também não tem os meios de produção que um artista mais velho tem. Não faz sentido convidar o João Lourenço, o João Mota ou o Luís Miguel Cintra porque eles não precisam da Culturgest. A menos que seja uma coisa muito precisa.
É uma política de gosto?
A maior parte dos criadores eu não conhecia pessoalmente. Partem do meu maior ou menos conhecimento daquilo que se passa. Tenho a obrigação de ir acompanhando, não faço tanto quanto devia se calhar. Mas não é uma política de gosto. Acho que é possível separar aquilo que é relevante. A ideia de relevância é importante porque não tem a ver com excelência, qualidade ou gosto pessoal. Tem a ver com uma interpretação ou um juízo sobre aquilo que se está a fazer de importante, de válido. É um pouco essa avaliação que faço quando falo com alguém.
Interessa-te mais pegar em coisas que já estão feitas ou lançar propostas?
Isso acontece um pouco na divisão entre espectáculos portugueses e estrangeiros. Nos espectáculos estrangeiros integram-se na linha que procuro. Mas nos espectáculos portugueses raramente aconteceu não terem sido co-produzidos por nós e estreados aqui. Há essa preocupação de pensar as coisas desde o início para aqui. Isso tem, por exemplo, a ver com o espaço. Não é possível no caso do pequeno auditório criar uma coisa que não seja para aqui porque é um espaço complicado com características técnicas e físicas muito especiais, uma coluna no meio, um tecto muito baixo. Ao nível do espectáculo é um espaço que se presta a ser subvertido. Com os portugueses há essa preocupação. O espectáculo da Mónica Calle era um exemplo disso. Quer as pessoas venham ter comigo ou que eu vá ter com ela, pensar uma coisa desde o inicio.
Essa ideia segue a linha do que vinha sendo programado aqui?
Esse trabalho com o texto vem daí, não querendo impor uma visão. Acho que os programadores não são artistas. É uma relação delicada com os criadores porque se está numa posição de domínio da qual convêm não abusar.
Não abusar porquê? O que é que isso pode provocar?
Pode provocar os artistas que convido a não fazerem o que querem fazer. Eu posso ter esta ideia e preocupação com o texto, mas se convido o Teatro Praga para fazer um espectáculo, eles podem partir disto mas tem outras ideias. A minha proposta tem que ser suficientemente vaga para que eles possam trabalhar.
Dizias que o programador não era artista…
Miguel Wandschneider [MW]: Claro que é [risos]. É um mau artista.
Mas tu impões a tua visão acerca do teatro que se vai fazendo.
Há uma escolha, mas é uma escolha de um criador a partir de algo que nele me interesse mas também posso ser totalmente convencido por algo que ele me propõe. A minha grande intervenção é convidar determinada pessoa ou aceitar determinada proposta. Por exemplo convidei os Praga, ou a Mónica ou os Primeiros Sintomas, para fazerem uma coisa aqui e perguntei-lhes que ideias e que projectos é que eles tinham em cima da mesa. E cada um deles disse-me duas, três, quatro coisas. E eu disse: olha essa pode ser interessante para se fazer aqui. Tem a ver com esta troca.
Sentes-te com poder?
Com poder? [pausa] Eu pessoalmente não, mas sinto que a Culturgest tem uma imagem de poder que eu depois tento contrariar no contacto com os artistas. É uma questão de personalidade não querer impor.
As pessoas esperam de ti determinada coisa. Nunca sentiste que estavam a fazer algo para te agradar?
Não [risos] Isso nunca senti. [Pausa] Seria muito estranho.
Mas há uma relação de poder entre os programadores e os criadores, em que programadores escolhem determinados criadores e criadores que trabalham para cumprir gostos de programadores. É também disso que se trata quando falas do facilitismo e dos espectáculos exportáveis?
Há coisas que eu sei que só eu faria e outras que outros fariam de outra maneira. Isso é normal. Eu prefiro uma atitude de low-profile, sem assinatura.
