terça-feira, março 21, 2006

A ponta do iceberg (II): Marta Furtado


Em 2005 a Galeria Zé dos Bois, situada em pleno coração do Bairro Alto, abriu uma extensão na Rua do Século a que deu o nome de NEGÓCIO. Assumia assim uma vontade de reforçar e relançar o peso das artes performativas num espaço que sempre procurou estar atento ao que de mais interessante se fazia na criação contemporânea nacional e internacional, nomeadamente procurando trazer a Lisboa nomes internacionais importantes, sobretudo no âmbito do Festival Atlântico. Cruzando as artes performativas com a música e as artes pláticas, a reputação e a filosofia da ZBD permitiu que os criadores encontrassem nas suas instalações as condições para criarem os seus projectos. Foi o caso do Pogo Teatro, da Sensurround ou de Luís Castro que durante longos meses ocuparam o edíficio da Rua da Barroca. As condições de produção e de financiamento ditaram uma alteração nas "regras de funcionamento, passando a haver uma aposta mais regular na programação portuguesa. É nessa linha que surge o espaço Negócio, um espaço que, como explica Marta Furtado, oferece outras condições não só para a apresentação de espectáculos mas no acompanhamento dos criadores nos processos de trabalho. Uma noção que se revelou fundamental numa cidade sem muitas (ou quase nenhumas) alternativas para projectos marginais. À frente da programação de artes performativas da Galeria Zé dos Bois (e do espaço NEGÓCIO) desde 2004, Marta Furtado, também actriz, reconhece que o papel que a ZDB desenvolve é particular e necessário. E fala ainda da importância das condições de criação não serem só as portas abertas. Para esta inesperada programadora (o adjectivo é dela), propostas como as de Patrícia Portela, Mala Voadora, Teatro Praga, Sónia Baptista ou extensões de festivais como o Alkantara ou o A Sul fazem sentido numa lógica de proximidade entre os objectos e o espaço onde se apresentam, mesmo que os nomes não sejam exclusivos do espaço.


«comecei a ser muito mais diplomata»

Quando te convidaram para assumires a programação da ZDB o que é que te foi pedido concretamente?

[Risos] Para me ocupar das pessoas todas de teatro e dança. Basicamente foi isso. Isto começou com as “propostas para quem dança”, com o Natxo Checa, em 2002. Colaborei com ele, vimos as peças, falámos com as pessoas. Foi a minha primeira aproximação às questões de programação. Portanto, não surgiu um convite directo, mas uma vontade de cada vez mais, dentro da ZDB, se dividirem responsabilidades e trabalho. Temos tentado que assim não seja, para ser mais fácil e mais saboroso, e para que as outras pessoas que cá trabalham possam ter mais poder de escolha e criar uma outra envolvência. Foi mais nesse sentido de distribuir trabalho e aprofundar conhecimentos.

Mas vias-te como programadora?

Claro que não. Eu não sei se sou programadora. Não sei se há uma identificação Marta – NEGÓCIO/ZDB. A minha vontade inicial era a de crescer. Aprendi muito com a ZDB e hei-de continuar a aprender. É muito bom para mim em termos pessoais sobretudo porque a filosofia da ZDB é uma coisa com a qual concordo. Talvez não o devesse dizer… mas se não fosse eu, outra pessoa faria e segundo os moldes em que a ZDB procura actuar.

Defines como a tua programação?

Eu tento que a minha programação vá de encontro aquilo que a ZDB sempre procurou e que são criações contemporâneas. Nós sempre trabalhámos muito no sentido das residências e de conseguir apoiar a criação, dentro das nossas possibilidades, mais no sentido da criação emergente e não tanto de reposições ou temporadas. E sempre que possível trazer criadores emergentes do estrangeiro, que é uma coisa que no próximo ano eu gostava de avançar mais. Aqui na ZDB trabalhamos em conjunto. Por exemplo, se alguém chega com uma banda de Nova Iorque que vem fazer um concerto mas que também faz performances, sentamo-nos, vejo o dvd e se achar que sim… programo. A última palavra não tem que ser em conjunto, mas partilhamos as coisas que vamos programar em reuniões semanais.

Essa é uma estratégia tua ou porque a ZDB é um colectivo?

Por causa da ZDB

Como é que surge a vontade de criar um espaço específico para as artes performativas, como o NEGÓCIO?

