segunda-feira, março 20, 2006

A ponta do iceberg (I): Giacomo Scalisi

Responsável pela programação de teatro do Centro Cultural de Belém (CCB) desde 2005, o trabalho de Giacomo Scalisi, um italiano a viver em Portugal há alguns anos, tem sido acusado de negligenciar o teatro para dar lugar a outras formas artísticas, nomeadamente o novo circo. No espaço de dez anos o CCB foi perdendo o potencial contemporâneo das propostas ali apresentadas, muito fruto de uma administração que no fim do ano passado foi substituída e um orçamento que se reduziu ano após ano. Nesta conversa com o consultor para o teatro do CCB, em que o formalismo do português foi trocado pela informalidade do italiano, importou perceber o modo como está a ser pensada uma programação que, nitidamente, se sustenta numa filosofia própria e com objectivos a longo prazo. «Na época actual, é possível ter uma visão mais ampla do que pode ser uma programação teatral, porque testemunhamos nas obras de muitos artistas, uma procura insistente de diferentes territórios, suportes e linguagens que evocam a força das suas visões de teatro. Procuram encontrar uma nova geografia poética, que renove a vivacidade da sua relação com o público.», escreveu no texto de apresentação do seu primeiro espectáculo programado, Plan B. O peso que o CCB carrega em termos institucionais, e que força a existência de expectativas, é aqui analisado por uma figura que acredita na relação estreita entre criação, arte e vida. O teatro que Giacomo Scalisi propõe quer estar mais perto das pessoas. E isso nem sempre é óbvio.

«Um programador tem que rever constantemente o seu próprio papel. »


Pergunta óbvia e mero ponto de partida: Como é que surge a proposta de te tornares responsável pela programação de teatro no CCB?

A minha história com o CCB nasce com o projecto PERCURSOS em 2002, um projecto que mexia com as artes de uma forma particular e estranha porque, com exemplos concretos no terreno provou ser possível imaginar uma programação feita de outra maneira: criar um terreno de encontro entre artistas e público em liberdade. Depois do PERCURSOS o Miguel Lobo Antunes [na altura director] pediu-me para ir com ele para a Culturgest, mas eu fiquei com pena de deixar uma coisa que estava a começar aqui e a Administração achou que eu podia continuar o projecto de re-imaginar, a partir do PERCURSOS, uma outra ideia de programação de teatro. Eu chego com um mandato muito claro mas com uma administração que dois meses depois se vai embora. As vicissitudes públicas que aconteceram de 2004 até agora evidentemente puseram em causa grande parte do trabalho. Com a chegada do novo presidente acredito que as coisas vão mudar.

Têm sido meses difíceis estes aqui no CCB e olhando para a programação dos próximos três meses, onde só aparece um projecto claramente identificado como teatro, o Teatro Meridional com À Espera de Godot, devo perguntar onde é que está o teatro no CCB.

É uma boa pergunta. As pessoas que estavam aqui antes, o Jorge Silva Melo ou o Miguel Abreu tinham um pensamento diverso sobre o teatro. A palavra teatro tem muitas valências, tem a ver com formas, texto, residências artísticas, acompanhamento dos projectos. É importante tentar perceber como é que se pode imaginar uma programação que tenha a ver com o teatro mas não seja só teatro. No fundo, fazer com que a passagem pelo CCB não seja só a apresentação, mas uma reflexão sobre o espaço e uma surpresa para o público. Isto pode incluir um espectáculo de novo circo que não tem nada a ver com o teatro mas tem tudo a ver com a arte. E o teatro faz parte da arte. É o caso, por exemplo de Secret, que está agora em cena. Só a presença do Johann Le Guillerm tem uma dimensão teatral que o próprio teatro por vezes esquece.

Como é que essa ideia se adequa a um público que estava já habituado a ver o teatro que se apresentava no CCB? Como é que se trabalha o público para dar a ver que o teatro que vão passar a ter acesso depende de uma outra filosofia que é a filosofia deste programador em concreto? Como se torna prática essa ideia?

Até agora esta casa não tinha uma identidade muito clara, tinha muitas identidades diferentes que tinham que ver com a ideia de programação que cada um dos programadores propunha. O que eu fiz foi insistir na ideia de uma nova geografia da arte. Repensar a relação do artista, do público e do teatro. Como é que se pode surpreender o público com uma ideia de arte mais próxima das pessoas? No fundo, uma ideia de arte contemporânea que tem a ver com o que está a acontecer na nossa sociedade, na vida quotidiana de cada um e que toque na emoção das pessoas. Isto põe-se em pratica com muito calma, programando espectáculos e depois começando a convidar as pessoas a vir. As pessoas vêm com alguma dificuldade.