MW: Essa questão coloca-se de maneira diferente dependendo das áreas. No caso de um programador de exposições, em que escolhes as obras, o peso simbólico que ganhas é brutal.
Mas porque é mais controlável?
MW: Não, porque tem a ver com as lógicas de autoria. O Francisco quando convida um grupo de teatro tem esse gesto de convidar.
FF: Que é 80% do trabalho.
E não tens interferência no trabalho?
FF: Posso ter.
MW: Podes sugerir, propor situações. Mas um curador tem uma intervenção brutal na construção de um objecto expositivo. O curador não intervém no processo criativo. Uma exposição é suposto apresentar obras que estão feitas e o objecto expositivo é radicalmente moldado pelo curador. Por isso é que o curador pode estar uma no a pensar a exposição. Como é que se articulam as obras, o que se introduz nessas relações, que obras se escolhem...
FF: É uma relação diferente com o artista. Até na relação com um artista estrangeiro não é complicado comprar um espectáculo. No caso das artes plásticas é difícil um artista de determinado estatuto vir fazer uma exposição aqui.
MW: É um problema terrível de valor simbólico.
Isso tem também a ver com a periferia?
MW: Tem a ver com a Culturgest não ter um capital simbólico que lhe permita chegar lá fora. Esta discussão é muito interessante porque o desvio entre o que o Francisco quer fazer e aquilo que realmente faz é infinitamente mais pequeno que o meu. Eu tenho uma listagem de 40 artistas que poderia contactar agora, mas só posso atacar um. E se ele aceitar eu já posso invocar esse artista como um trunfo da minha colecção.
FF: Mas depois cada conquista é muito mais saborosa.
MW: Eu estou literalmente à caça. O teatro e a dança circulam. Tu produzes um espectáculo e queres que ele vá a um número de países e se apresente no maior número de palcos. Uma exposição apresenta-se uma vez e quando as coisas correm bem há uma co-produção. Nas artes plásticas a defesa do estatuto simbólico é cerrada.
O capital que a Culturgest tem pode ser colocado ao serviço de quê?
Acho que a mais valia depende da interpretação dos espectadores. A Culturgest não permite trazer tudo.
Como por exemplo?
Há espectáculos que são demasiado caros. Houve um aumento de orçamento este ano mas é um orçamento muito inferior ao de outros espaços. Há limitações técnicas…
… e estéticas?
Há estas orientações de que falei. Por exemplo, eu via-me a trazer o Picollo mas preferia que não fosse com um Shakespeare mas com um Brecht.
Poderias programar o Rodrigo Garcia ou o Romeo Castelluci?
Sim, podia. O Castelluci conheço menos bem, vem agora ao CCB no festival Alkantara. O Rodrigo Garcia tem trabalhos muito diferentes. Vi um espectáculo encenado a partir de um texto dele sobre o Borges que me interessou muito. Mas se calhar aquele lado mais performático interessar-me-ia menos. Mas ele é um autor dramático. Não é o exemplo daqueles autores que não se preocupa com o texto.
Ou espectáculos cuja violência física ou exposição do corpo fosse controversa.
Esse tipo de auto-censura não faço. Se são espectáculos que já estão feitos parto sempre da minha reacção aos espectáculos. Não há limitações desse tipo. Eu sei que há esta imagem de bem comportados. Mas seja do Miguel Lobo Antunes ou do presidente da Culturgest e da própria Caixa, não há interferências. É um bocadinho carta branca.
A tua programação portuguesa é também uma reflexão sobre o que se está a fazer actualmente. O conjunto de vozes que apresentas é, na sua maioria feito de discursos individuais sobre a contemporaneidade. Discursos que facilmente se destacam no meio. É uma preocupação?