Os objectos que foram criados na ZDB sofreram sempre muitos condicionalismos, coisa que até certa altura nunca incomodou muito nem a ZDB nem os criadores. Mas a partir de um certo ponto trabalhar com os mesmos criadores no mesmo espaço e com esses condicionalismos é, passe a redundância, condicionante. A vontade de criar um espaço alternativo vem de querer dar condições diferentes. Ou seja não foi para fazer brilharete. Era preciso um espaço que desse para colocar projectores, tivesse sossego, desse para por linóleo, houvesse bancada… tudo coisas que na ZDB-sede (no “aquário”) não dava para fazer. Claro que o NEGÓCIO também dá para fazer um monólogo sentado num cantinho. Mas pelo menos se se quiser andar pendurado pelo tecto também pode. Ou seja, abrir as possibilidades de condições para trabalhar. Aquilo não é um grande espaço, mas tem uma boa boca de cena e capacidade para ter peças com mais elementos ou pessoas, outras condições técnicas, outra iluminação… Deixou de ser motivo de exclusão as dificuldades técnicas de uma proposta, por exemplo. E para trabalhar em residência é melhor. É importante que os grupos que lá trabalham tenham condições para criar para lá. Mas não apoiamos o suficiente claro. Não somos o Instituto das Artes. Mas damos as condições necessárias para que o espectáculo possa existir: divulgação, técnica, montagem, espaço, ajudas de custo (ou quase) … felizmente conseguiram criar-se melhores condições.

O que, em parte, contrasta com o que foi o passado recente da ZDB onde chegou a ser espaço de residência de companhias, ou criadores, como Luís Castro.

Não pomos de parte as residências, mas temos tido muitas obras. Investimos muito no espaço e é natural que tenha que ser ocupado de forma rentável. Ter uma companhia residente não é produtivo para as duas estruturas. Acabaria por anular uma das duas coisas. A ZDB é um pólo. Juntar tudo não é benéfico. Uma coisa é ter a [livraria] Ler Devagar onde as pessoas vêm e pronto. Ou o atelier do [cineasta] Edgar Pêra, onde as pessoas circulam e é à porta fechada. Ter uma residência permanente de uma companhia não faz sentido. As residências criativas essas continuam.

Há uma preocupação grande com as residências artísticas e acompanhamento dos projectos, da mesma forma que procuram co-produzir em vez de acolher…

Sim. Acolhimento só com peças de fora ou co-produção com outros festivais. Acolhimento pontual. Não faz sentido. É um desperdício de espaço estar a fazer acolhimento em Lisboa quando as coisas estreiam em Lisboa ou perto de Lisboa. Quando há a oportunidade de encaixar qualquer coisa de fora, num enquadramento que se proporcione, como o caso das extensões de festivais aí justifica-se. Ou a nossa programação pontual mas de fora de Lisboa. Coisas que podem circular pelo país ou estreiam aqui ou não vale a pena. Há uma necessidade de estar a fazer coisas novas. Acho que resulta bem criar-se o hábito de ver as coisas quando elas são feitas. Não sou contra as reposições, mas esse não é o papel da ZDB. Há imensos cine-teatros equipados e que deveriam fazer acolhimento, tournées, reposições.

O NEGÓCIO criou um público diferente do que o que vinha à ZDB?

É capaz de ter crescido um bocadinho, de ser mais abrangente. Mas, no essencial, o público do NEGÓCIO é o mesmo da ZDB. Infelizmente nós conhecemos o público das artes performativas É muito fechado. O da dança é praticamente o mesmo. O do teatro é capaz de ter aberto porque, apesar de tudo, em comparação com outras propostas da ZDB, a programação do NEGÓCIO do ano passado foi um bocadinho mais aberta e acessível, menos experimental.

Isso foi uma estratégia para o espaço ganhar uma identidade, uma autonomia, não tanto da ZDB mas no contexto criativo?

É uma questão de saber se queremos ter um espaço com programação regular ou não. Se sim não pode ser uma programação tão experimental. Não só não rende como nem há prazer nenhum. Para isso fazemos as coisas para os amigos e não um espaço aberto ao público. As coisas precisam ser um bocadinho mais abrangentes. Não muito, claro. Não se pode dizer, por exemplo, que o Projecto de Execução [Mala Voadora, esteve no NEGÓCIO em Janeiro 2006] seja uma coisa muito abrangente. Mas é mais abrangente que algumas coisas experimentais que às vezes acontecem.

Exactamente no caso de Projecto de Execução, a estreia de um novo projecto justificou a reposição de dois anteriores espectáculos do mesmo grupo, a Mala Voadora.