Essas resistências não são resistências também às propostas e sustentadas na expectativa que têm de e para um espaço como este?

Nada disto é fácil ou óbvio. A própria casa diz-me que os meus espectáculos são difíceis de explicar, que ninguém percebe o que é que eu estou a programar até virem ver. Nessa altura rendem-se. É um trabalho muito lento para conquistar o público. As pessoas chegam e dizem: “mas isto é teatro?”. E depois encontram outra coisa e dizem: “mas isto também é teatro?”. Ou seja, as pessoas pensam que vir ao teatro é uma seca. E aqui estamos a tentar mostrar que o teatro é várias coisas diferentes e que se reinventa a partir de uma ideia de um artista. Pode é ser feito através de uma pesquisa de linguagens diferentes e numa indefinição de territórios que para mim se chama teatro e que têm a ver com todas as intersecções que uma coisa nova e diferente pode produzir. O teatro é vivo e tem que ver com a vida das pessoas. A arte serve para que as pessoas vivam melhor.

É essa a resposta às críticas feitas sobre a programação de 2005, onde se disse que não houve teatro no CCB?

Faz parte da imprensa querer saber “quem é que vai matar hoje”. Em 2005 fizemos aqui muito trabalho. Não é verdade que não houve teatro no CCB. Esteve muito presente. A prova é que das escolhas do caderno Actual do Expresso, três das cinco primeiras propostas eram do CCB: Hotel Tomilho (Compagnie Laika/Teatro Regional da Serra de Montemuro), Dance on Glasses (Meth Theatrical Group) e o Sand Table (Meg Stuart/Damaged Goods) no Temps d’Images, que foi uma escolha da programação de teatro. Portanto, não é verdade que não existisse uma programação de teatro interessante. As pessoas é que não a quiseram ver. Claro que houve muitas coisas que não funcionaram. Mas houve um trabalho da parte dos programadores todos em fazer coisas que, dada a situação complicadíssima em que se vivia, era impossível imaginar que se pudessem fazer.

Portanto a estratégia seguida foi…

Na altura tivemos uma conversa com os jornalistas porque eu estava muito magoado. É muito fácil dizer mal das instituições. Agora, eu sei que estou a construir um público. Em 2005, o primeiro ano da minha programação, começámos com o Plan B [Compagnie 111]. Há pessoas que ainda hoje me dizem que tiveram pena de não terem visto. Agora há um público que está habituado a uma programação diferente.

Uma programação mais próxima da filosofia original do CCB? Ou seja, voltado para a criação contemporânea?

O Miguel Lobo Antunes nos primeiros anos construiu um projecto com uma certa identidade e uma presença forte que com o tempo se foi degradando por motivos que não tinham só a ver com a programação. Eu estou a fazer um trabalho aqui que é claro e com escolhas muito claras: a arte contemporânea, o teatro nas suas diversas vertentes, o acompanhamento artístico de uma criação estrangeira que não passa pelos grandes nomes mas por aqueles que estão a propor coisas surpreendentes. Não vamos pedir só espectáculos às companhias, mas saber que perguntas têm, que projectos querem fazer, como é que se podem relacionar com a cultura portuguesa.

Em nome de quê?

De uma liberdade certamente. E liberdade é uma das palavras mais difíceis do mundo porque é tudo e nada. A liberdade não é cada um fazer o que lhe apetece, é o contrário. Ninguém conhecia o Johann Le Guillerm e eu tive que trabalhar com a imprensa e se calhar conseguimos. Na estreia estavam 15 membros da imprensa na sala. O novo circo é uma arte que, neste momento, está a pesquisar sobre a contaminação das diferentes artes construindo uma linguagem nova. Se calhar isso tem mais a ver com aquilo que as pessoas estão a pensar neste momento. Não é o novo pelo novo, mas uma coisa que seja viva. Que tenha algo a dizer sobre o tempo em que estamos a viver. Isso é fundamental. Não estou a dizer que o Shakespeare não diga, mas é pena que existam muito poucos espectáculos clássicos que tenham esta força e este impacto. Eu não estou a dizer que nunca irei programar um teatro de texto, não. Eu estou aberto a tudo e estou à procura de objectos que fazem sentido. Nós sabemos que tudo o que se passa em palco é falso e passada uma hora acabou. Podemos seguir a nossa vida. Mas se nós sabemos que não é verdade então podemos imaginar que mais do que a verdade, vemos coisas que na nossa vida não faríamos. E é isso o teatro. As minhas escolhas têm a ver com isso. Como é que eu posso ajudar a que o público tenha uma maior consciência da vida, uma relação de verdade que uma parte do teatro tradicional já não tem.