Há outra questão que é importante, para além do lugar do texto e do contemporâneo, que é a dos criadores que já estão em processo e que ainda não chegaram a uma súmula de um trabalho. É uma preocupação que passa também pela dança e pelas artes visuais. Esta ideia do jovem encenador tem sido uma preocupação minha, tanto nos espectáculos portugueses como estrangeiros. Por exemplo, o Arpad Schilling da Hungria, o António Latella que vem da Itália em Maio, o Tim Crouch que volta, o Bruno Bravo, a Mónica Calle, os Praga, o Ricardo Aibéo, que em Novembro vem cá com a Gata Borralheira do Robert Walser. Ou seja, encenadores que já fizeram alguma coisa e que estão em processo.
Isso tem a ver com o lugar de cada um dos espaços no discurso colectivo. Qual é que pode ser o discurso da Culturgest?
A Culturgest tem que cumprir várias funções consoante os destinatários. Para os artistas tem que ser um lugar que lhes permita ter meios de produção que eles se calhar não têm. Pode passar do número de projectores ou técnicos ou dar-lhes mesmo a nível de visibilidade algo que não teriam facilmente. E da minha parte fazê-los pensar de uma maneira que se calhar não tinham pensado. É importante que seja um momento especial para os artistas. Para o publico é dar a ver artistas que estão no seu auge criativo é fundamental. Não ter a preocupação da qualidade artística mas antes do interesse artístico. Há uma coisa interessante enquanto programador que é pensar o modo como isto vai funcionar.
Quando tu trabalhas para uma programação não estás a pensar no público que já existe, mas antes como é que trabalhas para um público maior que tem acesso a outras coisas?
Sim. Eu não sei se há um público da Culturgest. Para mim é difícil pensar em termos estatísticos. O público da Culturgest não difere muito do público do CCB, ou dos Artistas Unidos, ou da Cornucópia ou dos Praga. Há uma série de cruzamentos e não me aprece que para o teatro não há uma fidelidade à Culturgest. Se calhar por problema da programação que eu ainda não resolvi solucionar. Não sinto isso, Se calhar para a dança existe. Mas ainda há muitas flutuações. Por exemplo um dos mais bem conseguidos espectáculos do ano passado foi o da Assédio, [Um número] da Caryl Churchill, e foi dos que menos público teve. Portanto não vejo também uma relação entre a qualidade das propostas e o publico. As críticas correram bem, a imprensa também. Mas o facto de ser uma companhia do Porto, de uma autoria que se calhar as pessoas deviam conhecer mas não conheciam, se calhar ajudou a que não tivesse muito público.
Isso para ti resulta como, uma aposta que corre menos bem, sabendo que a Culturgest não tem que ter grandes preocupações quanto à bilheteira, não estando dependente desta para apresentar espectáculos, logo, há uma margem de risco maior?
Claro. No caso da Assédio o que me preocupa é que achava que era um espectáculo que deveria ter sido visto por mais pessoas e não foi. Em vez de ser visto por mil e tal foi visto por duzentas, não sei de cor. A minha preocupação é pensar o que é que estamos a fazer que pode ser melhorado para virem mais pessoas. Não tenho esta ideia dos records, mas fico contente quando um espectáculo que é bom e é valido é visto por muita gente. Não tenho a preocupação de fazer um espectáculo para o grande público nem programo a pensar que este espectáculo vai trazer muita gente. Até porque isso nem sempre corre como esperávamos. Por exemplo, n' «A Gaivota» do Teatro Krétakör não sabia se viria alguém a um espectáculo húngaro de quatro horas e tradução simultânea por imposição do encenador. À posteriori consigo reflectir: é um clássico. Não só é Tcheckov como é «A gaivota». Se fosse o «Platonov» se calhar não vinham. Antes é difícil saber. Nós temos carreiras curtas e isso é um problema. Porque os espectáculos estreiam aqui com a confiança que depois tenha uma carreira mais longa. São carreiras muito curtas para que se crie uma corrente de publico.
Mas há uma marca Culturgest…
Eu acho que isso existe, mas não sei se uma pessoa vem ver uma peça de teatro à Culturgest por ser aqui, como se calhar vem ver uma peça de dança ou jazz.