Isso sim é uma estratégia que anteriormente houve com a Patrícia Portela e que voltaremos a utilizar. Nestes dois casos resultou muito bem. Eu se fosse só público gostava de ter a oportunidade de conhecer o trabalho de uma companhia ao longo de um mês ficar a conhecer três objectos dessa companhia que me dêem uma ideia do seu percurso.

Essas escolhas são feitas como? Assentes numa política de gosto?

Não é bem por gosto. É difícil explicar. Se calhar é… Eu gosto muito do trabalho da Patrícia Portela e da Mala Voadora. Mas quando eu digo gosto não é uma questão estética. É uma mistura entre conteúdo, o conceito, a técnica… às vezes há coisas que esteticamente não gosto mas que tenho que admitir que tecnicamente estão bem conseguidas. Com estrangeiros recebo via de outrem, vejo na net… aí tenho pouca experiência. Cá dentro conhecemo-nos quase todos. Posso não conhecer o trabalho de fulano enquanto criador mas conheço enquanto intérprete. Ou não e vou ver as coisas que se passam, peço dvd’s. Não programo nada sem ver.

Mas há coisas que não programas...

Aconteceu-me recentemente, por exemplo, eu querer programar um espectáculo, mas achar que não estava no ponto de ser apresentado. E, não estando, o que faço é sugerir trabalharem com outra coisa, outro objecto, continuarem aqui em residência, convidar outra pessoa para acompanhar… e eventualmente a meio do processo de ensaios, voltamos a ver, a conversar e se tiver em condições de ser apresentado, apresenta-se. Custa-me, mas há coisas que não são de gosto… é “não estar lá”.

Há criadores com os quais são estabelecidas relações privilegiadas…

É natural. Isso acontece em todas as áreas da ZDB, quando as coisas correm bem. Todos precisamos partilhar coisas e de colaborar com quem as coisas correram bem. O profissionalismo na nossa área é uma coisa imposta a custo e quando há duas estruturas que trabalham bem em conjunto é natural que queiram continuar. Não é um favorecimento.

Isso relaciona-se como em relação à questão do poder? Os programadores têm poder?

Têm, imenso. Eu em particular não tenho. A ZDB sim e as pessoas aproximam-se exactamente nesse sentido. Nós recebemos por semana inúmeras propostas de colaboração a troco de nada, só por interesse pessoal para crescerem. Percebo perfeitamente.

Qual é o poder de um programador?

O poder da escolha.

E quando essa escolha é feita num território que tu conheces tão bem porque te dás com as pessoas? Como é que lidas com o facto de estares a programar pessoas que conheces e algumas das quais com quem trabalhaste?

Quando gosto do trabalho lido muito bem. Quando não gosto não programo. É uma pena, mas nisso sou muito directa. Sempre fui. Tentei sempre ser imparcial, mesmo quando não era programadora e só tinha um interesse pessoal em ver as coisas por gosto. Aprendi que comecei a ser muito mais diplomata, isso é verdade. Era muito mais caprichosa e aprendi a respeitar muito mais o trabalho das pessoas. Apesar de muitas vezes não chegarem ao ponto a que desejam, o processo é muito válido, as referências são válidas… Aprendi a não dar ao objecto final o valor tão grande que se dá, respeitando o percurso até aí.

Transportaste isso para o teu trabalho enquanto intérprete?

Não. Enquanto intérprete tento sempre o oposto. Encaixo-me sempre nas estruturas onde interpreto, é isso que está mais presente.

Nunca te programarias?

A própria direcção já comentou isso. [Risos] Dizem-me: “Se queres fazer teatro, faz teatro aqui”. Mas isso a mim faz-me um bocadinho de confusão. Uma coisa era eu ser intérprete de uma peça… mas mesmo isso me faz confusão. Mas se há uma peça que é feita em residência e o convite me é feito e o espaço que encontram é aqui… eu prefiro evitar que isso aconteça. Mesmo que eu acredite no projecto enquanto tal, ou não estaria lá. Mas preferia que não acontecesse, por razões óbvias.

É mais fácil um programador ser também um artista?

Eu acho que é importante. Não é necessário, mas é importante. Há um maior conhecimento de causa. Eventualmente se for um cine-teatro ou um outro espaço, essa necessidade não será tão sentida porque o que está em causa é o objecto final e a difusão. Como nós não vamos só para a difusão e mais para o resto, é muito importante.


Amanhã: Jorge Salavisa, director artístico do São Luiz - Teatro Municipal

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