E o público que quer ver um outro teatro, se calhar mais habituado a outras dimensões e referências, não tem lugar no CCB?

As pessoas devem perguntar o que é que querem ver no teatro e se estão dispostas a aprender. A arte pode renovar-se se conseguirmos pesquisar profundamente a partir dos nos problemas e a nossa realidade, porque a temática da arte são os problemas da vida. Interessa-me chegar ao íntimo das pessoas e perceber como é que a arte é necessária. Uma vez escrevi um texto chamado “Para uma redefinição da arte necessária”, mas a arte é necessária para quem? Para o artista, para o público, para todos. A arte coloca questões difíceis, entra na vida das pessoas e cada um tira o que pode ou o que quer. Por exemplo, um jornalista perguntou-me se este espectáculo de circo do Johann Le Guillerm era muito perigoso. E eu disse que sim, que era perigoso porque tinha a ver com a alma que poderia ficar bouleverse, como dizem os franceses. O acto artístico é isso. Eu entro numa exposição, numa peça e quando saio passo a olhar o mundo de outra maneira. E nós que estamos a fazer arte, temos que dizer isso às pessoas, que a arte é importante. Isto é muito básico.

Sentes que estás a começar qualquer coisa?

Acho que estou a prosseguir uma coisa que o CCB já tinha.

Mas a repensar?

Constantemente a repensar. Não pode ser uma ideia de obrigatoriedade de fazer a arte não importa como. Há que ter uma ideia atrás, e que se não funciona ter a coragem de o dizer. E tenta-se outra coisa. Por isso é que é preciso acompanhar o público nos projectos, porque o impacto que os projectos têem não é só numérico, pode ser considerado de outras maneiras.

É daí que parte a relação estreita com o Centro de Pedagogia e Animação?

Com as crianças podemos falar de tudo porque eles percebem mais do que aquilo que os adultos pensam, por causa de alguma liberdade de pensamento que os adultos não têm. Não é o “quê” é o “como”. As crianças que aprendem a viver acompanhadas pela arte aprendem a viver melhor. No PERCURSOS isso era muito claro. Tivemos uma ideia, tivemos três cidades com laboratórios artísticos, os artistas traziam os projectos que queriam desenvolver e que iam ao encontro das prioridades dos nossos parceiros culturais, como o Teatro Viriato ou a Câmara Municipal de Évora. E a partir de tudo isto criava-se um encontro. Isto pode não responder às questões mas indica caminhos para todos: artista, público…

Mas há uma especificidade ao se programar para um público infanto-juvenil...

Eu trabalhei muito anos para esse público. Durante muito tempo programei o festival Vetrina Europa, em Parma. E não é difícil imaginar que os meus objectivos de programação sejam estes. Um público jovem está à procura de novas linguagens. Mas o PERCURSOS não foi feito só com crianças. Ou seja, é preciso partir do exemplo que foi o PERCURSOS e voltar à ideia de pesquisa. Por exemplo para o próximo ano poder dizer ao Le Guillerm “para o ano vens cá estar connosco, há outros artistas, não tens que trabalhar com eles, só estar aqui a pensar, a ver, o que é que queres fazer, estes são os nossos problemas, quais são os teus?”.

Há uma dimensão de serviço público que o CCB deve prestar, ou não?

É importante que seja um serviço público porque é preciso dar conta do dinheiro das pessoas. E isso é muito importante e fundamental. Mas não é possível deixar de dar oportunidade a coisas que se estão a experimentar e que proporcionam ao público diferentes oportunidades de reflectir. Não é só saber se as pessoas vêm ou não ver os espectáculos. Eu faço espectáculos para metade da lotação das salas. Não têm que ser 1500 de cada vez. Porque não é um problema de proporção. Muito público não quer dizer imediatamente uma boa programação. Mas a ideia de serviço público dá a possibilidade de, por exemplo, ter um bilhete não muito caro. Os produtores privados aqui no CCB cobram trinta, quarenta, cinquenta euros pelos bilhetes. Quem é que vai ver isso? Evidentemente um público que tem um poder económico que o permita. Os nossos espectáculos custam às vezes dois, três, cinco ou dez euros. Nós temos a possibilidade de chamar um público que não tem muito dinheiro ou que possa ter um acesso à cultura digamos popular, no sentido nobre do termo. E é importante que isso continue.

Nesse aspecto, pode um programador criar uma programação a partir dos seus gostos? Deve uma programação ser o reflexo da filosofia desse programador?