Porque no caso da dança há um reconhecimento…
… Que tem a ver com o passado da Culturgest. Se calhar porque foi mais pensada para a dança que para o teatro. É verdade que há muito publico comum e há coisas mais específicas. O público de jazz é muito particular. O público da dança vem algumas vezes ao teatro. Entre nós há esta preocupação. Por exemplo, a exposição que agora está patente, da Angela de la Cruz é o tipo de trabalho e de artista que no teatro me interessava. Uma artista com 40 anos com um pensamento sólido mas que para a Culturgest é mais interessante que a Frida Kahlo que é uma artista com uma obra já fechada e mais suavizada pela consagração. E uma coisa que nos reúne é esta preocupação com o gesto criativo em arte. Com uma incerteza do futuro também
Mas tu consegues sair do teu lugar de programador da Culturgest e olhar para a programação e defini-la, pensando no que te dá? Ou tem que ser uma observação atenta àquilo que se vai passando noutros espaços?
Acho que sim, que tem. Houve uma altura em que o CCB trazia para o festival de Almada as companhias históricas europeias, o Berliner, o Piccolo, a Royal Shakespeare Company, etc. Essa não seria a função da Culturgest. Mas como agora o CCB está numa fase mais difícil pode fazer sentido apresentar alguns desses espectáculos aqui. Nesta dialéctica entre o que se faz nos outros sítios que se pode fazer aqui. Eu quero trazer estes jovens encenadores, como o Schilling, o Latella, o Emmanuel Demarcy-Mota, o Ostermeier…
Mas trarias baseado em que? Porque é importante que a Culturgest apresente espectáculos desses autores, porque não há condições noutros sítios para se apresentar ou tentando perceber até onde se pode ir?
Há essa vertente quase pedagógica que é importante. O ano passado trouxemos o espectáculo do Jean Jourdheuil que é um nome fundamental em França. É importante que espectadores que nunca viram um espectáculo dele possam conhecer. No teatro tem que haver ciclicamente esse retorno aos nomes ou a vinda pela primeira vez de nomes que nunca cá vieram. O Peter Zadek é um nome que era importante trazer. Já tentei ver o que seria possível trazer, porque nunca veio a Portugal. O Bob Wilson, por exemplo, é outro nome que ciclicamente deveria estar presente em Portugal.
Essa seria a responsabilidade da Culturgest sobretudo porque tem condições para o poder fazer?
Pois. Acho que faz parte da nossa missão de vez em quando trazer esses nomes, sabendo que são nomes que o CCB também pode trazer. A Meg Stuart veio o ano passado. Mas também veio ao CCB e foi a Serralves. Não tem que haver um nicho para cada espaço. Há coisas que podem ser partilhadas e partilháveis.
Estares a fazer programação mudou a forma como te relacionas com o teatro?
Se calhar tinha um olhar de crítico e faria um discurso critico sobre os espectáculos e este conhecer por dentro ilumina muito aquilo que se como produto final. Há uma admiração pelo esforço e pelo pensamento de uma série de artistas que passaram por aqui que ao ver o seu trabalho diário ou falando com eles me deu uma perspectiva nova e essa muito interessante. Ao passo que nos espectáculos estrangeiro vivo na angústia de saber se vale a pena comprar ou não.
Que linhas fortes encontras no que se anda a fazer cá?
Eu acho que há uma questão de geração que parece muito interessante. Estes que têm passado por cá têm de interessante o facto de se conhecerem e de trocarem experiências. Os Praga entraram em espectáculos da Mónica Calle, a Cristina Carvalhal fez um espectáculo [Cosmos]com actores que depois entram no Primeiro Sintomas… uma troca que passa até pelas salas… há uma circulação de pessoas e ideias que me parece interessante e rompe com o que se vinha fazendo. Isso é produtivo e impede que se fechem nas suas redomas. Vejo as outras estruturas um bocadinho mais fechadas. Há uma espécie de fosso entre esta geração e uma outra geração que continua a fazer algum trabalho interessante e outros não. Parece que no meio não existe nada, é uma geração muito feita de free-lancers e que fez muita televisão. O desenho do teatro em Portugal tem um bocadinho a ver com estes dois pólos. E depois há os Artistas Unidos que, de certa forma, fazem a ponte entre as duas gerações, o Jorge Silva Melo que vem dessa geração anterior e trabalha com gente que vem destes novos grupos.
Mas e encontras linhas fortes que se imponham?
Sim, globalmente é complicado identificá-las. É sempre possível encontrar um conceito suficientemente largo que reúna vários trabalhos e acho que de facto existe alguma sintonia entre alguém como a Mónica Calle e os Praga. Há estas linhas que me interessam mas não sei se são as linhas dominantes. Um trabalho com o dos Praga tem afinidades com outros mas é muito distinto. Mas eles estão próximos da Lúcia Sigalho e do Cão Solteiro e se calhar não pelas razões mais interessantes. Ou há reflexões mais interessantes nuns casos que noutros. Há grupos que estão a cair numa auto-paródia, numa estilização do seu próprio trabalho o que já o torna pouco moldável ao que se esta a passar.
Na ausência de um modelo de teatro nacional qual é que achas que pode ser o papel das instituições privadas ou semi-privadas nessa definição?
Aquilo que o Teatro Nacional estava a ser pode ser cumprido por outras instituições. É o que nós temos feito. Acho que há uma série de coisas que dificilmente são possíveis fazer para as outras instituições, até pelo seu nível de financiamento. O Teatro Nacional pode fazer uma série de coisas que pela sua reunião nesse espaço adquirem um peso simbólico que não terão nas outras instituições. A aposta na dramaturgia portuguesa tem que ser uma coisa séria e não com adaptações de romances duvidosos. Isso é uma coisa que pode ser feita em qualquer teatro. A ideia de fazer com que os autores trabalhem não é só o teatro nacional a fazer. Porque se calhar até é contraproducente que o faça. Por exemplo convidar um jovem dramaturgo português apara apresentar uma peça na sala principal para 20 personagens se calhar não é o melhor para aquele autor. Se calhar o melhor é escrever aqui para o pequeno auditório, como o Miguel Castro Caldas, havendo depois uma gestão dessa evolução artística e literária que pode passar por outras instituições.
Mas devia ser um modelo centralizador ou mais um espaço?
Acho que devia ser mais um espaço com algumas responsabilidades específicas que caberia ao director definir. Eu consigo pensar em exemplos de outros teatros nacionais de outros lugares que tem determinadas tarefas que seria interessante que cá fosse o teatro nacional a fazer. Mas com este director não me parece que tal seja possível. Por todas as razões. Pela maneira como a mudança se fez, as justificações que foram invocadas que só do mais demagógico e jogos com números que qualquer pessoa pode fazer. Tudo aquilo cheira muito a esturro. Parece-me sinal de um grande fechamento da tutela ao teatro interessante que se está a fazer. Está demasiado envolvido em lógicas politicas e relações pessoais ou de influência que são completamente exteriores ao trabalho que se esta a fazer e que é interessante. É um erro monumental numa série de outros. O caso dos subsídios no Norte é chocante. Outro exemplo é o caso do Espaço do Tempo onde se tem feito um trabalho muito interessante e que tem a ver com a vida dos artistas e o trabalho em residência e uma pratica e se deixa de investir naquilo. Como é que 15 dias depois da ministra tomar posse toda a negociação veio por agua abaixo e depois se esta a pensar fazer um centro de residências de raiz não sei onde. Há um autismo no poder político que não liga ao que se está a fazer, muitas vezes com dificuldades mas com resultados evidentes. É muito assustador. Casos como estes três são tão flagrantes que justificam todas as mudanças e mais algumas.
Amanhã: Diogo Infante, director artístico do Maria Matos - Teatro Municipal
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