Digamos que eu não programo espectáculos que não gosto. Há pessoas que dizem que um programador deve ter uma visão alargada, mas para mim é difícil programar algo que não gosto. Mas claro que há coisas que gosto mais e outras menos. E até coisas que gosto muito pouco mas que fazem sentido no meu projecto. E por isso gosto delas. Por isso escolho-as.

Numa instituição como o CCB, como é que se equilibra o gosto, com o serviço público e essa reflexão sobre o teatro e os espectadores?

O programador tem uma ideia e um projecto a desenvolver que é declarado no início e faz escolhas, desenvolve um percurso e encontra ou não encontra um público. A avaliação de todo este projecto é feita depois. Assim a relação com os artistas é muito mais interessante porque trabalhamos com uma liberdade que depois se relaciona com a ideia de programação. Não é só o programador que acha que uma ideia pode ser fantástica mas é um diálogo com o artista e com o público. Ou seja, é pôr em questão o papel do programador.

Que poder tem um programador?

Eu acho que não tem poder nenhum. Um programador tem que rever constantemente o seu próprio papel. Por exemplo, no caso do PERCURSOS fomos tão longe que de cada vez que programo qualquer tenho coisa tenho que pensar naquilo que estou a dizer, a acrescentar. Não é o programador que pode. Não é só o poder de escolha, porque eu posso escolher cinco companhias porque sei que essas companhias têm uma ideia de trabalho e sei que posso confiar. Mas eu quero é proporcionar ao meu público um trabalho que possa ser interessante, não é só o que eu acho, é o que o público pode achar.

Mas é um trabalho artístico?

Eu venho de 20 anos de teatro, mas não sei responder. Eu gosto muito de fazer o meu trabalho que tem a ver com entrar dentro das coisas. Não é só escolher um espectáculo bonito. É imaginar que um artista e mais um e mais um podem ter uma linha vermelha que convida o público a conhecer os territórios da arte. É isto que quero fazer. E quero fazê-lo através da surpresa. Um programador é a casa mas não é a alma do projecto. É só uma das partes do projecto.

Com esta nova administração um discurso contemporâneo será mais facilmente compreendido?

Temos sempre muita esperança. Estamos muito no princípio, não é fácil mas acho que tem imenso potencial para isso. Mas não pode ser a contemporaneidade pela contemporaneidade. Eu, mesmo em situações difíceis consegui sempre. Até com outros presidentes e outras administrações que não tinham nada a ver com a minha programação. E até agora estou muito contente. Acho que agora terei mais possibilidade que antes. Eu sei quais são os objectivos a atingir.

Que se traduzem como em termos de programação?

Não sabemos. Depende das prioridades dos artistas e dos parceiros: espaços, temas e ideias. Os artistas pensam um projecto e a partir desses projectos cria-se uma programação. A ideia não é que eu escolha dois anos antes o que é que eu vou fazer, mas eu ter uma realidade e um território, um projecto cultural, um público e escolho os artistas que acho mais interessantes para o que quero desenvolver. É claro que tenho algumas prioridades e questões, mas que serão desenvolvidas com os artistas. Esta ideia de grupos que habitam uma estrutura durante dois anos, como foi o caso do Laika e do Teatro Regional da Serra de Montemuro, que criaram o Hotel Tomilho. A partir deste questionamento contínuo nasce uma programação única porque fala daquele sítio, daquelas pessoas, daqueles artistas e daquele público que veio ver, proporcionando momentos que não podem ser vistos noutro sítios. Isto é um projecto interessante. Conseguimos com o PERCURSOS. E eu espero conseguir isso no CCB.

Então devemos falar de experiência e partilha em vez de apresentação e programação.

Sim. Interessa-me esta ideia de re-imaginar a programação que está na vida e no centro de uma casa. Uma casa para o público e os artistas… uma casa sempre surpreendente mas sem inventar nada de novo. Só repensar.


Amanhã: Marta Furtado, responsável pela programação de artes performativas da Galeria Zé dos Bois.

5 comentários:

Anónimo disse...

Muito boa iniciativa.

Anónimo disse...

parabéns pelas entrevistas.

Anónimo disse...

Excelente trabalho!!!!!

para quando uma entrevista ao Mega Ferreira?!?

Lcego disse...

Gostamos muito de ler.

(alcateia do Montemuro)

Mariana Matos disse...

Boa tarde,
Chamo-me Mariana e fiz um projecto para os Jovens Artistas Jovens em 2006. Perdi o contacto do Giacomo, sei que já não está no CCB. Poderão enviar-me o seu e-mail? O meu é marianamor@gmail.com. Obrigada.